terça-feira, 13 de outubro de 2020

179ª sessão: dia 15 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Na terceira semana de Outubro (curioso mês) continuamos na União das Repúblicas Sociais Soviéticas para mostrar o homem e o olho perdido pela urbe moderna de Dziga Vertov, nascido David Abelevich Kaufman, através da sua obra mais conhecida, O Homem da Câmara de Filmar, que é a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Na sua introdução ao livro de escritos do realizador soviético, Kino-Eye - The Writings of Dziga Vertov (University of California Press, 1984), Annette Michelson escreveu que "a investigação epistemológica e o projecto de um cinema revolucionário convergem nesse mundo de verdade visto pelo olho cinemático. E Vertov é o grande descobridor desse mundo. O seu trabalho é paradoxalmente concreto, a instância original e paradigmática de "uma tentativa de filmar, em câmara lenta, aquilo que aconteceu, em consequência da forma como é apreendida em velocidade natural, não absolutamente invisível mas perdida pela vista, sujeita ao equívoco. Uma tentativa de abordar de forma lenta e calma essa intensidade original que não é dada em aparência, mas da qual as coisas e os processos, no entanto, por sua vez derivaram."

"A evolução do seu trabalho torna insistentemente concreto, como numa série de ícones cinéticos, aquele fantasma filosófico da consciência reflexiva: o olho a ver, apreendendo-se a si mesmo à medida que constitui a visibilidade do mundo: o olho transformado pelo projecto revolucionário num agente de produção crítica.

"O caso de Vertov é muito especial: uma história com quarenta anos da recepção mais céptica e hostil e de uma sistemática negligência crítica. Claro que o cepticismo e a hostilidade não são únicos; mas a negligência continuada, o cepticismo e a perplexidade partilhados por parte de espectadores geralmente perceptivos e qualificados e a literatura evasiva e inadequada sobre o filme de Vertov dão que pensar. A história do cinema soviético é uma das áreas mais elaboradamente documentadas e consagradas do meio. Claro que é verdade que há muita pesquisa sobre a história do cinema soviético que continua por se fazer e refazer, para ser resgatado do molde prejudicial da piedade, mas a ausência de atenção dedicada e séria até muito recentemente torna o caso de Vertov efectivamente singular. Metido à pressa e distraidamente no balde do lixo da história do cinema, os seus maiores trabalhos foram deixados a marcar o tempo, ao longo de quatro décadas, como bombas-relógio."

Em resposta ao jornal Kinofront, em 1930, Dziga Vertov disse que "até agora, não houve um único documentário ou filme actuado a responder totalmente às exigências políticas feitas pelo cinema revolucionário. Lançado numa altura de crise cinematográfica (crise não tanto temática - havia temas infindáveis - como de meios de expressão), lançado como um filme com um propósito em particular - o de preencher a lacuna no interior da linguagem cinematográfica, e a cineficação da fotografia "de pau", O Homem da Câmara de Filmar não reivindica substituir ou destituir os nossos outros trabalhos. Mas nem sequer a soma total destes filmes pode esperar ter respondido (ou responder) totalmente e de forma oportuna a todas as exigências políticas que o partido criou e devia criar para o cinema revolucionário.

"É essencial triplicar a nossa energia, re-organizar a produção e a distribuição cinematográfica com base na "proporção Leninista," organizar uma fábrica de filmes documentais, nomear quadros de trabalhadores de produção cinematográfica ao longo de toda a frente do Plano Quinquenal. O método de competição socialista vai ajudar os trabalhadores de filmes documentais a aproximar-se de uma melhor e mais completa realização das exigências políticas do partido."

Já Henri Langlois, em texto reunido nos Écrits de Cinéma (Flammarion, 2014), e descrevendo o trabalho de Vertov, escreveu que "considerando a imagem já filmada como um valor em si, ele quis fazer dela o elemento de base da arte cinematográfica, quis, na verdade, utilizar o documento nascido intervindo apenas a posteriori, com a escolha do documento e com a sua organização, dando à montagem um valor primordial e absoluto. Por isso, foi um dos grandes pioneiros do cinema.

"O Homem da Câmara de Filmar é apenas um dos seus últimos filmes mudos, o único que nos está acessível actualmente, e se a data da sua realização não nos permite situar Vertov neste programa dentro da sua data e do seu lugar histórico : antes de Ruttmann, esse arrependimento é amplamente compensado pela vantagem de tornar sensível a sua arte, as suas teorias e a sua ciência com o seu filme mudo que consideramos mais representativo.

"Dificilmente se pode imaginar montagem mais fulgurante, ao ponto de fazer da imagem um valor secundário e de nos fazer esquecer a teoria do Cine-Olho."

Até Quinta!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Arsenal (1929) de Aleksander Dovjenko



por André Miranda

Numa casa pobre uma mulher ocupa o espaço central. Cabeça voltada para baixo. Os braços caídos ao longo do corpo. Uma posição de completa angústia. A imagem repete-se. Outras mulheres, nas mesmas posições, espalhadas pela aldeia. Vemos homens desfeitos fisicamente. Um deles conduz um cavalo tísico pelo campo infértil. O desespero transborda, e o homem lança-se sobre o animal numa brutalidade primitiva. Ao mesmo tempo, a mãe agride os filhos que choram de fome. O czar, por sua vez, escreve no diário: "Hoje matei um corvo. O tempo está agradável." 
 
O império russo afunda-se na primeira guerra mundial. Os jovens são enviados para as trincheiras. As explosões sucedem-se. O gás mostarda corre pelo ar. Os soldados saltam dos buracos imundos onde se protegem da morte e atiram-se sobre a terra de ninguém. Vão matar outros homens como eles. Avançam com um ódio que não lhes pertence, seguindo as ordens de oficiais que nunca viram o rosto sorridente de um cadáver, sujo pela terra e pela pólvora. Mas do outro lado não está ninguém. Um deles pergunta: "Onde está o inimigo?" É morto pelas costas por um oficial. 
 
Encomendado pelo partido, o objectivo do filme era comemorar o levantamento dos trabalhadores ucranianos da fábrica de arsenal em Kiev, que desencadeou a revolta bolchevique na Ucrânia. A vitória que significou o fim daquele país enquanto estado livre e independente. Dovjenko era ucraniano. Não se sabe até que ponto sentimentos conflituosos existiram em si durante a realização. A verdade é que vários intelectuais do partido sentiram que o filme não cumpria os requisitos de uma obra que, acima da estética, devia ser propagandística. "Arsenal Falso" ou "Em vez de um épico, uma farsa", eram os títulos dos jornais ucranianos. A rebelião, que devia ser o ponto fulcral, não o era, queixavam-se. Em vez da celebração da alma proletária, Dovjenko perdia-se na crueldade da guerra, nos homens mutilados que regressam a casa, nas mulheres que perderam os filhos e os maridos, nas crianças que já não têm a quem chamar pai. 
 
Talvez para os membros zelosos do partido, Arsenal não atingisse o pináculo do que deve ser uma obra que ensina o povo e canta a glória de um destino que se cumpre. Ou talvez Dovjenko tivesse tomado demasiada liberdade artística. Mas a verdade é que a alma revolucionária está presente. E um só momento demonstra-o em toda a sua glória: uma mulher aguarda junto a um buraco aberto na terra coberta de neve; três homens entregam-lhe o corpo do filho caído pela causa e dizem: "Não temos tempo para explicar. A nossa vida e a nossa morte são revolucionárias."

terça-feira, 6 de outubro de 2020

178ª sessão: dia 8 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Chegados à segunda semana de Outubro, voltamos às revoluções e à vida que nasce das cinzas - a sangue e violência na Ucrânia do início do século vinte. Vamos acompanhar um soldado desiludido que sobreviveu ao flagelo da primeira grande guerra para desafiar as autoridades e tentar instaurar o sistema soviético na sua Kiev natal. O filme é Arsenal, foi realizado por Aleksander Dovjenko e é a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Em forma de apresentação do cineasta soviético, cuja obra nunca tínhamos exibido, relembramos palavras de Henri Agel, que escreveu no seu belo livro Les Grands Cinéastes que Je Propose que "de certa forma, o autor de Michurin é o anti-Zola na medida em que a imagem, nele, não é a figuração mas a própria expressão de uma fé ardente na fecundidade do futuro. Se o autor de Paris gosta das metáforas que sugerem essa fecundidade, Dovjenko vê-as através de um temperamento que só se podia exprimir plenamente pelo cinema. A sinfonia da colheita em A Terra, os girassóis em grande plano do início de Shchors, a envergadura beethoveniana do Outono de Michurin não revelam apenas o amor imenso do autor pela sua terra, o seu enraizamento na pátria ucraniana: comunicam também a presença vitoriosa dessa matriz eternamente jovem que dita ao homem o seu destino épico. Entre os cineastas dessa época, nenhum senão Dovjenko estava convencido da vocação gloriosa e transformadora do homem soviético. O seu panteísmo instintivo unia as grandes revoluções cósmicas à afirmação incessantemente alargada das possibilidades humanas. Ao longo do estudo substancial que lhe dedicou no nº 648 de Lettres françaises, Sadoul lembra o acto de fé de Dovjenko: «Não há uma época na história mais heróica que a nossa nem pela envergadura dos acontecimentos nem pelo seu poder nem pela profundidade ilimitada dos seus significados.» Esta convicção nunca mais se desmentiu desde o primeiro grande filme de Dovjenko, Zvenigora, do qual Eisenstein exaltou o poder de imaginação poética, até à evocação da Idade de Ouro orquestrada em Michurin e O Poema do Mar.

"As obras explicitamente épicas de Dovjenko são animadas pelo mesmo lirismo: a Sibéria de Aerograd e as grandes extensões nevadas de Shchors ampliam a luta dos soldados russos, no primeiro contra os japoneses, no segundo contra as tropas alemãs de ocupação em 1918; mas são a vibração do estilo e a sua diversidade de expressão que nos agarram: em Arsenal, a imobilização das máquinas paradas pelos grevistas lembra o emprego que Eisenstein fez da imobilidade no final do Couraçado Potemkine. O descarrilamento com que se inaugura Arsenal aproxima-se pelo seu poder rítmico das primeiras imagens de Shchors, que nos mostram o tumulto da guerra, os cavalos nas searas de trigo, os incêndios e as explosões. O que sempre houve de recolhido e de imponente na montagem soviética atinge aqui uma plenitude espantosa. Mas o lirismo de Shchors oferece outra surpresa: alia-se à brincadeira, aproxima-se do picaresco, alterna com o cómico ou insere-se em pleno coração da tragédia, tal como nos episódios centrados no valente amigo do herói: o seu discurso no palco, atrás de um canhão, o seu desespero com a perda da mulher que só se acalma com o presente de um sabre. A envergadura épica regressa só no episódio do seu cortejo fúnebre que nos mostra em plano aproximado a sua maca sobre um fundo todo a crepitar de galopes. A este filme adequar-se-ia plenamente o que Eisenstein escreveu de Zvenigora: «O charme de uma concepção de espírito completamente particular; de um encontro harmonioso entre a realidade objectiva e a inspiração poética; elementos mitológicos introduzidos no mundo moderno; humor e patético, verdadeiro Gogol.» (in «Ciné-club», nº 5) Esta referência a Gogol é bastante esclarecedora: em suma, o que falta aos grandes contemporâneos russos de Dovjenko, talvez seja essa possibilidade de relaxamento, a descontração da epopeia num sorriso de malícia, como em Homero. E se Dovjenko lembra Brueghel pelo menos em Shchors, não é apenas pela beleza das paisagens de neve mas por um certo gosto regional que não é a mais pequena das atracções do cinema soviético no que tem de melhor."

Para a Senses of Cinema, Miguel Marías escreveu que "ver Arsenal (Arsienal) de Aleksander Dovjenko hoje em dia pode-se revelar uma experiência estranhamente impressionante; pode parecer ao espectador tanto um filme muito remoto – não só pela sua idade, mas também devido ao abismo sempre crescente entre a sua concepção visionária do que os filmes deviam ser e aquilo a que estamos agora habituados a aceitar como cinema – e, depois de alguma reflexão, um filme muito moderno, talvez mesmo demasiado moderno para nós. Não sendo um filme narrativo clássico, Arsenal é imediatamente visto como uma sucessão rápida de imagens aparentemente não relacionadas. Algumas das suas imagens têm a crueza, a simplicidade e a urgência de metragem documental ou de actualidades, enquanto outras parecem bastante formalistas, mesmo expressionistas ou exageradas, jogando com as bordas do enquadramento ou com simetrias invertidas enquanto empregam formas bem variadas de alcançar um estado de abstracção. 
 
"Várias séries de planos aparentemente não relacionados são montados como se não houvesse diferença alguma na sua respectiva natureza, categoria, ou grau de estilização. Arsenal, por um lado, tem um aspecto bastante primitivo e apresenta alguns desvios notáveis dos princípios do realismo-socialista que supostamente já estavam a ser impostos pelas autoridades fílmicas/políticas soviéticas na altura do seu lançamento (como o cavalo que fala, obviamente em intertítulos, já que o cinema soviético iria permanecer mudo durante muitos mais anos). Por outro lado, Arsenal é reminiscente e antecipativo da liberdade associativa característica de Godard, Straub/Huillet ou os primeiros Makavejev. O efeito global de Arsenal está bastante em discordância com outros filmes soviéticos familiares feito na mesma altura, como A Linha Geral ou O Velho e o Novo (1929) de Eisenstein – mesmo que estes possam ter sido influenciados até certo ponto pelo filme de Dovzhenko. Parte do fascínio do trabalho de Dovzhenko reside em contradições destas, embora tenha ameaçado a continuidade do trabalho do autor como cineasta."

Já João Bénard da Costa escreveu na sua folha da Cinemateca sobre o filme que "(...) o que em Zvenigora era poema (o tal poema em doze cantos) volve-se aqui em "poema sinfónico", em epopeia de sons e imagens, a que Dovjenko chamou «histórico-revolucionária». O que nos leva, desde logo, a uma questão histórica. Arsenal é um filme, ainda, da época do mudo (o sonoro só se generalizou na URSS a partir de 1931, quatro anos depois da estreia de The Jazz Singer). Mas, sempre, Dovjenko se recusou a ver ou a pensar este filme sem acompanhamento musical, à época a partitura de Igor Belza. Por isso, me decidi a projectar a versão sonorizada reconstituída há dez anos, de tal modo a versão totalmente muda desta obra fica amputada. Outros filmes de Dovjenko (como da maior parte dos grandes mestres russos) foram recentemente sonorizados. Mas se, por exemplo, as bandas sonoras que conheço introduzidas em Zvenigora ou em A Terra são pleonásticas, imitativas ou nada acrescentam, em Arsenal o contra ponto imagem-som é fundamental. E é-o porque todo o filme, ao contrário dos citados assenta na ideia de montagem e dou carradas de razão ao crítico francês Barthélémy Amengual quando este sustenta que «nenhum filme soviético foi mais longe nas vias do 'cinema de montagem', nem mesmo o de Eisenstein». Arsenal é um ano posterior a Outubro de Eisenstein e é contemporâneo de A Linha Geral. Comparem-se essas obras a esta e, em minha opinião, o filme de Dovjenko ilustra melhor do que os de Eisenstein, a célebre definição do último da montagem: «uma espécie de post-pintura evoluindo para uma espécie de pré-música - música dos olhos». Pode-se conjecturar sobre a influência exercida por Eisenstein sobre Dovjenko, o Eisenstein de A Greve, Potemkin ou Outubro. Ela é evidente e comprovada. Mas a «libertação de toda a acção de definições de tempo e espaço», «a dramaturgia do visual» nunca foram, quanto a mim, levadas tão longe como nesta obra-prima, sobretudo nos primeiros vinte minutos dela. John Reed, referindo-se à Revolução de Outubro, falou, como "toda a gente" sobre «dez dias que abalaram o mundo». Em Arsenal apetece falar de 15 minutos (os tais iniciais) que abalaram o mundo das imagens, introduzindo na dinâmica cinemática semelhante revolução."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Un chien andalou (1929) de Luis Buñuel



por João Palhares

Aproveitando a transição do ciclo Buñuel para este terceiro ciclo em parceria com os Encontros da Imagem, depois de “O Belo e a Consolação” em 2018 e “What Now?” em 2019 (este ano o tema é “Génesis”, descrito e apresentado como “tudo isso: a origem ou criação e, como em todas as criações e também na arte, a génese sucede à destruição”), decidimos voltar-nos para o início da carreira do cineasta espanhol. Não apenas para jogar com essa analogia entre o tema que Carlos Fontes nos pôs nas mãos e o nascimento de um cineasta, ou associar esses vários começos possíveis ao início do cinema, mas também para louvar este filme-vanguarda que sobreviveu à própria vanguarda do surrealismo como acto verdadeiramente revolucionário, subversivo e fundador. Pleno de som e de fúria e ainda hoje perfeitamente indecifrável. 
 
«Todos nós éramos apoiantes de um certo conceito de revolução», ditou Luis Buñuel a Jean-Claude Carrière na sua auto-biografia, «e apesar dos surrealistas não se considerarem a si mesmos terroristas, estavam constantemente a combater uma sociedade que desprezavam. A arma principal deles não eram pistolas, claro; era o escândalo. O escândalo era um agente potente de revelação, capaz de expor crimes sociais como a exploração dum homem por outro, o imperialismo colonialista, a tirania religiosa—em suma, todos os alicerces secretos e odiosos de um sistema que tinha de ser destruído. O verdadeiro propósito do surrealismo não era criar um novo movimento literário, artístico, ou mesmo filosófico, mas explodir com a ordem social, transformar a própria vida. No entanto, logo a seguir à fundação do movimento vários membros rejeitaram esta estratégia e entraram na política “legítima”, especialmente o partido comunista, que parecia ser a única organização que merecia o epíteto de “revolucionária”.» 
 
Entre as muitas imagens do filme que se tornaram icónicas, dos seminaristas e dos pianos com cadáveres de cavalos em cima arrastados pela personagem do “homem” à mão com formigas, passando pelo homem sem boca ou as mamas que se transformam em nádegas, os corpos mortos finais no início da Primavera, a mais misteriosa talvez continue a ser mesmo a mais famosa: uma navalha rasga a córnea do olho esquerdo duma mulher enquanto uma nuvem atravessa uma lua cheia. É Buñuel quem desfere o golpe, o que não pode ser um dado insignificante. Pode-se pensar nas criações e nos partos que brotam da destruição, na ordem pelo fim da ordem, na vida que renasce das cinzas, mas talvez fique sobretudo essa sensação de que é possível viver de olhos abertos e não conseguir ver nada, ser preciso abrir mais os olhos, chegar ao cúmulo de ficar cego para passar a ver (o 7th Heaven de Frank Borzage em que Chico diz a Diane que “now that I'm blind, I can see that” é dois anos anterior a esta curta e Buñuel pode muito bem tê-lo visto). Planos inaugurais depois do “Era uma vez...” O realizador afia a navalha e olha para o céu nocturno, na atitude parece denunciar a censura de que andamos a olhar para as coisas sem as ver, que nos temos de preparar para a verdadeira revolução e deixar de nos fiarmos nos nossos sentidos, que há demasiados preconceitos a toldar-nos a mente e o juízo. Quase cem anos depois, depois de mais de um século de cinema, de todas as provações possíveis e imagináveis no mundo exterior, passámos a ver melhor? Porque é que há grandes profetas da mitologia que são cegos? Quando já se viu tudo, os olhos passam a meros acessórios? No Evangelho Segundo Mateus, livro 5, versículo 29, lê-se que “se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o” e Luis Buñuel arranca o esquerdo. Porquê? 
 
Talvez não haja respostas, e nem se descreveu mais que o primeiro minuto de filme, prelúdio profético e muito adequado para a loucura que se segue, para os seus enigmas e para as suas muitas transgressões estéticas, religiosas, sociais, narrativas... Às vezes a única despedida ou conclusão possível é desejar uma boa noite e bons sonhos a todos.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

177ª sessão: dia 1 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Outubro é mês dos Encontros da Imagem e do habitual ciclo que o cineclube programa por essa ocasião, desta feita centrado no tema de "Génesis". Assim, e como uma espécie de transição, começamos por ir às origens e à estreia como realizador do homem que nos ocupou os meses de Julho e Setembro, Luis Buñuel, com o tratado emotivo, onírico e demencial que deu pelo nome de Um Cão Andaluz. É a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Referindo-se, na sua autobiografia, ao tempo em que começou a experimentar com a montagem e os guiões, Buñuel disse que "uns meses mais tarde, fiz Um Cão Andaluz, que resultou dum encontro entre dois sonhos. Quando cheguei para passar alguns dias na casa de Dalí em Figueras, contei-lhe um sonho que tinha tido em que uma nuvem comprida e aguçada cortava a lua a meio, como uma navalha a cortar um olho. Dalí contou-me imediatamente que tinha visto uma mão coberta de formigas num sonho que tinha tido na noite anterior. 
 
"E se começássemos mesmo por aí e fizéssemos um filme?” perguntou-se ele em voz alta. 

"Apesar da minha hesitação, vimo-nos logo a trabalhar no duro, e em menos de uma semana tínhamos um guião. A nossa única regra era muito simples: Nenhuma ideia ou imagem que se pudesse prestar a uma explicação racional de que tipo fosse seria aceite. Tivemos de abrir todas as portas ao irracional e manter apenas aquelas imagens que nos surpreendessem, sem tentar explicar porquê. A coisa espantosa foi que nunca tivemos o mais pequeno desentendimento; passámos uma semana de identificação total."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa apresenta o filme escrevendo que "em 1925, Luis Buñuel, que nasceu com o século e tinha, portanto, tantos anos quantos ele, partiu para Paris. Para trás, ficava a infância de señorito em Saragoça e Calanda, oito anos nos jesuítas e outros oito em Madrid, a saltar de curso em curso e a conviver com a chamada "geração de 27", de que faziam parte, entre outros, Lorca, Alberti, Dalí, Bergamín, seus amigos íntimos e a quem ficou a dever, nas suas próprias palavras, a orientação futura da sua vida. Já escrevera e publicara poemas, já encenara e representara peças (o D. Juan Tenório de Zorrilla, com Lorca), mas o cinema era apenas um passatempo. «Nessa época» - diz no seu fabuloso livro de memórias Mon Dernier Soupir - «nunca me passou pela cabeça que um dia viria a ser cineasta».

"Foi em Paris que isso lhe começou a passar pela cabeça, quando viu Der Müde Tod de Fritz Lang (pelos vistos, dos filmes que mais vocações de cineastas terá despertado) e quando essa revelação o tornou apóstolo. De 26 a 28, escreveu regularmente sobre cinema para revistas espanholas e francesas e foi assistente de realização de Jean Epstein (Mauprat, La Chute de la Maison Usher) e de Henri Étiévant (La Sirène des Tropiques). Conhecido o "meio", relacionando-se bem, a partir de 27-28, só tem uma ideia: ser cineasta.

"Paris é também o lugar do seu encontro com o grupo surrealista e o tempo da sua adesão expressa ao movimento. Alguns projectos falhados e, finalmente, Um Cão Andaluz."

Já Miguel Marías, em texto publicado na revista Nuestro Cine, escreve que "este filme, aparentemente, é tão absurdo como irreal. O seu onirismo é indubitável e o seu carácter «fantástico» não pode ser rejeitado. Mas se pensamos na definição que André Bretón dá de «surrealidade» no primeiro «Manifeste du surréalisme» (1924), «fusão do sonho e da realidade numa realidade absoluta», veremos que Buñuel não pretendia fazer um filme «irreal», mas estava a tentar chegar ao real por um caminho mais profundo que o chamado «realista». Outra citação de Bretón vai servir para situar o aspecto fantástico deste filme na sua verdadeira dimensão: «o que há de admirável no fantástico é que já não há nada de fantástico: não existe mais nada a não ser o real». 

"Um Cão Andaluz não narra uma história. Os intertítulos destroçam a cronologia, porque as indicações temporais sucedem-se nesta ordem: «Era uma vez…», «Oito anos depois», «Por volta das três da madrugada», «Dezasseis anos antes», «Na primavera», sem que as imagens nos permitam re-estabelecer uma ordem nos acontecimentos disjuntos —mas formal e significativamente relacionados— que o filme nos mostra. Esta destruição do sentido do tempo real é a base de muitos dos filmes mais avançados dos últimos anos, de forma tão manifesta que torna desnecessário citar títulos.

Até Quinta!

Em Outubro, no Lucky Star:




quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Nazarín (1959) de Luis Buñuel



por António Cruz Mendes

Nazarín, Grand Prix do Festival de Cannes de 1959, é, disse-o Buñuel nas suas memórias, “um dos meus filmes favoritos”. Trata-se de uma adaptação de uma novela do ciclo espiritualista de Benito Pérez Galdós (1843-1929). No seu filme, Buñuel foi fiel ao nomadismo, ao pacifismo e ao idealismo do Padre Nazário, a personagem criada pelo escritor espanhol, mas altera o final da narrativa conferindo-lhe um caráter mais pessimista: no livro, Nazário consegue superar os seus infortúnios e imagina-se, no final, a pregar a toda a humanidade; no filme, abandonado por todos, caminha, sob a guarda de um soldado e ao som dos tambores, para o lugar onde a justiça dos homens o condenará. 
 
Dos sete aos catorze anos, Buñuel, que se dizia um “ateu pela graça de Deus”, foi educado num colégio jesuíta de Saragoça e essa experiência haveria de o marcar para o resto da sua vida, refletindo-se claramente na sua obra cinematográfica, onde, muitas vezes, descobrimos na forma como vivem a fé cristã, personagens divididas entre uma recusa do autoritarismo e um anseio de espiritualidade, entre a tentação dos prazeres sensuais e o sentimento do pecado. 
 
Quem é o Padre Nazário? A sua figura tem sido, por vezes, comparada à de Jesus, outras, à de D. Quixote. Segundo Buñuel, seria um “Quixote do sacerdócio que, em vez de seguir o exemplo das novelas de cavalaria, segue o dos Evangelhos”. Então, as duas mulheres que o acompanham na sua peregrinação seriam Sancho Pança ou os apóstolos… Nazário é, antes de tudo, um homem generoso e altruísta, que se despoja do pouco que tem para o oferecer àqueles que julga serem mais necessitados. E, como tal, numa sociedade onde todos pensam, antes de tudo, em si mesmos, é tido como um louco ou como um santo. Em todo o caso como um corpo estranho na sociedade a que pertence. Mesmo aos olhos da Igreja, o seu comportamento ofende a “dignidade sacerdotal”. Buñuel transpôs para o México a história de Pérez Galdós e foi acusado de ter inventado um México que não existe. Nunca aí, disse-se, três prostitutas insultariam um sacerdote. Mas, essa história, respondeu Buñuel, poder-se-ia ter passado no México ou em qualquer outra parte do mundo onde um homem assim apareça. 
 
Obrigado a fugir da povoação, descalço, porque ofereceu as suas botas a uma pessoa doente, e mal vestido, porque as suas roupas foram roubadas por alguém que se apresentou como um padre, Nazário inicia uma peregrinação que é uma verdadeira subida ao Calvário. Das suas melhores intenções, resultam consequências nefastas. Cuida uma mulher ferida numa rixa e é acusado de esconder uma assassina, oferece-se para trabalhar em troca de comida e provoca um tiroteio entre o patrão e os outros trabalhadores, procura consolar uma moribunda, mas ela não quer Deus, mas Juan, o seu marido, que o expulsa de sua casa. 
 
Depois de preso, quando parece reviver a experiência do “bom e do mau ladrão”, pergunta ao primeiro: “Gostavas de mudar a tua vida?” e explica-lhe como isso seria fácil. Mas, ele responde-lhe: “E tu, gostarias de mudar a tua?” E acrescenta: “Tu pelo bem e eu pelo mal… Nenhum de nós serve para nada”. 

No final, Aranda, a prostituta acusada de assassínio, foi presa e obrigada a abandonar um amor finalmente encontrado. E a bela e amável Beatriz acabou por se render de novo ao macho que a despreza, mas subjuga. 
 
Quanto a Nazário, prisioneiro e à guarda de um soldado, encontra uma vendedora que lhe oferece um ananás que ele começa por recusar. Mas, depois, arrepende-se, volta atrás e é abraçado ao fruto que prossegue o caminho que o há-de conduzir à prisão ou à morte. Será essa a única recompensa da sua vida?