quarta-feira, 27 de março de 2024

We Can't Go Home Again (1973) de Nicholas Ray



por António Cruz Mendes

We Can’t Go Home Again foi apresentado pela primeira vez em Cannes, em 1973, à margem do Festival e, depois disso, dado como perdido. Sabe-se que Nicholas Ray, que tinha feito mais de 9 horas de filmagens, não se encontrava particularmente satisfeito com essa montagem de 110 m. e continuou depois disso a tentar novas versões. Trabalhava ainda nesse filme quando morreu em 1979. Podemos considerá-lo, portanto, como uma obra inacabada. No entanto, esse non finito, tal como o da Pietá Rondanini, de Miguel Ângelo, acabou por ser visto como num aspecto indissociável da sua essência. We Can’t Go Home Again, diz-nos João Bénard da Costa, “é uma ‘capela imperfeita’, no rigoroso sentido em que o objectivo não era a perfeição, mas um tamanho rasgar de horizontes que lhes não consente o fecho”. 

É ainda Bénard da Costa quem nos conta a história atribulada da versão que vemos hoje deste filme: “Depois da morte de Nick, Susan Ray a viúva, resolveu montar o que o cineasta já tinha alinhado. De nove horas de filme, fez uma versão de 93 minutos que foi estreada em 1980, no Festival de Roterdão e no fim desse ano foi distribuída comercialmente nalguns países. Depois, a cópia de Roterdão ardeu e salvaram-se algumas (raras) entre as quais a que existe em Portugal, adquirida pela Fundação Calouste Gulbenkian”. Porém, “é nesta cópia, incompleta, imperfeita, com múltiplas deficiências técnicas, som frequentemente dessíncrono, mutilado e multiforme, que We Can’t Go Home Again prefigura a trágica carreira do seu autor e a sua luta por uma expressão derradeira, só aproximativamente conseguida”. 

Desde logo, a nossa atenção foca-se na sua novidade formal. E, nessa matéria, damos a palavra a Serge Daney: “Uma parte do material foi filmado em vídeo, ou em 16 transposto para vídeo, retrabalhando por um sintetizador óptico. Todas as sequências em vídeo foram depois transferidas para 16mm até à transposição final para um écran formado por vários écrans, écran que em si mesmo é um prodígio de trabalho técnico. As sequências que deviam ser montadas juntas eram projectadas em transparência, por cinco projectores funcionando simultaneamente e, depois, eram filmadas por uma câmara de 35. A fotografia arqueada (em forma de ventre) que serve de quadro e de pano de fundo às múltiplas imagens assim produzidas foram uma ideia de último minuto de Nick, tanto ao nível das filmagens como ao laboratório. O número de écrans varia durante o filme, mas o formato básico utiliza, em geral, quatro: um grande para os 16mm, em baixo e à esquerda, dois mais pequenos, ao alto à esquerda e em baixo, à direita e outro (8mm) ao alto, à direita. Por vezes, uma quarta imagem, em 35mm, sobrepõe-se a todas as outras. E apesar da inicial complexidade da concepção, o filme é linear e narrativo, com o grande écran em baixo e à esquerda a contar a história e os mais pequenos, a terem, como Nick disse, um papel ‘suplementar’”. 

We Can’t Go Home Again fez-me recordar as combine paintings que Robert Rauschenberg fazia desde os últimos anos da década de 50: obras híbridas, entre a pintura e a escultura, onde se reuniam pinturas, fotografias e outros objectos, obras que nos oferecem uma imagem sincrética e polifacetada, ao mesmo tempo expressionista e “pop”, da sociedade americana da 2a metade do século XX. Também no filme de Ray se reúnem imagens, muitas vezes sincrónicas, por vezes muito distorcidas, com uma cor expressionista e roçando a abstracção, de manifestações e motins populares, diálogos e depoimentos pessoais, “citações” de outros filmes seus, um fragmento irrisório do que poderia ser um filme policial. Muitos pequenos filmes dentro de um filme maior que engloba tudo isso. 

Pouco depois do seu início, assistimos a um diálogo de Nicholas Ray com um grupo de estudantes. Perguntam-lhe: “És o novo professor?” “Acho que sim”; “Achas?”; “Sou, Sim”; “Não és velho de mais para seres um professor novo?” (as vozes misturam-se, outras intervêm). Depois, um lembrou-se: “Não foste realizador de Hollywood?”; “Não foste tu quem dirigiu Rebel Without a Cause?”. “Fui.”; “E They Live by Night?”. “Também.”; “E não fizeste aquele filme sobre os esquimós com Anthony Quinn?”. “Fiz.”; “E não fizeste aquele filme com Bogart?”. “Fiz.”; “Então o que é que fazes aqui?”. We Can’t Go Home Again será, talvez, a sua forma de tentar responder a esta pergunta. 

“Aqui” é o Harpur College da Universidade de Binghamton e quem o interroga são alunos de cinema. As relações de Nicholas Ray com “Hollywood” nunca foram fáceis e o último filme que aí realizou, Fifty-Five Days at Peking, foi um fracasso de bilheteira. Depois disso, Ray tentou na Europa outras oportunidades para filmar mas, não tendo tido sorte, aceitou esse lugar de professor. As universidades, nos EUA, eram, então, polos importantes da efervescência em que se encontrava o país. Estavam em causa a discriminação racial, a guerra do Vietname, a moral sexual... Acreditava-se na possibilidade de inventar novas formas de viver. Nicholas Ray, sensível a este espírito, resolve formar uma nova comunidade com os seus alunos e, com eles, realizar este filme. 

Aos poucos, no meio das muitas histórias e referências que nele se entrecruzam, vão-se destacando as personagens de Leslie e de Tom, que procuram um lugar para si num mundo em convulsão e mudança. Nelas, ecoa a lembrança de Jim, de Judy e de Plato as personagens centrais de Fúria de Viver (Rebel without a cause), também eles são jovens que procuram um reconhecimento das suas escolhas, sabendo que elas nunca poderão ser aquelas que os seus pais fizeram. “Não podemos voltar para casa”. 

O seu comportamento, por vezes autodestrutivo, é um pedido de ajuda. Mas, só eles se poderão ajudar a si mesmos e, tal como Jim e Judy, apenas no seu amor podem encontrar a salvação: “Take care of each other. It’s your only chance of survival. All the rest is vanity”, é a mensagem do filme. 

Nicholas Ray recusa ser a figura paternal que Leslie e Tom reclamam. É “um professor que não ensina”. Limita-se a ouvir e a registar com a sua câmara os acontecimentos que se vão desenrolando à sua volta. E, no final, encena o seu suicídio, como se, depois de concluída a história dos dois jovens amantes e terminado o filme que a conta, estivesse dita a última palavra e já nada mais houvesse para viver.



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