quarta-feira, 14 de junho de 2023

Les enfants du paradis (1945) de Marcel Carné



por João Palhares

9 de Agosto de 1943, em Nice, nos estúdios da Victorine. Marcel Albert Carné, parisiense e filho de marceneiro, inicia a rodagem daquela que será a sua sétima longa-metragem, Les enfants du Paradis. O interesse e o tema surgem-lhe quando está com Jacques Prévert, o seu argumentista, e encontram por acaso Jean-Louis Barrault na Promenade des Anglais e este lhes começa a contar várias histórias sobre as suas experiências no mundo do teatro e sobre o lendário Baptiste Deburau. O episódio que os convenceu, apesar de não estar no filme, foi o do julgamento de Debureau pelo homicídio às claras dum bêbado que lhe insultou a namorada da altura no meio da rua. Bateu-lhe com uma bengala na cabeça e o golpe foi demasiado forte. Foi metade de Paris assistir ao julgamento, principalmente para conhecer a voz do mais famoso dos mimos. 
 
Prévert e Carné não acharam que esse episódio desse um filme, porque se usassem Barrault como actor (como acabaram por usar, e para encarnar mesmo a personagem de Baptiste, mas sem esse episódio na acção do filme) a sua voz não seria uma novidade e se apostassem num desconhecido ninguém estaria curioso em saber como era a voz dele. E Prévert não viu ali nada, de todo, mas Carné pensou que a personagem e a época podiam dar uma bela história: Baptiste Deburau, o rei da pantomima no século XVIII, o modelo e o ídolo dos miúdos da rua, Frédérick Lemaître, um dos actores preferidos de Victor Hugo, que lhe confiou vários papéis nas suas peças e lhe chamou mesmo “o actor supremo”, e o poeta assassino e guilhotinado Pierre-François Lacenaire. Todos apaixonados pela mesma mulher, uma “Garance” inventada mas que é o espelho das paixões e dos sonhos deles, da sua época e do seu ambiente entre idas e vindas pelo famoso Boulevard du Temple, “a alameda do crime” que os viu nascer, amar e morrer. 
 
O enorme cenário do Boulevard du Temple, construído no mesmo estúdio em que se tinha erguido o castelo de Les Visiteurs du Soir, o filme anterior de Carné, tinha 150 metros de comprimento e mais de cinquenta fachadas de prédios com uma altura de quinze metros, e era capaz de abarcar perto de 2000 figurantes. Foi desenhado por Alexandre Trauner, que teve de trabalhar clandestinamente a partir duma cabana isolada nos arredores de Nice com Léon Barsacq a servir de testa-de-ferro para enganar o regime de Vichy, que interditava judeus de trabalhar em produções de cinema. Havia membros da Resistência a trabalhar no filme, também, e pessoas que se tentavam inscrever como figurantes apenas para poder comer alguma coisa durante a rodagem. Os agentes da Gestapo visitavam a rodagem à paisana e com artimanhas e histórias elaboradíssimas, tentando e uma vez conseguindo levar membros da Resistência consigo. Entre avanços e recuos pela França livre e pela França ocupada, também ditadas pelo avanço das tropas alemãs, Robert Le Vigan, actor que já tinha trabalhado com Carné no seu primeiro filme, Jenny, e em Le quai des brumes, acabou substituído por Pierre Renoir, por ter fugido para Sigmaringen depois de colaborar com o regime nazi e ter abertamente insultado os judeus em programas de rádio. 
 
A rodagem foi interrompida em Setembro de 1943 por circunstâncias de guerra, no caso uma ofensiva dos Aliados perto de Nice, e a produção teve de levar todas as bobines filmadas e todo o equipamento e sediar-se em Paris, deixando os cenários como estavam na zona ocupada. Depois duma troca muito complicada de produtores, retomaram os trabalhos a 9 de Novembro nos estúdios da Pathé onde se construiu o cenário do Grand Théâtre, com capacidade para 600 figurantes. Quando voltaram a Nice no início do ano seguinte para terminar a rodagem, ele tinha sido totalmente destruído por um furacão que tinha assolado a costa sul de França, o que significou um atraso considerável e um custo acrescido de quase um milhão de francos para o reconstruir. O orçamento total do filme acabou nos 58 milhões de francos, quando na altura o custo médio duma produção de cinema em França rondava os 15 milhões. O filme terminava e a guerra estava para terminar, com o desembarque da Normandia, portanto Marcel Carné tinha agora apenas um desejo: “fazer arrastar o mais possível os trabalhos de finalização do filme, para que ele fosse apresentado como o primeiro da paz finalmente recuperada.”[1]
 
A produção de Les enfants du Paradis foi o canto de cisne do grande momento de glória da indústria de cinema francesa, arrasada pela segunda guerra mundial e por Hollywood a partir dos anos quarenta. Os seus grandes vultos foram, além de Carné, Jean Renoir, Marcel Pagnol, Jean Grémillon, Julien Duvivier, René Clair, Claude Autant-Lara, ou Jean Delannoy. Nos anos cinquenta, François Truffaut escreveu um texto fundador nos Cahiers du Cinéma, «Une certaine tendence du cinéma français», em que fez tábua rasa de praticamente toda a história do cinema do seu país mantendo Jean Renoir e Jean Vigo como únicos mestres duma nova geração de cineastas, sendo bastante injusto para com Carné nesse texto e nos anos seguintes, e tornando aceitável e de bom tom para outros desprezar a sua obra e dos colegas da sua geração. Algum tempo mais tarde, no entanto, disse à frente de Marcel Carné e duma audiência de quatrocentas pessoas que “eu fiz vinte e três filmes, e abdicava deles todos para ter feito Les enfants du Paradis.” 
 
No seu texto muito elogioso no «Dictionnaire du Cinéma - Les films» sobre esta obra, Jacques Lourcelles acaba a escrever que ele está “tão afastado de nós como um retábulo da Idade Média”. Face a um filme com quase oitenta anos, que descreve acontecimentos com quase duzentos anos, feito numa altura em que não havia televisão nem digital e o cinema ocupava palcos de guerra, salvava vidas, destruía outras, movia multidões e dependia dum aparato técnico que já nem conseguimos emular numa projecção, ficamos totalmente desarmados e apenas com o assombro disto ter sido possível. Há filmes que estão para lá da crítica e para lá da imagem, e contêm nos seus silêncios e nas suas margens a ideia e a concepção dum outro mundo, e foram agentes de verdadeira mudança nesse mundo. Les enfants du paradis é um deles.

[1] Quase toda a informação presente neste texto foi retirada dum documento precioso escrito pelo próprio realizador sobre a rodagem do seu filme, intitulado «Ce que fut la réalisation des Enfants du Paradis» e datado de 1980. Está disponível para leitura no site marcel-carne.com.



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