quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Outro Lado da Esperança (2017) de Aki Kaurismaki



por Alexandra Barros 

O Outro Lado da Esperança é o segundo filme de uma trilogia iniciada com Le Havre (2011) e inicialmente denominada “trilogia dos portos”. Mais tarde, foi convertida para “trilogia dos refugiados” porque o tema se impôs: “Tive de fazer um filme sobre os refugiados porque a situação na Finlândia era o que era”, diz [Kaurismäki], referindo-se à intolerância que os seus compatriotas tiveram para com os 10 mil refugiados aceites pelo país.”
 
O filme cruza a história de um jovem sírio, Khaled, em fuga da guerra que devasta o seu país, com a história de um pequeno empresário finlandês, Wikström, que após uma vida no comércio a retalho de camisas, decide abrir um bar-restaurante, sem qualquer experiência ou competência na área. “Uma decisão muito sábia, porque quando os tempos vão mal os clientes bebem muito e quando vão bem ainda bebem mais.”, diz uma revendedora de vestuário que, dentro do que os tempos difíceis permitem, ajuda Wikström a liquidar a sua mercadoria.
 
Khaled chega a Helsínquia como passageiro clandestino de um navio que transporta carvão. À chegada, numa das mais belas cenas do filme, Khaled brota lentamente do carvão como um gigantesco cogumelo, negríssimo e pontuado apenas pelas duas pintas brancas dos globos oculares. Entretanto, noutra extraordinária cena, Wikström, em profunda crise existencial, larga a aliança de casamento junto ao copo da bebida com que se ocupa a mulher e sai de casa, com uma mala e sem uma palavra. É assim que Khaled e Wikström se colocam em marcha, procurando um outro lado da esperança, que estão longe de avistar.
 
O Outro Lado da Esperança é um filme cujo autor facilmente se adivinha numa qualquer “prova cega”. Tem um bouquet marcado pelas notas características do universo de Kaurismäki, tanto tematicamente e visualmente, como ainda musicalmente. Nos seus filmes, é habitual termos personagens mais ou menos à margem da sociedade, solitários, inadaptados, pessoas vulneráveis e desprotegidas, sujeitas a poderes dominantes, para quem não passam de números, ou maltratadas por outros que, por sua vez, são decerto maltratados. Daí que, nos filmes, paire sempre uma inevitável angústia ou tristeza. O seu bouquet, no entanto, inclui outros traços: um humor inteligente, não espalhafatoso, comunicado de forma impassível ou não sinalizado, e apontado aos absurdos da existência. É particularmente paradigmático deste gosto e aptidão para as situações trágico-cómicas o seguinte diálogo entre Khaled e Mazdak (um outro refugiado sírio, com quem o primeiro faz amizade).
 
Khaled: Pareces feliz e satisfeito.
Mazdak: Finjo. Os melancólicos são os primeiros a ser deportados. 
 
Outro traço característico dos filmes de Kaurismäki são os interlúdios musicais, com predominância de géneros “desusados” como: blues, rockabilly ou tango. Aqui, os “entreactos” são tocados ao vivo, ora por bandas de velhos rockers, em bares, ora por músicos que tocam na rua, na esperança de receber algumas moedas. Estes micro-documentários no interior da ficção são o meio que Kaurismäki diz ter engendrado para dar visibilidade e deixar registo de músicos finlandeses pouco conhecidos. Contudo, é mais do que isso. Para quem anda à deriva ou fustigado por permanentes tempestades, a música, de par com o álcool, é como um porto de abrigo, nos filmes de Kaurismäki.
 
O universo kaurismäkiano tem também cores e interiores muito próprios. Nas paredes são recorrentes os azuis-esverdeados, predominando, desta vez, o azul-petróleo. A disposição do mobiliário, objectos e pessoas remete ora para os quadros do pintor Edward Hopper, ora para os filmes de Yasujiro Ozu, um realizador que muito admira e a quem atribui a responsabilidade por ele próprio se ter tornado realizador. O sentido estético de Ozu é assumidamente fonte de inspiração para Kaurismäki, transparecendo, por exemplo, nos objectos do dia-a-dia que coloca em cena, escrupulosamente escolhidos, em número muito reduzido e dispostos em rigorosas composições visuais.
 
Todavia, o que torna o seu bouquet tão único são os gestos de entre-ajuda, gentileza, coragem ou amor que resgatam as personagens, quando menos esperamos, das torpezas e misérias humanas.
 
Este cocktail de sofrimento, comicidade e humanismo, dirigido tanto ao coração como ao cérebro, pode não ser suficiente para motivar o nosso ingresso numa qualquer instituição dedicada a voluntariado, mas deixa-nos certamente dispostos a fazer melhor. Kaurismäki diz que gosta de pessoas, mas que quanto à humanidade como um todo, não tem tanta certeza. Este paradoxo atravessa as suas obras, onde, por um lado, expõe as injustiças e sofrimentos a que estão sujeitos os homens comuns e, por outro, nos comove com a capacidade desses homens para resistir ao absurdo e crueldade do mundo, com a sua generosidade, altruísmo e solidariedade. Haverá filmes mais apropriados para os tempos que correm? 
 
 

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