Não há forma de descrever O Som da Terra a Tremer sem parecer que estamos a narrar uma alucinação, um sonho dentro de um sonho. O filme mistura a realidade de um escritor chamado Alberto com a sua obra que escreve, sobre um marinheiro chamado Luciano, onde não se distingue a realidade da ficção, onde não se separa as vivências de um homem artístico com as fantasias da sua personagem de carne e osso. No filme não tarda muito em que, sem perder o fio à meada, os fios narrativos se entrelaçam e o espectador é lançado a um enredo que terá de decifrar por si próprio. Rita Azevedo Gomes dá-nos pistas, mas somos nós que temos de encontrar a realidade de Alberto e a ficção de Luciano enquanto flutuamos numa poesia visual soberba e esmagadora.
A realizadora inspirou-se em duas grandes obras para a elaboração do argumento, Paludes de André Gide (sobre um autor recluso num pântano que simboliza os intelectuais de Paris do século XIX), e Wakefield de Nathaniel Hawthorne (sobre um homem que sai de casa com o pretexto de que vai viajar, mas que se instala num quarto do outro lado da sua rua). Embora o meio literário sirva de grande inspiração, este parece ser insuficiente perante a riqueza narrativa do filme, em que as imagens visuais nem sempre correspondem com a narração e o tempo nem sempre se adapta à realidade. Afinal, onde acaba o artista e onde começa a sua obra? Onde acaba a obra e começa o artista? É possível sequer fazer a separação entre Alberto e Luciano?
A resposta não é definitiva, mas é sempre subjectiva, e cabe a cada um de nós interpretá-la. O filme evoca o teórico e filósofo Roland Barthes que, no seu célebre ensaio de 1967, A Morte do Autor, defende que a interpretação do leitor se deve sobrepor a tudo aquilo que conhecemos do escritor. O texto não se deve definir pelas intenções do autor pois a obra é sempre filtrada pela subjetividade atribuída pelo leitor. Sendo assim, o autor “morre” para que a narrativa passe a ser de quem lhe atribui significado. Isto implica que cada um de nós interpreta a vida de Alberto e a história de Luciano de uma forma muito individualizada. Cabe a nós definir o que é ficção e o que é realidade (e se esta existe), e onde Alberto morre e Luciano vive.
O filme apresenta grandes incógnitas sobre as suas personagens que, por sua vez, levam a grandes implicações. Se Alberto não pode ser definido pelas suas experiências (que podem ser inventadas) ou pelas suas relações (que podem ser imaginadas), como podemos definir tal homem? Como podemos definir a sua personagem? E, talvez o mais importante, como se define a ele próprio?
Se a resposta a estas questões é através da sua obra, então Alberto apenas pode ser definido pela representação de Luciano, que é tão incerta como o seu nome e como a sua própria narrativa. O escritor espelha-se na sua ficção de forma frágil e cruel, ilustrando sem rodeios a solidão e a tristeza que o persegue e atormenta. Ele cria a sua própria miséria, construindo a sua vida numa muralha de arrependimentos. Talvez o som da terra a tremer seja o som dos muros que ele próprio ergue à sua volta.
Sem comentários:
Enviar um comentário