quinta-feira, 21 de agosto de 2025

A Raiz do Coração (2000) de Paulo Rocha




por João Palhares
 
A televisão portuguesa de todos os dias às vezes consegue sintetizar muito bem uma ideia complexa ou o chamado ar dos tempos. É quase sempre por acidente, quase nunca ao perseguir os furos jornalísticos da berra, levados a cabo de forma escabrosa e repetitiva, metralhados parece que incessantemente aos nossos olhos e ouvidos. Para desligar a televisão, acto prazeroso em que se aponta para ela com o comando como se fosse uma arma e com um falso sentido de justiça, porque não é isso que vai mudar o que quer que seja, é preciso que ela esteja ligada. E por uns segundos pode-se apanhar um momento insólito e revelador. Neste caso foi no Domingão de dia 3 de Agosto, na SIC, uma imagem entre tantas que se produzem sem pensar muito neste país e cujo interesse vem muito mais da disrupção de certos intérpretes, da conglomeração de pessoas e dos reflexos momentâneos de alguns profissionais no cruzamento de todo esse movimento.
 
Débora Monteiro está na borda de um chafariz a meio daqueles monólogos intermináveis em que pede aos telespectadores que liguem para o número que os vai tornar ricos se se comprometerem a pagar o valor acrescentado. Chega um grupo de raparigas vestidas de igual que começam a olhar para a câmara a fazer o gesto do telefone com as mãos. A apresentadora fica contentíssima por a virem ajudar, até porque se presume que não seja um trabalho que os profissionais de televisão gostem particularmente de fazer. A dada altura, as raparigas começam-se a alinhar ao lado dela e o operador de câmara começa a brincar com as diagonais que isso cria na imagem. Até começarem a andar paralelamente aos movimentos da câmara e se começarem a atropelar umas às outras para ficarem em primeiro plano, o que chateia a apresentadora que diz que quer fazer o seu trabalho. Em pano de fundo, esse tempo todo, está um homem vestido de mulher, que podia ser o João Baião mas por acaso não era, a brincar com crianças no meio do chafariz.
 
O cinema português, apesar de muito menos visto pelos portugueses, sempre foi conseguindo lidar com o passado e com o presente do seu país. Para o futuro, talvez precisasse de um ou dois visionários. E encontrou um em Paulo Rocha, que ao longo dos anos se mostrou sempre à frente (e atrás e acima e abaixo e de todos os lados) das expectativas. Quem tivesse visto o Verdes Anos ou o Mudar de Vida, nos anos sessenta, não esperaria com certeza A Pousada das Chagas e A Ilha dos Amores nas décadas seguintes, e no seguimento desse período das grandes peregrinações e empreitadas japonesas como prever os completos desvarios de O Rio do Ouro ou A Raiz do Coração na viragem do milénio? “O Paulo vivia muito exaltado,” disse Pedro Costa em entrevista a Ricardo Vieira Lisboa em 2017, “com uma energia muito juvenil, eu vi o entusiasmo dele com o No Quarto da Vanda, com a novidade das pequenas câmaras Mini-DV. Eu dizia-lhe: “Faça você o seu próximo filme sozinho, ou só com um assistente”, e ele era muito desse género: os projetos e as rodagens d’A Pousada das Chagas ou d’A Ilha de Moraes ou do Máscara d’Aço ou dos vídeos mais confidenciais que ele fez nos últimos anos, provam-no. Apenas com um punhado de jovens ao lado, que lhe pintassem umas manchas de cor nas paredes ou lhe lançassem um foguete à frente da lente. Ou isso, ou uma armada mizoguchiana de figurantes e gruas.”[1]
 
Pode-se tentar de várias formas, talvez até seja produtivo, mas não é nada fácil descrever A Raiz do Coração. É um musical, com banda-sonora de José Mário Branco, mas a maior parte dos números musicais surgem nos primeiros vinte e cinco minutos (o percurso contrário de alguns dos musicais de Busby Berkeley nos anos 1930, por exemplo). É um filme de ficção científica, também, que no ano da estreia de 2000 seria uma projecção do ano de 2010, embora na montagem final não restem pistas sobre isso e o nosso ano de 2025 pareça uma projecção ainda mais acertada. E como escreveu Miguel Blanco Hortas, também “estamos no Portugal do ano 2000, a meio caminho entre a Expo 98, a chegada do Euro e a futura celebração do Europeu de futebol, tudo acontecimentos vendidos como grandes avanços e que trouxeram um desequilíbrio económico brutal, uma inflação disparada e iniciaram o processo de transformação de uma cidade de orientação popular bem vincada no parque de atracções turístico que hoje em dia se vive.”[2]
 
Os opostos atraem-se. Ou talvez gostássemos que atraíssem, se não achássemos mais confortável a apatia da boa educação. E tudo em A Raiz do Coração se parece construir de opostos que se conciliam pela coerência de uma visão e pela harmonia ou pela resolução temerária de um travelling. A noite e o dia, os corvos e as pombas, os fascistas e os santos, os polícias e os travestis, o ódio e o amor, a morte e o sexo, a película e o digital. Catão, o líder de um partido de extrema-direita, está obcecado por Sílvia, uma transexual que a dada altura pergunta à sua protectora se acha “que uma pessoa que faz o mal pode ser boa.” E também os polícias se adornam de malhas de bondage, também os travestis se apaixonam por agentes da autoridade e os chamam do outro lado da morte, do único lugar onde o amor parece ser possível. E também os travestis são obrigados a espancar e a matar, o Santo António abençoa a Sílvia chamando-lhe menino em pleno voo pela cidade de Lisboa, e a câmara de Paulo Rocha, impaciente, vingativa, exultada, destemida, move-se constantemente, com os corpos dos actores e com os seus movimentos, ou para os foder ou para os matar. Do oito ao oitenta. E tudo o que está no meio também. Volta-se por associações a Michael Cimino e ao grande não-dito que assombrava o também fabuloso O Ano do Dragão, “se se combate uma guerra tempo o suficiente, acaba-se a casar com o inimigo.”
 
Na primeira parte do documentário em quatro partes sobre a rodagem de O Rio do Ouro, Marginália [3], Paulo Rocha diz que “(...) eu sempre achei detestáveis as filmagens muito amigáveis, muito harmonizadas, em que as pessoas são todas aparentemente muito amigas e têm uma voz monocórdica. Isso aborrece-me e acho que a maior parte dos filmes não têm tensão, nem luta, por causa disso. Em parte, como já estou a ficar mais velhote e preguiçoso, algumas pessoas quis ter presentes só pelo prazer de as ter presentes. Ver o que é que daria ter por ali, sentado a filmar, algumas pessoas, que eram em parte espelhos ou fontes de inspiração. (...) E por outro lado tentei integrar gente nova, muito nova, com vinte e poucos anos, do que eu achava que era gente de Lisboa, que representa novas sensibilidades, em muitos casos completamente contrárias às minhas, mas que eu gostava de, como um vampiro, poder integrar um bocadinho. (...) Portanto há realmente muitas famílias e eu sei que isso provoca conflitos.”
 
Se isto vale para O Rio do Ouro, também há-de valer para A Raiz do Coração, outro filme de “armadas mizoguchianas” que se inaugura com um espectáculo de variedades em que Luís Miguel Cintra, irreconhecível, vestido de noiva de Santo António com a cara pintada de preto e acompanhado por dois corvos gigantes, Luís Miguel Cintra, que neste filme tem três papéis, quatro se acrescentarmos o falso Santo António encarnado por Catão, debita já todos os temas, todos os motes e todos os desafios para esta obra coral e assumidamente desalinhada, no sentido camiliano do termo. A câmara filma o espectáculo sem cortes, recua para mostrar a sala e o público e focar uma bandeja com um copo e uma garrafa de champanhe, que são seguidos por um travelling e levados por um empregado para o actor. Ele chora o destino da sua cidade, assolada pelo vício e representada em miniatura a seus pés, enquanto tenta enxotar em vão os corvos que lhe roubam o véu e acabam por destruir a cidade mesmo quando começa o último movimento de câmara acompanhado pelos acordes de fim do mundo de José Mário Branco e cai o pano transparente com o título do filme: “A RAIZ DO CORAÇÃO – um filme de PAULO ROCHA”.
 
Este título virá de um romance tradicional de Trás-os-Montes, como diz o genérico, mas também se encontra numa balada registada e anotada por Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti no primeiro volume inteiramente dedicado a canções transmontanas de uma antologia da música portuguesa, fruto das suas viagens à região entre os anos de 1958 e 1961, continuando o trabalho do pioneiro alemão Kurt Schindler, que nos anos 1920 tinha percorrido 12.000 quilómetros entre Espanha e Portugal e gravado cerca de quinhentas canções. A balada chama-se Dona Filomena e foi gravada em Tuizelo, no concelho de Vinhais, pela voz de Ana do Rio, e também é conhecida por títulos como Dona Francisquinha, Grancalinda, Care-Linda ou Dona Felismina. Descreve o encontro de uma mulher com um soldado desconhecido, que a acha bonita e lhe dá a mão. Ela diz-lhe, “Meu marido foi à caça / lá prós campos d´aragão. / Se quiseres qu´ele cá não volte / roga-lhe uma maldição: / Os corvos lhe comam os olhos / e a raíz do coração.”
 
A aldeia e a cidade, mais dois pólos opostos e aparentemente irreconciliáveis. Para Paulo Rocha, na aldeia, a ordem reina, mas só a custo de justiças tribais e vinganças violentas. A cidade parece ser o refúgio perfeito para a diferença, o campo de batalha de todas as aberrações. E o caos talvez seja um conjunto de pessoas de várias origens e ambientes que lutam sozinhas e entre si por uma ordem que não existe. No pico dos combates de cantigas da noite de Santo António, depois das investidas cantadas dos grupos de travestis, polícias e fascistas entre os casais que dançam entre uma espécie de coreto e uma fonte de pedra, com a sua própria canção, um miúdo, que tinha dito à mãe, ao apontar para um travesti, “ó mãe, ó mãe, quando eu for grande eu quero ser assim,” consegue escapar-lhe das mãos outra vez e vai para dentro da fonte com uma pequena barca que vai puxando muito devagarinho. E com uma candura semelhante, a câmara aproxima-se da barquinha e acompanha-a até ao fim da fonte, já sem o miúdo, onde encontra o reflexo da Sílvia de Joana Bárcia, que também já foi um menino chamado Sílvio e com a sua canção parece conciliar e resolver todas as diferenças e vencer o embate das melodias, das contradições e das identidades.
 
“A senhora sabe que eu sou um poço sem fundo,” diz Janeiro quando a personagem de Isabel Ruth, a Ju, o visita no que parecem ser as escadas da Assembleia da República. “Quando olho para dentro de mim, até me perco.” Como seria se em 2001, em vez de nos atirarem poeira para os olhos com as alegrias e as maravilhas do progresso que desembocaram nos tempos em que hoje vivemos, se em vez de nos dizerem sobranceiramente a propósito deste filme para não procurarmos “correspondências directas com o real fora de nós. Não vejam aquele político como imagem de outro político, não olhem aqueles travestis como os que vagueiam à noite pela cidade, não queiram encontrar chaves, a busca será estulta e frustrante, não as há.”[4] A Raiz do Coração provocasse a polémica e tivesse o sucesso que merecia no seu próprio país? Uma panóplia de Diáconos Remédios abastardados, da extrema-direita aos praticantes do politicamente correcto, passando pelos mais clássicos diáconos da Igreja Católica, pregando sempre a própria virtude, encontravam um bode-expiatório comum, enfrentavam-se, exorcizavam-se, acabavam por se entender entre si e com todos, e o filme era exibido na televisão, era editado em DVD, circulava por todo o país. O José Mário Branco não seria obrigado a dizer, quando confrontado com a pergunta sobre a possível edição de uma banda-sonora, que “teria que se fazer um trabalho com a finalidade específica do disco – embora com as mesmas músicas, temas e palavras e até, se calhar, as mesmas vozes e instrumentos. É sempre uma possibilidade, mas seria preciso que alguém estivesse disposto a investir.”[5] Ouviu-se tantas vezes e disse-se outras tantas que nem sequer se considerou por um momento que pudesse ser errado, mas depois deste filme já não se consegue esquecer: o único vilão desta fantasia dramática é um agente duplo chamado Vicente Corvo, que dita a sua sentença de morte ao dizer a Sílvia, sem pensar duas vezes, “cuidado com os sonhos…”
 
“Xô, corvo!” 
  

[1] in «”Talvez fosse uma loucura, talvez começasse a escavar outro filme nesse filme…”. Entrevista com Pedro Costa sobre o restauro de Os Verdes Anos e Mudar de Vida, de Paulo Rocha», Aniki, vol. 6 nº 1, 2019. Disponível em: https://aim.org.pt/ojs/index.php/revista/article/view/495 (consultado a 12 de Agosto de 2025).

c Publicado em espanhol no letterboxd, a 22 de Fevereiro de 2023: https://letterboxd.com/migblah/film/the-hearts-root/ (consultado a 12 de Agosto de 2025).

[3] Disponível em: https://lugardoreal.com/video/marginalia-i-preambulo (consultado a 12 de Agosto de 2025).

[4] in «A Caldeira do Inferno», Jorge Leitão Ramos, Expresso, 13 de Janeiro de 2001. Disponível em: https://cinemaportuguesmemoriale.pt/Filmes/id/540/t/a-raiz-do-coracao (consultado a 12 de Agosto de 2025).

[5] in «José Mário Branco – Entrevistas para a imprensa 1970-2019», Ricardo Andrade, Hugo Castro e António Branco (org.), Edições tinta-da-china, Lisboa, 2025, pág. 445. Entrevista publicada originalmente no jornal Blitz, a 2 de Janeiro de 2001, com o título de «José Mário Branco – inéditos no grande ecrã».

 

Folha de Sala 

 

sábado, 16 de agosto de 2025

412ª sessão: dia 18 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


“A Raiz do Coração”, esta segunda com o Lucky Star – Cineclube de Braga no Theatro Circo

Em Agosto, o Lucky Star - Cineclube de Braga apresenta quatro filmes menos conhecidos do realizador português Paulo Rocha. O título do ciclo “Paulo Rocha e os Paroxismos” evoca a intensidade narrativa, estética e simbólica que atravessa toda a obra do cineasta. O cinema de Paulo Rocha é feito de excessos sensoriais, rupturas formais e momentos de exaltação — paroxismos que desafiam a narrativa convencional e aproximam o espectador de uma experiência cinematográfica sensível e transformadora. As sessões deste ciclo ocorrem às segundas-feiras durante o mês de Agosto, no Theatro Circo, às 21h30.

Esta segunda, 18 de Agosto, é exibido o filme A Raiz do Coração. O musical político de Paulo Rocha que desafia convenções. Lisboa, em plena campanha eleitoral e sob o calor das festas de Santo António, torna-se palco de uma fábula político-sexual onde o real se mistura com o fantástico. A história acompanha um candidato populista em ascensão que se envolve com Silvia, uma travesti sedutora e enigmática, e cuja relação ameaça ruir as suas ambições. Entre perseguições, chantagens e rituais populares, cruza-se também Vicente, um polícia implacável, e Ju, figura ambígua que tudo observa. Num clima de festa e tensão, cada personagem enfrenta as raízes mais profundas do coração.

Produzido ao longo de vários anos de maturação criativa, o projeto nasceu da vontade de fundir géneros improváveis: musical, farsa, romance e distopia. A banda sonora, composta por José Mário Branco, e diálogos por Regina Guimarães, marcam o compasso da ação e intensifica a atmosfera de excesso e sedução. O elenco é liderado por Luís Miguel Cintra, que interpreta múltiplas personagens, e por Joana Bárcia, Melvil Poupaud e António Durães, acompanhados por Isabel Ruth num dos seus papéis mais enigmáticos. 

Estreado em 2000 no Festival de Locarno e exibido no Festival de Cinema de Turim, A Raíz do Coração conquistou ainda duas nomeações nos Globos de Ouro portugueses — Melhor Atriz (Isabel Ruth) e Melhor Atriz Secundária (Joana Bárcia). Entre elogios à ousadia formal e divisões críticas quanto ao seu excesso estético, o filme permanece uma peça singular do cinema português contemporâneo. Nesta sessão especial, os espectadores terão a oportunidade rara de revisitar — ou descobrir — um título que, mais de duas décadas depois, continua a desafiar convenções e a expandir os limites da narrativa cinematográfica em Portugal.

As sessões do Lucky Star ocorrem durante o mês de agosto no Theatro Circo às segundas-feiras, às 21h30. A entrada custa quatro euros para público geral e dois euros com o cartão quadrilátero. Os sócios do cineclube têm entrada livre, mediante disponibilidade de lugares e reserva antecipada.

Até segunda!


terça-feira, 12 de agosto de 2025

Máscara de Aço contra Abismo Azul (1988) de Paulo Rocha



por António Cruz Mendes
 
Máscara de Aço contra Abismo Azul foi realizado em 1988. Em 1887 nasceu Amadeo de Souza-Cardoso e o início do filme oferece-nos uma perspectiva da inauguração da grande exposição de obras do pintor realizada por essa ocasião na Fundação Calouste Gulbenkian. A imagem de visitantes ilustres e de figuras irreconhecíveis recortam-se e entrecruzam-se como sombras projectadas sobre o painel Começar, de Almada Negreiros, no átrio do edifício da Fundação. Visitam a exposição, ouvem-se fragmentos das habituais conversas de circunstância e, estranhamente, entre os convidados, circulam trabalhadores que transportam painéis com réplicas de fragmentos de grandes dimensões de obras do pintor.
 
O filme de Paulo Rocha é assim: entre o documentário e a ficção, uma colagem de imagens suportada pelo comentário em off de vozes de um homem e de uma mulher. Pertencem a Máscara de Ferro e Abismo Azul, duas personagens criadas pelo pintor. O primeiro encarna perfil masculino, enérgico e arrogante; a segunda uma imagem feminina delicada e sensual. Vemo-las logo nas imagens iniciais, habitando um cenário construído com fragmentos de pinturas de Amadeo. Anunciam a realização de um “jantar de artistas” onde, a convite de Almada Negreiros, se teriam reunido conhecidas figuras do modernismo português. E, enquanto Abismo Azul tenta celebrar Almada, Máscara de Ferro proclama num tom autoritário: “Nos próximos cem anos será assim: “Amadeo-Pessoa, Pessoa-Amadeo. Mais ninguém”! Serão elas que nos vão conduzir ao longo do filme numa visita guiada à vida e à obra de Amadeo.
 
Paulo Rocha, informa-nos o próprio realizador, não pretendeu realizar um “documentário didáctico” sobre a obra de Amadeo de Souza-Cardoso, nem um “retrato psicológico do artista”. Em vez disso, quis apoiar-se em relatos da vida de Amadeo e em imagens das suas obras para nos dar uma visão impressiva dos primeiros tempos do modernismo em Portugal, tempos de ruptura polémica com tradições naturalistas fortemente enraizadas. Para isso, diz-nos ainda Paulo Rocha, “tentei filmar esse período da sua pintura com um estilo diferente, como se a câmara fosse um pincel na mão do próprio Amadeo, com as suas cores e as suas formas”.
 
Como se sabe, o ecletismo é uma característica da obra de Souza-Cardoso. Em Portugal, o distanciamento da tradição naturalista começou pelo apreço dado por alguns artistas à caricatura e é também por aí que ele começa. Porém, ao contrário de Rafael Bordalo Pinheiro ou de Leal da Câmara, Amadeo não se interessa pela caricatura com o instrumento de crítica política, mas pela possibilidade que ela lhe oferece de experimentar novas formas. Entretanto, com o apoio do seu pai e do estimado tio Chico, parte para Paris, para estudar arquitectura. Um projecto que rapidamente abandona para se entregar à pintura. No meio artístico parisiense, relaciona-se com pintores, escultores e poetas e descobre o cubismo e o futurismo. Os futuristas celebram a máquina e a velocidade e tentam captar imagens de corpos em movimento. O motivo dos cubistas é estático, pode ser uma natureza-morta, quem se movimenta é o artista, que nos oferece dele uma justaposição de imagens fruto da sua observação sob diferentes perpectivas. Amadeo é um experimentalista. Não se sujeita a nenhum código de representação. Desenha figuras, animais e paisagens com formas estilizadas e ressonâncias simbolistas. Inspiram-no a arte africana e motivos da tradição popular. Recorre tanto aos processos do cubismo, como aos do futurismo e ensaia a abstracção. Para ele, o mundo da arte é um território onde não existem fronteiras e não teme fazer pinturas que, sabe-o bem, desagradam ao gosto dominante e, inclusive, ao daqueles que lhe são caros, como o tio Chico.
 
O filme permite-nos retomar os passos da aventura de Amadeo nesse mundo em larga medida desconhecido dos portugueses. Imagens da casa de Manhufe levam-nos às suas origens, uma família abastada de proprietários rurais, tradicionalista e monárquica, que, no entanto, não quis cortar as asas aos sonhos do jovem Amadeo que, desde criança, mostrava um grande interesse pelo desenho. Mostra-nos retratos da família e dos seus amigos e confidentes, imagens das suas obras, ouvem-se depoimentos de Lúcia, com quem haveria de casar, do próprio pintor, interpretado por Vítor Norte, e extractos da sua correspondência. Contam-se episódios da sua vida. A câmara percorre a superfície das suas obras intercalando essas paisagens pictóricas com outras dos sítios que frequentou. Representam-se cenas da vida do pintor, interpretadas por Vítor Norte. Num cenário construído à imagem das suas obras, Máscara de Aço e Abismo Azul, recitam versos de Rimbaud. O carácter fragmentário do cubismo transporta-se para o filme que assim nos vai oferecendo as peças de um puzzle que nos permitirão construir o quadro da sua vida.
 
Perto do final, sequências alternam imagens de pinturas de Amadeo com imagens da Grande Guerra. O seu eclodir obrigou o pintor a regressar a Portugal, onde exposições das suas obras realizadas no Porto e em Lisboa, em1916, foram motivo de controvérsia e escândalo. Quando a guerra terminou e Souza-Cardoso preparou-se para regressar a França, foi atingido pela “gripe espanhola” e morreu. Lúcia Souza-Cardoso conseguiu preservar os seus quadros. Porém, foram precisos algumas décadas para que o seu valor fosse plenamente reconhecido. Só mais tarde, as palavras de Almada Negreiros ditas a propósito da exposição realizada na Liga Naval de Lisboa terão sido totalmente compreendidas: “Amadeo foi a primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX. Portanto, começa já hoje, vai à exposição na Liga Naval de Lisboa, tapa os ouvidos, deixa correr os olhos e diz lá que a vida não é assim”. 
 
 

sábado, 9 de agosto de 2025

411ª sessão: dia 11 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


“Máscara de Aço contra Abismo Azul”, esta segunda com o Lucky Star – Cineclube de Braga no Theatro Circo

Em Agosto, o Lucky Star - Cineclube de Braga apresenta quatro filmes menos conhecidos do realizador português Paulo Rocha. O título do ciclo “Paulo Rocha e os Paroxismos” evoca a intensidade narrativa, estética e simbólica que atravessa toda a obra do cineasta. O cinema de Paulo Rocha é feito de excessos sensoriais, rupturas formais e momentos de exaltação — paroxismos que desafiam a narrativa convencional e aproximam o espectador de uma experiência cinematográfica sensível e transformadora. As sessões deste ciclo ocorrem às segundas-feiras durante o mês de Agosto, no Theatro Circo, às 21h30.

Esta segunda, 11 de Agosto, é exibido o filme Máscara de Aço contra Abismo Azul (1988) O título, retirado de duas das suas obras, simboliza a tensão entre a tradição e a modernidade, mas também entre o crítico e a inspiração artística, presença tanto na pintura como neste gesto cinematográfico de Rocha. 

Com interpretações de Fernando Heitor, Inês de Medeiros, Vítor Norte, entre outros, a obra percorre episódios da vida do pintor e referências ao universo modernista, como o movimento Orpheu e as influências do Futurismo. Exibido inicialmente em Lisboa, em 1988, o filme viria a integrar a programação do Festival de Pesaro, em Itália, no ano seguinte, e tem sido ao longo do tempo redescoberto em ciclos e retrospetivas — como em 2017, aquando da sua reposição em cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa e lançamento em DVD, no âmbito das comemorações do centenário do artista.

Máscara de Aço Contra Abismo Azul é uma viagem visual e sensorial pela arte moderna portuguesa, onde Paulo Rocha funde o vanguardismo de Amadeo de Souza-Cardoso com as inquietações do presente. Entre colagens de imagens, sons e texturas, fragmentos históricos e pulsões poéticas, o filme explora as contradições da criação artística, confrontando a rigidez das formas (a “máscara de aço”), com a fluidez da imaginação. 

Mais do que uma biografia filmada, é um exercício de liberdade formal, onde o cinema se aproxima da pintura para dar corpo a um dos nomes mais inquietos e inovadores da arte portuguesa do século XX.

As sessões do Lucky Star ocorrem durante o mês de agosto no Theatro Circo às segundas-feiras, às 21h30. A entrada custa quatro euros para público geral e dois euros com o cartão quadrilátero. Os sócios do cineclube têm entrada livre, mediante disponibilidade de lugares e reserva antecipada.
 
Até segunda-feira! 




quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Desejado ou As Montanhas da Lua (1987) de Paulo Rocha



por Alexandra Barros
 
O Desejado começa com uma morte anunciada e termina com um nascimento. No início do filme, João (a figura central do filme) é chamado à cabeceira do moribundo, Manuel, seu “padrinho”, para ser incumbido de uma missão na Índia, de contornos políticos. Esta missão colocará em marcha os acontecimentos que culminarão no nascimento que fecha o filme. O bebé, que João toma à sua guarda, é oficialmente fruto dos amores de Tiago e de Antónia. Tiago é possivelmente filho de João. João é possivelmente (mas não assumidamente) filho (bastardo) de Manuel. Manuel é assumidamente pai de Antónia. Antónia está no centro de um triângulo amoroso, formado por Tiago, João e ainda um misterioso terrorista italiano.
 
Entre a morte anunciada do talvez-pai e o nascimento do talvez-filho, João envolve-se em jogos amorosos e políticos, conquista mulheres e poder, é desejado por todas e todos, sem nunca dar totalmente o que esperam dele e sem nunca (se) entender completamente o que quer dos outros. Acende paixões e provoca expectativas, mas mantém-se aquém do que nele é projectado. As mulheres esperam dele um amor exclusivo e devotado, que nunca se cumpre. A classe política espera dele a salvação do país, mas as suas vitórias e glórias políticas são necessariamente efémeras. Como D. Sebastião, João tem uma corte de crentes que se agarram aos mais diversos desejos, embora, no fundo, possivelmente saibam que nunca serão realizados. Um desejo, mesmo que condenado à frustração, pode ainda assim ser preferível quer ao vazio deixado pela impossibilidade de regressar a um passado saudoso, quer à antevisão de um futuro sem brilho.
 
O Desejado é baseado numa obra-prima da literatura japonesa, Genji Monogatari[1], escrito há mil anos por Murasaki Shikibu. A adaptação deste clássico japonês foi o primeiro projecto que Paulo Rocha desejou realizar[2], ainda nos seus tempos de estudante de cinema. Embora tal ambição não seja surpreendente, dada a sua profunda admiração e conhecimento da cultura japonesa, é notável que tenha conseguido realizar o projecto mais de vinte anos depois, transformando a história de um “aristocrata” japonês do século XI num retrato de Portugal no pós-Revolução de Abril. Nas palavras de Paulo Rocha: "Durante os dez anos que passei no Japão, percebi que, aos poucos, os rostos de alguns dos meus amigos portugueses se sobrepunham às personagens do livro do príncipe Genji: os seus amores, as suas agonias, os seus suicídios e as suas ambições políticas tinham muito em comum com a história fantástica escrita há mil anos"[3]. Talvez esta sobreposição não seja assim tão singular ou assombrosa se considerarmos que as complexidades do amor e do desejo, a transitoriedade do sucesso e do poder e os ciclos de ascensão e queda são traços da natureza humana, ou das sociedades, que atravessam espaços, tempos e culturas.
 
O Desejado é ainda alicerçado num traço identitário português, desde logo sinalizado no título do filme. O sebastianismo, mito português com vertentes nacionalistas, utópicas e messiânicas permeia a sociedade portuguesa desde que o “Encoberto” desapareceu na Batalha de Alcácer Quibir, em 1578. Em tempos conturbados ou de crise, invoca-se recorrentemente um salvador da pátria: D. João IV (salvador da independência), o Marquês de Pombal (salvador reformista), Mouzinho de Albuquerque (salvador do império ultramarino), Salazar (salvador da soberania e da tradição), Álvaro Cunhal (salvador da revolução social), Mário Soares (salvador da democracia), Sá Carneiro (o salvador que foi sabotado), Passos Coelho (salvador do país endividado)... Até o primeiro-ministro actual se apresenta como alguém que salvará o país se o deixarmos trabalhar. Os traumas e sonhos do povo português, simbolizados ou evocados pelo sebastianismo, são talvez até mais visíveis agora do que nos anos que se seguiram ao 25 de abril. Veja-se quão elevada é a frequência das seguintes atitudes, tanto na classe política como às mesas dos cafés: a nostalgia de um Portugal idealizado; a glorificação do passado e a frustração com o presente; as desilusões sistemáticas e rapidamente suscitadas por cada novo governo; a crença em líderes supostamente capazes de resolver os problemas de forma “mágica”; as dificuldades em reconhecer e aceitar os erros do nosso passado imperial, colonial e ditatorial, sem querer apagá-los da história ou carregá-los eternamente na forma de culpa colectiva.
 
No final, Paulo Rocha acrescenta ao xadrez do filme tecido com linhas de vários passados e de vários presentes, umas ténues linhas de futuro. O filme termina com um nascimento, que poderá simbolizar crença no porvir, num recomeço. O bebé, que João toma nos seus braços, configura uma oportunidade de começar de novo, de fazer melhor. No entanto, o bebé vem marcado pela tragédia de um duplo suicídio e pelas dúvidas acerca da sua paternidade. A nebulosidade que envolve tanto a paternidade de Tiago (o pai oficial do bebé) como a paternidade de João (o putativo pai), estende-se sobre esta criança, que tanto pode ser filho de um como do outro. Estaremos perante um recomeço ou um novo ciclo marcado pelas mesmas dores e feridas do passado (infidelidade, perda, incerteza, fraqueza, fracasso, abandono, rejeição, solidão, …)? 
 

[1] O Romance de Genji

[1] “Desde os meus tempos do IDHEC que queria filmar O Romance de Gengi [...]  É o meu projecto mais antigo.”, in “Paulo Rocha No Cinema Português”, de Carlos Melo Ferreira, disponível em: https://cinema.fcsh.unl.pt/index.php/revista/article/view/86

[1] Citação transcrita do Catálogo do Festival Internacional de Cinema de Veneza de 1987 (evento em que o filme estreou) e disponível em: https://www.torinofilmfest.org/en/13-festival-internazionale-cinema-giovani/film/o-desejado/les-montagnes-de-la-lune/1761