quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Fordlandia Malaise (2019) de Susana de Sousa Dias



por Alexandra Barros

Fordlândia é uma cidade fundada por Henry Ford, no Pará (norte do Brasil), no final dos anos 1920, para os trabalhadores (agricultores, operários, engenheiros, ...) de um megalómano projecto agro-industrial da Ford Motor Company, cujo objectivo era produzir borracha, a partir do látex extraído de milhares de seringueiras. Cerca de um milhão de hectares da selva amazónica foi concedido pelo Estado Brasileiro à Ford. Centenas de hectares foram arrasados por fogos colossais, para o plantio massivo das árvores. A finalidade desta gigantesca operação era cortar os custos de produção dos novos automóveis Ford Modelo A. Ao tomar em mãos a produção da borracha necessária para o fabrico próprio de pneus, Ford contornava o monopólio que os ingleses e os holandeses tinham sobre essa matéria. Na época, a Grã-Bretanha e a Holanda dominavam o ciclo da borracha, a partir das suas colónias asiáticas, onde tinham vastas plantações de seringueiras, graças a dezenas de milhares de sementes que tinham sido retiradas furtivamente do Brasil (num tremendo caso de biopirataria, que viria a revelar-se extremamente ruinoso para a economia deste país). De acordo com Henry Ford, Fordlândia constituía uma missão civilizadora, um projecto que traria o progresso e um futuro melhor a um território remoto e aos seus habitantes, chegando a proclamar: “Não vamos para a América do Sul para ganhar dinheiro, mas sim para ajudar a desenvolver essa terra maravilhosa e fértil.”[1] A cidade foi dotada de boas infraestruturas e casas nos moldes das pequenas cidades dos Estados Unidos. Foi concebida para ser uma cidade-modelo (de uma sociedade estratificada), mas a população indígena não se adaptou: quer ao estilo de vida regrado que lhe tentaram impor (proibição de álcool, danças e outros costumes locais; vigilância omnipresente, ...); quer à comida enlatada enviada dos EUA, e servida dia após dia; quer à rotina de trabalho, sincronizada com os horários das fábricas dos EUA. Múltiplos choques culturais e biológicos (monocultura: “Plantaram as árvores muito próximas. Bastava uma ser atacada por parasitas, para a plantação toda ir por água abaixo, que foi o que aconteceu”[2]) conduziram o ambicioso projecto ao fracasso. 

A história de Fordlândia envolve algumas das grandes matérias de convulsão e reflexão dos séculos 20 e 21: colonização, lutas sociais, globalização, exploração do terceiro mundo pelo primeiro, ambientalismo, sustentabilidade, utopias que se transformam em distopias. O seu carácter extraordinário tem atraído, ao longo dos anos, a atenção de académicos, artistas[3] e um vasto público curioso. Por isso, é possível encontrar na web uma enorme quantidade de informação sobre o tema. De acordo com Susana de Sousa Dias, existem duas narrativas dominantes sobre o projecto: cidade utópica e cidade-fantasma. A realizadora foi tentar descobrir o que há para além destas narrativas, continuando a trabalhar as questões-chave das suas obras anteriores[4]: memórias fortes - as alimentadas pelo poder e fixadas em narrativas oficiais - versus memórias fracas - que tanto incluem as memórias das personagens consideradas “secundárias” ou “menores” (pertencentes, geralmente, às classes sociais mais desfavorecidas), como as narrativas incómodas, proibidas, polémicas. 

As primeiras imagens do filme são registos fotográficos dos primeiros tempos da cidade-modelo: os edifícios, as infraestruturas, fotos de grupo de colonizadores e colonizados, em poses canónicas. Estes registos foram realizados por fotógrafos ao serviço da Ford e fazem parte do respectivo arquivo. Inicialmente, cada imagem dá pausadamente lugar à seguinte. Ouvem-se trinados de pássaros e insectos florestais. Pouco a pouco, insinuam-se batucadas longínquas na banda sonora. Voltamos a ver as mesmas imagens, mas agora sucedem-se cada vez mais velozmente, em sincronia com a (agora tornada predominante) batucada brasileira. Quando o ritmo se acelera vertiginosamente, intercaladas com as imagens iniciais, entrevemos novas imagens: animais selvagens ameaçadores e hostis; rostos de indígenas, individualizados, em grande plano, em atitude desafiadora ou ganhando movimento (em câmara lenta); folhas de árvores salpicadas com as marcas de infecções letais; um veículo enterrado na lama; ... Uma encenação assombrosa da distopia latente na utopia de fachada. 

Seguem-se encantadoramente serenas imagens da cidade actual, vista do céu, produzidas por um drone que a sobrevoa. As imagens são acompanhadas de testemunhos orais de habitantes da cidade, que nunca vemos. Nestes testemunhos (recolhidos in loco), cruzam-se mitos ancestrais, lendas locais e histórias pessoais, que se vêm reivindicando como alternativas às narrativas dominantes. Para sublinhar a manipulação que sempre ocorre na construção da História oficial e “a natureza contraditória e enganadora do aparelho de poder”, Susana de Sousa Dias diz ter decidido “tirar partido do sentido de irrealidade do drone”, articulando “imagens que parecem fotografias mas afinal são imagens em movimento” com “imagens que parecem estar em movimento mas que afinal são fixas”[5].
 
Descemos então do céu para o cemitério. O cemitério de Fordlândia é uma imagem icónica das narrativas referentes à cidade-fantasma que prevalecem na web. Algumas dessas narrativas visuais são exemplos paradigmáticos do chamado “ruin porn”. Este termo designa um género de fotografia baseado no fascínio estético por ruínas. A fetichização de locais degradados, assente puramente na estética, ignora habitualmente o respectivo contexto e pouco ou nada revela dos motivos que conduziram à actual decadência, desvalorizando a história dos homens que os povoaram ou povoam. No caso de Fordlândia, as reportagens fotográficas contam sistematicamente uma meia-história, mesmo quando acompanhadas por uma (mais ou menos adequada) contextualização histórica. Atraídos pela fotogenia das ruínas de Fordlândia, são as imagens mais óbvias que os fotógrafos procuram, ignorando tudo o que é marginal à narrativa da cidade-fantasma. Nada nessa prevalecente representação de Fordlândia alude aos seus actuais 3000[6] habitantes. Para quem vê as imagens, sempre desprovidas de pessoas, é como se elas não existissem. No entanto, alguns trabalhadores da Ford decidiram permanecer após o colapso do projecto e os seus descendentes foram ficando. Foram-se-lhes juntando outras pessoas, de parcos recursos, vindas de localidades próximas, atraídas pelas casas abandonadas. Sobrevivem à custa de agricultura de subsistência, pesca e criação de animais. A economia local tem vindo, porém, a transformar-se, dado que nos terrenos da plantação falhada foram cultivadas grandes (e polémicas) áreas de soja, que se têm expandido desmesuradamente[7]. 

No final, o filme - até então a preto-e-branco - ganha cor. Uma criança dança num campo desportivo (a precisar de reparação) de Fordlândia, rodeado por campos verdejantes e árvores frondosas. A canção que se ouve é “Beija-Flor Verde”, de Marco Júnior Monteiro Brito, um dos habitantes da cidade, que tenta recuperar a abafada História e identidade cabocla. A canção integra os mitos e lendas escutados anteriormente. 

Prosseguindo o seu trabalho de confronto entre memórias fortes e memórias fracas, uma vez mais, a realizadora, deu palco às histórias que estão por contar, expondo os embaraços que a História construída pelos poderes dominantes sempre tenta ocultar.
 
[3] Fordlândia e Henry Ford foram inspiração para alguns elementos do futuro distópico descrito no livro Brave New World, de Aldous Huxley (1932). | O músico Jóhann Jóhannsson inspirou-se no projecto de Henry Ford, no álbum “Fordlandia” (2008, 4AD), que tem a ideia de utopia falhada como uma das suas principais linhas de criação. 
[4] Processo-Crime 141/53 – Enfermeiras no Estado Novo (2000); Natureza Morta: Visages d’une Dictature (2005), já exibido pelo Lucky Star; 48 (2010); Luz Obscura (2016). 
[5] Fordlandia Malaise: memórias fracas, contra-imagem e futurabilidade, Susana de Sousa Dias, Revista de Comunicação e Linguagens, 23/5/2020, https://rcl.fcsh.unl.pt/index.php/rcl/article/view/37 



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