terça-feira, 27 de março de 2018

87ª sessão: dia 30 de Março (Sexta-Feira), às 21h30


Terminando a primeira parte desta aventura pelo cinema francês, lembramos o grande Jean Vigo, poeta supremo e farol para tantos cineastas e cinéfilos, autor de uma obra construída em apenas quatro anos mas que ficou imortalizada. O Atalante, única longa-metragem do realizador, será a nossa próxima sessão, antecedida por uma curta-metragem (Voyage à travers l'impossible) doutro grande sonhador, Georges Méliès.

François Truffaut, em Les Films de ma vie, escreveu que "O Atalante tem todas as qualidades de Zero em Comportamento e também outras como a maturidade e a mestria. Aqui encontram-se, reconciliadas, duas grandes tendências do cinema, o realismo e o esteticismo. Na história do cinema, houve grandes realistas como Rossellini e grandes estetas como Eisenstein, mas poucos cineastas estiveram interessados em combinar as duas tendências, como se fossem contraditórias. Para mim, O Atalante contém tanto À Bout de Souffle de Godard como Noites Brancas de Visconti, isto é, dois filmes incomparáveis, que estão mesmo nos antípodas um do outro, mas que representam o que se fez de melhor em cada género. No primeiro, trata-se de acumular pedaços de verdade que, ligados uns aos outros, vão levar a uma espécie de conto de fadas moderno; no segundo, de partir de um conto de fadas moderno para encontrar uma verdade global no fim da viagem.

"Enfim, acho que se subestima O Atalante com frequência vendo nele um pequeno tema, um tema "particular" a que se opõe o grande tema "geral" tratado em Zero em Comportamento.

"O Atalante aborda realmente um grande tema, raramente tratado no cinema, os começos de um jovem casal na vida, as dificuldades em se adaptarem um ao outro, primeiro com a euforia do acasalamento (o que Maupassant chama: "o brutal apetite físico rapidamente extinto"), depois os primeiros conflitos, s revolta, a fuga, a reconciliação e finalmente a aceitação de um pelo outro. Sob este ângulo, vemos que O Atalante não trata um tema mais pequeno que Zero em Comportamento."

Bernard Eisenschitz, que já nos apresentou The Lusty Men e também realizou um documentário sobre as várias versões que o filme de Jean Vigo foi tendo ao longo dos anos (Les voyages de L'Atalante), disse a Michel Guilloux que "Vigo representa outra via para o cinema, que não foi abordada antes dele: trazer emoções intimamente pessoais para o écrã - o que é diferente da autobiografia -, fabricar um cinema de expressão directamente pessoal mas através do próprio cinema.

"Essa prática está em total ruptura com o cinema da época. No mesmo ano, Renoir vê o seu Madame Bovary ser amputado por uma hora e La Chienne remontado pelo seu produtor, antes de conquistar o cinema francês do "interior da fortaleza", de acordo com a fórmula de Godard. Vigo, esse, propõe outra coisa, ainda hoje irredutível. Há qualquer coisa de rebelde nos seus filmes, seja qual for o momento em que os vejamos. Evidentemente, teria preferido que Zero em Comportamento fosse escolhido para a bandeja! mas a rebelião do Atalante é a do próprio cinema."

Sobre Voyage à travers l'impossible, damos a palavra a Jacques Lourcelles, que escreveu no Dictionnaire que o filme "ocupa os números 641 a 659 da Star-Film (septuagésimo oitavo dos cento e quarenta títulos conservados até à data de 1981). É uma espécie de remake e ampliação de Viagem à Lua. No seu estudo sobre «Le premier Wells», Borges escreve: «Verne escreveu para a adolescência, Wells para todas as idades do homem. Há outra diferença entre eles, já indicada pelo próprio Wells na altura: as ficções de Verne são sobre o devir provável [...], as de Wells sobre o puro possível.» Méliès, que se terá inspirado em Verne e Wells, mistura sem vergonha e sem complexos as duas fontes. Para ele, a ficção cinematográfica engloba o documentário e a ficção científica, a descrição do real e do imaginário, o sonho sobre o provável e o possível. Esses limites, que a ficção científica moderna quer apagar (cf. The Andromeda Strain de Wise), negou-os ele desde a origem. Inventor do espectáculo cinematográfico, Méliès sente que tudo aquilo que aparece sobre uma tela deve ser por essência espectacular, ou seja, fascinante e credível, quer se trate das actualidades reconstituídas ou do deslumbramento mais delirante. Essa intuição pulveriza as distinções falaciosas, e a história do cinema (a despeito dos próprios historiadores) vai-lhe dar inteiramente razão. Efectivamente, um filme como Una voce umana de Rossellini (uma mulher ao telefone sozinha num aposento durante 35 minutos) e Os Dez Mandamentos de DeMille são tão espectaculares um como o outro. Notemos brevemente que, com as suas actualidades reconstituídas, Méliès ter-se-á antecipado na política-espectáculo. A sua formação de mágico era a melhor possível, não só para inventar o espectáculo cinematográfico, como para lhe fixar os valores essenciais, ainda válidos hoje em dia. A mise en scène consiste efectivamente, como a magia, em dirigir e em se apropriar do olhar do espectador, em fazer com que ele veja aquilo que se quer que ele veja, excluindo tudo o resto. As qualidades psicológicas e as intenções do mágico são também aquelas do verdadeiro cineasta. Tanto um como o outro nos fazem duvidar da realidade, ao a substituir pela deles. Eles tornam o deslumbramento inseparável da inquietude, o fantástico e o humor indissociáveis da vertigem. No plano técnico, alguns exegetas modernos querem que haja montagem em Méliès a todo o custo, como se isso aumentasse a sua modernidade. Pelo contrário, os planos longos e generosos aos quais estava restrito e que apenas desejava enriquecer através de uma profusão de trucagens, e eventualmente de personagens, vão-se unir ao cinema mais moderno, ou antes: vão ser reencontrados por ele. Dando a ver ao espectador a porção do real que escolheu (pela posição da câmara e pelo enquadramento), fornecendo-lhe uma (falsa) impressão de liberdade em relação ao conteúdo desse enquadramento, o seu cinema anuncia, para citar apenas dois nomes, o de Tati e o de Fritz Lang. A reflexão sobre Méliès está só a começar; ela sem dúvida que não está para acabar porque, nesse precursor genial, as noções de base do cinema como espectáculo já se encontram largamente exploradas."

N.B. Resta esperar que antes da celebração do primeiro centenário do nascimento do cinema possamos ver finalmente toda a obra existente de Méliès (à volta de catorze horas de projecção; encontram-se alguns filmes todos os anos), não em selecções temáticas caprichosas mas na sua rigorosa continuidade cronológica. Isso nunca foi proposto ao público."

Até Sexta!

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