domingo, 5 de outubro de 2025

417ª sessão: dia 7 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça, “Porto da Minha Infância” de Manoel de Oliveira no Lucky Star – Cineclube de Braga e os Encontros da Imagem

De 23 de setembro até ao final de outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta, em parceria com os Encontros da Imagem, um ciclo de oito filmes com sessões às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Sob o tema Manifestação de Interesse, a edição de 2025 abre espaço à diversidade de linguagens visuais, explorando as transformações sociais, a memória e noções de identidade. Neste espírito, o cineclube junta-se ao programa com uma seleção que dialoga diretamente com a proposta do festival. 

Na próxima terça-feira, 7 de outubro, exibe-se Porto da Minha Infância, de Manoel de Oliveira. Neste filme, o cineasta regressa às ruas, sons e memórias da sua juventude, compondo um retrato poético da cidade que marcou a sua vida e obra. Misturando imagens de arquivo, encenações e narrativas em voz off, Oliveira transforma o Porto em personagem central, num gesto íntimo de reencontro com o passado e de revisitação da memória através do cinema. 

Manoel de Oliveira, conhecido por um formalismo estético próprio, foi uma figura ímpar no cinema português e internacional, cuja carreira se estendeu por mais de oito décadas, desde os tempos do cinema mudo até ao século XXI. Autor de uma das filmografias mais extensas e singulares do cinema mundial, Manoel de Oliveira assinou obras emblemáticas como Aniki-Bóbó (1942), Acto da Primavera (1963), Amor de Perdição (1979), Francisca (1981), Vale Abraão (1993) ou O Quinto Império (2004). As suas obras centram-se em adaptações literárias, ensaios filosóficos e representações da História e da memória. Explorando o tempo e a palavra, Manoel de Oliveira construiu um universo cinematográfico que atravessa quase um século de história do cinema português.

Porto da Minha Infância estreou no Festival de Veneza em 2001, onde foi premiado, e foi exibido em prestigiados festivais. O elenco inclui Manoel de Oliveira a narrar, bem como Jorge Trêpa e Ricardo Trêpa a interpretar versões da sua juventude e conta com as participações especiais de Agustina Bessa-Luís, Maria de Medeiros, Leonor Silveira, Leonor Baldaque, José Wallenstein e Rogério Samora.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça! 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A Savana e a Montanha (2024) de Paulo Carneiro



por António Cruz Mendes
 
Nesta sessão do Cineclube, estamos perante uma obra de cinema feita com a intensão de impedir uma obra de engenharia. Trata-se, pois, de “cinema militante” e, como tal, a sua apreciação não pode deixar de ser política.
 
Como citadino impenitente, alguém que dificilmente se imagina a viver em Covas do Barroso, tenho que começar por manifestar a minha relutância a respeito de possíveis concepções idealizadas da vida naquelas paragens. Porém, não creio que Paulo Carneiro, que já tinha situado na região de Boticas o seu primeiro filme, Bostofrio (2019), caia nessa tentação. Aquilo que as suas imagens nos revelam não é apenas a beleza das suas serras, ameaçada pela perspectiva da abertura de minas de lítio a céu aberto, mas também a pobreza e o abandono a que se encontram votadas as suas gentes.
 
E nisso se resume o paradoxo do nosso tempo, onde o “progresso” convive com a miséria e os grandes avanços tecnológicos que permitiram a acumulação de uma imensa riqueza nas mãos de alguns, não libertaram muitos mais de uma existência penosa e medíocre. É a consciência dessa desigualdade que encontramos na população de Covas do Barroso. Quem ganha e quem perde com a exploração mineira? Habituados ao esquecimento, é com desconfiança que as pessoas que aí vivem reagem às promessas de mais emprego, zonas de lazer e protecção ambiental. Ouvimo-las dizer que “o lítio vai servir para produzir baterias para os carros dos ricos” e que aqueles que se propõem explorar as minas, “um dia, vão-se embora e deixam-nos os buracos”. É difícil não lhes dar razão. Afinal, é a sua sobrevivência como comunidade com uma identidade própria que está em causa. Em nome de quem pode ser ela sacrificada?
 
O filme de Paulo Carneiro balança entre o documentário e a ficção. Embora protagonizado pela população local, não hesitando quando se trata de nos revelar as condições em que vive e dando-nos conta das conversas e reuniões onde se fala do seu futuro, encena a sua luta recorrendo ao imaginário dos westerns. As imagens das procissões onde se invoca a protecção divina, alternam com desfiles de inspiração carnavalesca onde as gentes do Barroso se reinventam numa trupe de cowboys se prepara para defender a sua causa.
 
Essa ideia, informa-nos Paulo Carneiro, partiu dos próprios residentes. Numa manifestação de evidente ironia, foi essa a forma que engendraram, assumidamente lúdica e caricatural, de dar corpo à sua oposição a processos que vão conhecendo sobretudo pelas notícias que lhes chegam através da comunicação social. De resto, não há lugar para tiros. Não há sobre quem disparar porque os seus inimigos são invisíveis. Ninguém sabe quem se esconde sob o nome de Savannah Resources e que influências detêm sobre aqueles que, no governo, vão decidir sobre o futuro das suas terras. Aliás, nem isso é o mais importante. A fome insaciável de lucros, aquilo que rege a nossa vida económica, só se satisfaz com uma produção e consumo massivos de bens de duvidosa utilidade. O que faz, portanto, sentido não é garantir a prevalência do transporte público, mas sim promover o aumento da produção de carros eléctricos. E, face a isto, a classificação das terras agrícolas do Barroso como “Património da Humanidade” vale muito pouco.
 
E, no entanto, a população de Covas não desiste e diz-nos, como na canção de Carlos Libo, um cantautor local até então desconhecido, “junta-te à luta, vamos vencer”. 
 
 

domingo, 28 de setembro de 2025

416ª sessão: dia 30 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30

Esta terça, o Lucky Star – Cineclube de Braga e os Encontros da Imagem apresentam um western transmontano

De 23 de setembro até ao final de outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta, em parceria com os Encontros da Imagem, um ciclo de oito filmes com sessões às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Sob o tema Manifestação de Interesse, a edição de 2025 abre espaço à diversidade de linguagens visuais, explorando as transformações sociais, a memória e noções de identidade. Neste espírito, o cineclube junta-se ao programa com uma seleção que dialoga diretamente com a proposta do festival.

Na próxima terça, 30 de setembro, exibe-se o filme A Savana e a Montanha realizado por Paulo Carneiro. O filme retrata uma comunidade ameaçada pela maior mina de lítio da Europa, em Covas do Barroso, no coração de Trás-os-Montes, onde os habitantes locais transformam a resistência num irreverente faroeste musical e num manifesto cinematográfico em defesa do património cultural e ambiental.

Rodado entre 2020 e 2023, o projeto mistura documentário e ficção. Os habitantes surgem como actores e protagonistas de uma história que, embora ancorada em factos reais, recorre a diálogos encenados e a uma construção formal próxima do western, para interpretar a sua luta.

Produzido sem financiamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual, o filme teve o apoio da Câmara Municipal de Boticas e da Agência de Cinema e Audiovisual do Uruguai. Esta independência refletiu-se numa obra livre e híbrida, onde a paisagem transmontana assume um papel central, funcionando tanto como cenário natural quanto como metáfora de resistência.

A estreia mundial deu-se na Quinzena dos Realizadores, secção paralela do Festival de Cannes de 2024. O filme tem percorrido um circuito de festivais internacionais, incluindo Hamburgo, Valladolid, Atenas, Buenos Aires e São Paulo, além da apresentação nacional no MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço.

A Savana e a Montanha conquistou, ainda, o Prémio RTP para Melhor Projeto em Fase de Montagem nos Arché Awards do DocLisboa. Mais recentemente, arrecadou dois galardões na Coreia do Sul, no Blue Planet Future Film Festival, em Busan: o Prémio do Público e o Grande Prémio.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Lúa Vermella (2020) de Lois Patiño

A edição de 2025 dos Encontros da Imagem, sob o tema Manifestação de Interesse, convida-nos a pensar o lugar das artes visuais no presente. Esta edição é o manifesto vivo da marca que o festival imprimiu na fotografia — em Portugal e além — propondo, assim, uma reflexão sobre o caminho percorrido. Nesta edição é possível contemplar as artes visuais nas suas múltiplas formas, contextos e usos; explorar as suas dissidências e acompanhar as transições, as mudanças e metamorfoses que o tempo lhes impôs, olhando para a história do festival como a própria história da fotografia e das demais artes visuais que dela derivam ou com ela se relacionam e comunicam. Embora ancorado na fotografia, o programa expande-se a territórios vizinhos — cinema, performance e vídeo-arte — que alargam e desafiam os seus limites. Em 2025, entre setembro e o final de outubro, a programação desenha-se em três percursos — Dissidências, Argumentários e Transições. Cada um propõe uma abordagem singular ao tema anual, fomentando cruzamentos e cumplicidades. Do elogio à diversidade e à experimentação, à revisitação da memória e das noções de identidade, esta edição desemboca na descoberta de afinidades locais e narrativas plurais. Imerso neste espírito o Lucky Star – Cineclube de Braga propõe um ciclo de cinema que vai ao encontro da proposta dos Encontros da Imagem para 2025.
 
O ciclo desdobra-se em três movimentos, cada um composto por duas sessões de cinema. No primeiro apresentam-se obras recentes que fazem do cinema espaço de desvio e insurgência, tanto ao nível dos seus propósitos como das suas dimensões formais e narrativas. Inserido sob o título Dissidências, este momento reúne Lúa Vermella, do cineasta galego Lois Patiño, e A Savana e a Montanha, de Paulo Carneiro. Apesar da divergência estilística evidente, ambos os filmes partilham temas comuns e uma mesma conceção do cinema como dispositivo de enunciação crítica, articulando o sensível e o político numa relação de mútua implicação. Em ambos existe uma originalidade própria na forma como abordam problemáticas actuais. Os dois filmes envolveram, na sua produção, as comunidades das regiões onde decorre a ação — a Costa da Morte, na Galiza, e Covas do Barroso, no norte de Portugal — e centram-se, cada qual à sua maneira, nas tradições, na cultura local e no património paisagístico. Estes elementos funcionam como marca de continuidade, mas revelam-se igualmente vulneráveis à perda e à transformação, em permanente relação com o meio envolvente, ou seja, com a natureza (também ela em perigo), onde a morte se inscreve como ameaça constante ou como assombração.
 
Em Lúa Vermella, Lois Patiño esculpe o tempo na imagem até lhe sentirmos o peso (Deleuze,1985; Tarkovsky, 1986). A fotografia é evidente na imagem congelada, onde a suspensão temporal faz convergir passado e futuro, sugerindo uma perceção liminar do princípio e do fim do mundo. A inspiração na pintura também é notável, por exemplo, no plano de imagem de duas agricultoras que mimetiza a pintura L’Angélus de Jean-François Millet (comparar com o still do filme desta folha de sala). O espectador é confrontado com grandes planos de paisagens que impõem uma atenção demorada em cada detalhe da imagem, até que dela se desprenda um possível significado. Nesse processo, emerge o peso da insignificância humana diante dos mistérios e da imponência do mundo natural, restando apenas a tradição oral galega — os seus mitos, lendas e crenças — como guia incerto para nos orientar e, por fim, para nos reconciliar com o naufrágio inevitável.
 
De acordo com o dossier de imprensa, o filme inspira-se na história verídica de Rubio de Camelle, “um mergulhador que resgatou mais de 40 corpos de náufragos perdidos no mar”. Contudo, na narrativa é Rubio que desaparece misteriosamente, presumivelmente levado pelas águas do mar, na Costa da Morte, evento que suspende a ação, apenas compreensível à luz da sabedoria popular antiga, entrelaçando-se, assim, o enigma com as criaturas que habitam o imaginário galego.
 
Esta atmosfera mítica criada por Lois Patiño evidencia não apenas a influência visual do pintor galego Urbano Lugrís, com as suas representações oníricas do mar e das suas criaturas, mas também a dimensão literária de Álvaro Cunqueiro, também ele galego. A célebre máxima do escritor: “O oceano é um animal que respira duas vezes por dia”, atravessa o filme como uma chave interpretativa, remetendo para a ideia do mar enquanto organismo vivo e insondável e, por conseguinte, para a própria natureza, sua imponência e força esmagadora sobre o ser humano (vida/morte). Esta dupla influência, plástica e literária, confere à obra uma densidade simbólica que aproxima o discurso cinematográfico de uma leitura cultural e estética profundamente enraizada no imaginário galego.
 
Os atores não profissionais (habitantes dos lugares onde a ação se desenrola) apresentam-se como “modelos”, no sentido “bressoniano” do termo (Robert Bresson): a figura humana é tratada como matéria plástica, à semelhança da luz, do som ou do espaço, inclusos num tempo lento, esmagador e mortífero. Esses modelos surgem imobilizados ou paralisados dentro dos planos, integrados numa composição cuidadosamente construída. Ao mesmo tempo, aparecem como seres da natureza, submetidos à sua força imponente e inelutável. São, portanto, dedutíveis, como se evidencia nos grandes planos das paisagens galegas. Estas figuras humanas, quase como “mortos-vivos”, parecem anunciar a morte: estaremos perante um mundo já passado, já consumado e consumido, irremediavelmente condenado à extinção?
 
Nesta dialética entre a desertificação, o desaparecimento de uma cultura e o esgotamento da própria natureza em prol do desenvolvimento híper-técnico-industrial, estabelece-se uma relação com a capacidade do cinema, à semelhança da fotografia, de mortificar o presente em “isso foi” de que falava Roland Barthes em A Câmara Clara.
 
Lúa Vermella constrói-se como uma elegia visual, onde o humano, a natureza e a cultura se fundem num mesmo horizonte de perda. Mais do que registar um tempo ou um lugar, o filme convoca o espectador a contemplar, a interpretar e a habitar a suspensão de um presente que já se anuncia passado.
 
Na próxima sessão, o filme A Savana e a Montanha retoma os mesmos temas, explorando diferentes géneros cinematográficos, como o western. Aqui, porém, a utopia ainda persiste no imaginário da população local e a luta permanece possível. A obra recorre ao cinema como manifesto e instrumento de protesto contra a exploração de lítio em Covas do Barroso, defendendo simultaneamente o património cultural (material e imaterial) e o meio ambiente. 
 
 
Referências Bibliográficas:

Barthes, R. (1984). A câmara clara: Nota sobre a fotografia (J. C. Guimarães, Trad., 9ª ed.). Editora Nova Fronteira. (Obra original publicada em 1980)

Deleuze, G. (1985). A imagem-tempo. Editora Brasiliense

Tarkovsky, A. (1986). Sculpting in time: Reflections on the cinema (K. Hunter, Trad.). University of Texas Press.

 

Folha de Sala 

domingo, 21 de setembro de 2025

415ª sessão: dia 23 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30


Em setembro e outubro, o cinema é Manifestação de Interesse 

De 23 de setembro até ao final de outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta, em parceria com os Encontros da Imagem, um ciclo de oito filmes com sessões às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Sob o tema Manifestação de Interesse, a edição de 2025 abre espaço à diversidade de linguagens visuais, explorando as transformações sociais, a memória e noções de identidade. Neste espírito, o cineclube junta-se ao programa com uma seleção que dialoga diretamente com a proposta do festival.

No dia 23 de setembro, inicia-se o ciclo com Lúa Vermella, de Lois Patiño, um filme que, entre a vídeo-arte e o género sci-fi, nos transporta para uma aldeia galega suspensa no tempo, onde lendas, fantasmas e o mar se cruzam num cinema hipnótico que funde mito e realidade.
 
A 30 de setembro exibe-se A Savana e a Montanha realizado por Paulo Carneiro. O filme retrata uma comunidade ameaçada pela maior mina de lítio da Europa, em Covas do Barroso, onde os habitantes transformam a resistência num irreverente faroeste musical.

No dia 7 de outubro é a vez de Porto da Minha Infância, regresso de Manoel de Oliveira às memórias da sua juventude, num retrato poético em que a cidade se confunde com a própria vida e obra do cineasta.

A 15 de outubro, presta-se homenagem ao cinema com João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, filme de Manuel Mozos que evoca a figura central da cinefilia portuguesa num ensaio sobre memória, dedicação e amor absoluto pelo cinema.

No dia 21, serão exibidos dois filmes: KORA, de Cláudia Varejão, que traça um retrato sensorial das experiências de mulheres migrantes e refugiadas, refletindo sobre identidade e pertença, seguido por Onde as Ondas Quebram, no qual Inara Chayamiti revisita a memória da comunidade japonesa no Brasil.

Na última semana, encerra-se o ciclo com dois filmes: Tornar-se Um Homem na Idade Média, de Isadora Neves Marques, cuja narrativa reflecte sobre reprodução, família e os limites entre natural e artificial e, por fim, o filme As Fado Bicha, de Justine Lemahieu, no qual se dá voz às identidades LGBTI+ dentro do universo do fado, celebrando diversidade, resistência e liberdade através da música.
 
Assim, o ciclo arranca na próxima terça com o filme de Lois Patiño. Lúa Vermella foca-se numa aldeia remota da costa galega (conhecida como a Costa da Morte), onde o tempo parece ter-se detido: os habitantes encontram-se estáticos, como se enredados num luto interminável. Apenas murmúrios sobre fantasmas, monstros marinhos e a enigmática “lua vermelha” quebram o silêncio. Quando Rubio, um marinheiro, desaparece nas profundezas do oceano, três bruxas descem das montanhas para o resgatar — ou, talvez, despertar forças ancestrais que o mar nunca deveria soltar. Assim, Patiño funde mito e realidade em planos fixos e composições intrincadas, onde o mar, as lendas e o silêncio se tornam matéria de um cinema hipnótico e sensorial.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


domingo, 14 de setembro de 2025

414ª sessão: dia 16 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30 no Museu dos Biscainhos


“Bem-Vindo Mr. Chance” de Hal Ashby, na próxima terça, no jardim do Museu dos Biscainhos

Em setembro, o Lucky Star - Cineclube de Braga regressa com o ciclo “Fora de Portas”, com a sua primeira sessão na próxima terça-feira, 16 de setembro, no jardim do Museu dos Biscainhos. As sessões regulares voltam à Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva na terça-feira, a 23 de setembro, com um ciclo de cinema subordinado às temáticas lançadas pelo festival Encontros da Imagem, sob o mote “Manifestação de Interesse”.

Na próxima terça-feira, dia 16, às 21H30, a rentrée faz-se no Museu dos Biscainhos, com o filme Bem-Vindo Mr. Chance de Hal Ashby, com Peter Sellers no papel principal. Sellers triunfa nesta interpretação clássica como um jardineiro analfabeto que é transportado de forma hilariante para o poder político. Sellers preparou-se intensamente para este papel, experimentando diferentes tons de voz e estilos até decidir por uma representação deliberadamente “em branco” ou neutra, que permitisse à personagem funcionar como uma tela onde os outros projectam expectativas. O filme é ainda co-protagonizado por Shirley MacLaine e o vencedor do Óscar Melvyn Douglas. 

Em Bem-Vindo Mr. Chance, um jardineiro simplório chamado Chance passou toda a sua vida na casa de um idoso em Washington D.C. Quando o homem morre, Chance é colocado na rua sem nenhum conhecimento do mundo, exceto o que aprendeu a ver televisão. Depois de um encontro com uma limusine, ele torna-se hóspede de uma mulher (MacLaine) e seu marido, Ben (Douglas), um empresário influente, mas doente. Agora chamado de Chauncey Gardner, Chance torna-se amigo e confidente de Ben, um improvável membro do círculo político.

A forma como o filme aborda temas como a influência da televisão, a construção de celebridades e o modo como a sociedade se pode deixar enganar pelas aparências tornou-o cada vez mais pertinente, especialmente à medida que as “imagens”, os media e a política se misturam na actualidade. Bem-Vindo, Mr. Chance, convida à reflexão, não só sobre a personagem Chance, mas sobre todos nós.

A sessão de cinema “Fora de Portas” que terá lugar no Palácio dos Biscainhos é gratuita. Tem entrada livre por ordem de chegada (até limite máximo). As sessões regulares do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Vanitas ou O Outro Mundo (2004) de Paulo Rocha



por António Cruz Mendes
 
O tema da “Vanitas”, muito glosado na pintura do século XVII, remete-nos para uma passagem do Eclesiastes – “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade…” – que se refere à futilidade das ambições humanas e à transitoriedade dos prazeres terrenos. Perante a inelutável vitória da morte, só a possibilidade de alcançar a vida eterna num paraíso celestial nos deveria preocupar. As naturezas-mortas onde esse tema é glosado, têm uma iconografia bem conhecida: dispostas em mesas por vezes revestidas por luxuosos tecidos, vêm-se belas flores que começam a murchar, apetitosas frutas já parcialmente descascadas e que evidenciam os primeiros sinais de apodrecimento, joias que adornam caveiras, ampulhetas onde a areia da campânula superior já se esgotou, o toco de uma vela cujo pavio já não arde… Na época hedonista em que vivemos, esse tema, ainda que despojado das suas conotações religiosas, ressurgiu na obra de muitos artistas contemporâneos. Encontrámo-lo, por exemplo, na caveira incrustada de brilhantes de Damien Hirst ou no tríptico “Vanitas”, encomendado a Paula Rego pela Gulbenkian.
 
A beleza e a morte perpassam também todo o filme de Paulo Rocha. Desde logo, na primeira sequência, quando uma modelo, vestida de negro, soçobra e é retirada em braços da passerelle sob os aplausos da assistência. Vanitas ou O Outro Mundo é um filme barroco e João da Silva Melo, que sobre ele escreveu uma “Folha da Cinemateca”, chama-nos a atenção para a “esplendorosa cor que, na sua sabedoria prática, Paulo Rocha recolheu ao mais velho Ticiano” e para os movimentos de câmara “a escapar-se, descentrada das personagens”, que nos fazem lembrar as perspetivas fugidias de um Tintoretto. Entre o Vanitas de Paulo Rocha e as “Vanitas” daquela época, existe um parentesco evidente.
 
Contudo seria muito redutor olhá-lo como uma mera variação sobre um tema inspirado nas palavras do Eclesiastes. Ele é, antes de tudo, e depois de O Rio do Ouro (1998) e de As Sereias (2001), um regresso de Paulo Rocha ao Porto e às suas memórias de infância. As festas do S. João, o cemitério do Prado do Repouso, a decrépita fábrica das Moagens Harmonia colada ao nasoniano Palácio do Freixo, a Capela do Senhor da Pedra, em Miramar, são protagonistas insubstituíveis do seu filme. E, depois, é uma história de amores improváveis e de uma procura desesperada de um sentido para uma vida sob a qual paira, omnipresente, o espectro da morte.
 
No centro da narrativa, encontramos Mila, uma espécie de filha adoptiva, modelo, colaboradora e confidente de Nela Calheiros. A sua mãe, por quem ela confessa ter alimentado sentimentos de inveja e de repulsa, era costureira, e o padrasto, o Pai Augusto, é coveiro. Mila pertence a mundos diferentes e não pertence inteiramente a nenhum. Tudo se passa no Porto e o filme balança entre ambiências genuinamente populares e tipicamente burguesas, o da tasca onde Augusto e os seus amigos vão beber uns copos e o da Ateneia, onde as senhoras do Porto se reúnem para tomar chá. No mundo da moda, encontramos milionários em busca de prestígio e costureiras com salários em atraso. Nas festas de S. João, as imagens das ruas, onde o povo se junta, confrontam-se com as do barco, onde Nela Calheiros encena, para uma assistência sofisticada, um estilizado S. João. Entretanto, sobre todos eles e enquanto decorrem os festejos, nos céus sobe um balão que acabará por se consumir em chamas.
 
Enredada entre estes diferentes mundos, Mila é disputada pelas figuras “terrena” de Augusto e irreverente de Alfredo, pela silenciosa adoração de Tino e por um endinheirado cliente de Nela Calheiros. Porém, não encontra nenhum lugar para si em parte alguma. Será que apenas no seio do fugaz mundo da arte, do design de moda, dos desfiles e eventos, ou nos ateliers de costura, ela poderá existir? Essa foi a opção de Nela. Tudo na sua vida foi sacrificado à sua criação. As pessoas com quem lida têm, para si, um valor instrumental. Por diversas vezes, vemo-la ameaçar “pôr no olho da rua” quem não obedeça prontamente à sua vontade. Mesmo doente e fisicamente esgotada, empregará as suas últimas forças a preparar um desfile que já não se irá realizar.
 
O tema da Vanitas celebra o triunfo da morte sobre a beleza. No entanto, no final do filme, Nela Calheiros, já deitada no caixão, ricamente vestida de noiva de Viana e amorosamente maquilhada por Tino e Mila, por um breve instante, abre os olhos, parecendo querer renascer. O combate entre a beleza e a morte é uma luta sem fim. 
 
 

domingo, 24 de agosto de 2025

413ª sessão: dia 25 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


“Vanitas ou O Outro Mundo”, de Paulo Rocha, esta segunda com o Lucky Star – Cineclube de Braga no Theatro Circo

Em Agosto, o Lucky Star - Cineclube de Braga apresenta quatro filmes menos conhecidos do realizador português Paulo Rocha. O título do ciclo “Paulo Rocha e os Paroxismos” evoca a intensidade narrativa, estética e simbólica que atravessa toda a obra do cineasta. O cinema de Paulo Rocha é feito de excessos sensoriais, rupturas formais e momentos de exaltação — paroxismos que desafiam a narrativa convencional e aproximam o espectador de uma experiência cinematográfica sensível e transformadora. As sessões deste ciclo ocorrem às segundas-feiras durante o mês de Agosto, no Theatro Circo, às 21h30.

Esta segunda, 25 de Agosto, encerra-se o ciclo com o último filme de Paulo Rocha “Vanitas ou O Outro Mundo”, de 2004. Realizado integralmente no Porto, o filme assinala também a primeira experiência do cineasta com o formato digital, numa abordagem que rompe com o brilho superficial associado ao universo da alta-costura. No centro da narrativa está Nela Calheiros (interpretada por Isabel Ruth), uma estilista portuense consagrada que projeta todos os seus afectos e ambições na jovem Mila (Joana Bárcia), transformando-a em musa e modelo. Por influência de Nela, Mila ganha um lugar central no mundo da moda, rodeada pela devoção de três homens obcecados: o padrasto, o primo e o fiel criado. Porém, no auge da idolatria, Mila mergulha num processo de auto-rejeição marcado por anorexia e um profundo sentimento de vazio, que a empurra para um destino incerto.

Exibido pela primeira vez em Locarno, em 2004, “Vanitas ou O Outro Mundo” confirma a vocação internacional de Rocha e encerra, com inquietação, uma das filmografias mais densas do cinema português. A interpretação de Isabel Ruth valeu-lhe o Globo de Ouro de Melhor Atriz, distinção que reconhece o vigor e a entrega das suas colaborações com o realizador.

Ao revisitar a moda como território de vaidade e efemeridade, “Vanitas ou O Outro Mundo” aproxima-se de uma verdadeira meditação sobre a existência. A textura do digital – abrasiva, quase fantasmática – amplifica esse universo sombrio, afastando o filme de qualquer ideia de glamour e inscrevendo-o antes numa reflexão sobre a condição humana.

As sessões do Lucky Star ocorrem durante o mês de agosto no Theatro Circo às segundas-feiras, às 21h30. A entrada custa quatro euros para público geral e dois euros com o cartão quadrilátero. Os sócios do cineclube têm entrada livre, mediante disponibilidade de lugares e reserva antecipada.

Até segunda-feira!


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

A Raiz do Coração (2000) de Paulo Rocha




por João Palhares
 
A televisão portuguesa de todos os dias às vezes consegue sintetizar muito bem uma ideia complexa ou o chamado ar dos tempos. É quase sempre por acidente, quase nunca ao perseguir os furos jornalísticos da berra, levados a cabo de forma escabrosa e repetitiva, metralhados parece que incessantemente aos nossos olhos e ouvidos. Para desligar a televisão, acto prazeroso em que se aponta para ela com o comando como se fosse uma arma e com um falso sentido de justiça, porque não é isso que vai mudar o que quer que seja, é preciso que ela esteja ligada. E por uns segundos pode-se apanhar um momento insólito e revelador. Neste caso foi no Domingão de dia 3 de Agosto, na SIC, uma imagem entre tantas que se produzem sem pensar muito neste país e cujo interesse vem muito mais da disrupção de certos intérpretes, da conglomeração de pessoas e dos reflexos momentâneos de alguns profissionais no cruzamento de todo esse movimento.
 
Débora Monteiro está na borda de um chafariz a meio daqueles monólogos intermináveis em que pede aos telespectadores que liguem para o número que os vai tornar ricos se se comprometerem a pagar o valor acrescentado. Chega um grupo de raparigas vestidas de igual que começam a olhar para a câmara a fazer o gesto do telefone com as mãos. A apresentadora fica contentíssima por a virem ajudar, até porque se presume que não seja um trabalho que os profissionais de televisão gostem particularmente de fazer. A dada altura, as raparigas começam-se a alinhar ao lado dela e o operador de câmara começa a brincar com as diagonais que isso cria na imagem. Até começarem a andar paralelamente aos movimentos da câmara e se começarem a atropelar umas às outras para ficarem em primeiro plano, o que chateia a apresentadora que diz que quer fazer o seu trabalho. Em pano de fundo, esse tempo todo, está um homem vestido de mulher, que podia ser o João Baião mas por acaso não era, a brincar com crianças no meio do chafariz.
 
O cinema português, apesar de muito menos visto pelos portugueses, sempre foi conseguindo lidar com o passado e com o presente do seu país. Para o futuro, talvez precisasse de um ou dois visionários. E encontrou um em Paulo Rocha, que ao longo dos anos se mostrou sempre à frente (e atrás e acima e abaixo e de todos os lados) das expectativas. Quem tivesse visto o Verdes Anos ou o Mudar de Vida, nos anos sessenta, não esperaria com certeza A Pousada das Chagas e A Ilha dos Amores nas décadas seguintes, e no seguimento desse período das grandes peregrinações e empreitadas japonesas como prever os completos desvarios de O Rio do Ouro ou A Raiz do Coração na viragem do milénio? “O Paulo vivia muito exaltado,” disse Pedro Costa em entrevista a Ricardo Vieira Lisboa em 2017, “com uma energia muito juvenil, eu vi o entusiasmo dele com o No Quarto da Vanda, com a novidade das pequenas câmaras Mini-DV. Eu dizia-lhe: “Faça você o seu próximo filme sozinho, ou só com um assistente”, e ele era muito desse género: os projetos e as rodagens d’A Pousada das Chagas ou d’A Ilha de Moraes ou do Máscara d’Aço ou dos vídeos mais confidenciais que ele fez nos últimos anos, provam-no. Apenas com um punhado de jovens ao lado, que lhe pintassem umas manchas de cor nas paredes ou lhe lançassem um foguete à frente da lente. Ou isso, ou uma armada mizoguchiana de figurantes e gruas.”[1]
 
Pode-se tentar de várias formas, talvez até seja produtivo, mas não é nada fácil descrever A Raiz do Coração. É um musical, com banda-sonora de José Mário Branco, mas a maior parte dos números musicais surgem nos primeiros vinte e cinco minutos (o percurso contrário de alguns dos musicais de Busby Berkeley nos anos 1930, por exemplo). É um filme de ficção científica, também, que no ano da estreia de 2000 seria uma projecção do ano de 2010, embora na montagem final não restem pistas sobre isso e o nosso ano de 2025 pareça uma projecção ainda mais acertada. E como escreveu Miguel Blanco Hortas, também “estamos no Portugal do ano 2000, a meio caminho entre a Expo 98, a chegada do Euro e a futura celebração do Europeu de futebol, tudo acontecimentos vendidos como grandes avanços e que trouxeram um desequilíbrio económico brutal, uma inflação disparada e iniciaram o processo de transformação de uma cidade de orientação popular bem vincada no parque de atracções turístico que hoje em dia se vive.”[2]
 
Os opostos atraem-se. Ou talvez gostássemos que atraíssem, se não achássemos mais confortável a apatia da boa educação. E tudo em A Raiz do Coração se parece construir de opostos que se conciliam pela coerência de uma visão e pela harmonia ou pela resolução temerária de um travelling. A noite e o dia, os corvos e as pombas, os fascistas e os santos, os polícias e os travestis, o ódio e o amor, a morte e o sexo, a película e o digital. Catão, o líder de um partido de extrema-direita, está obcecado por Sílvia, uma transexual que a dada altura pergunta à sua protectora se acha “que uma pessoa que faz o mal pode ser boa.” E também os polícias se adornam de malhas de bondage, também os travestis se apaixonam por agentes da autoridade e os chamam do outro lado da morte, do único lugar onde o amor parece ser possível. E também os travestis são obrigados a espancar e a matar, o Santo António abençoa a Sílvia chamando-lhe menino em pleno voo pela cidade de Lisboa, e a câmara de Paulo Rocha, impaciente, vingativa, exultada, destemida, move-se constantemente, com os corpos dos actores e com os seus movimentos, ou para os foder ou para os matar. Do oito ao oitenta. E tudo o que está no meio também. Volta-se por associações a Michael Cimino e ao grande não-dito que assombrava o também fabuloso O Ano do Dragão, “se se combate uma guerra tempo o suficiente, acaba-se a casar com o inimigo.”
 
Na primeira parte do documentário em quatro partes sobre a rodagem de O Rio do Ouro, Marginália [3], Paulo Rocha diz que “(...) eu sempre achei detestáveis as filmagens muito amigáveis, muito harmonizadas, em que as pessoas são todas aparentemente muito amigas e têm uma voz monocórdica. Isso aborrece-me e acho que a maior parte dos filmes não têm tensão, nem luta, por causa disso. Em parte, como já estou a ficar mais velhote e preguiçoso, algumas pessoas quis ter presentes só pelo prazer de as ter presentes. Ver o que é que daria ter por ali, sentado a filmar, algumas pessoas, que eram em parte espelhos ou fontes de inspiração. (...) E por outro lado tentei integrar gente nova, muito nova, com vinte e poucos anos, do que eu achava que era gente de Lisboa, que representa novas sensibilidades, em muitos casos completamente contrárias às minhas, mas que eu gostava de, como um vampiro, poder integrar um bocadinho. (...) Portanto há realmente muitas famílias e eu sei que isso provoca conflitos.”
 
Se isto vale para O Rio do Ouro, também há-de valer para A Raiz do Coração, outro filme de “armadas mizoguchianas” que se inaugura com um espectáculo de variedades em que Luís Miguel Cintra, irreconhecível, vestido de noiva de Santo António com a cara pintada de preto e acompanhado por dois corvos gigantes, Luís Miguel Cintra, que neste filme tem três papéis, quatro se acrescentarmos o falso Santo António encarnado por Catão, debita já todos os temas, todos os motes e todos os desafios para esta obra coral e assumidamente desalinhada, no sentido camiliano do termo. A câmara filma o espectáculo sem cortes, recua para mostrar a sala e o público e focar uma bandeja com um copo e uma garrafa de champanhe, que são seguidos por um travelling e levados por um empregado para o actor. Ele chora o destino da sua cidade, assolada pelo vício e representada em miniatura a seus pés, enquanto tenta enxotar em vão os corvos que lhe roubam o véu e acabam por destruir a cidade mesmo quando começa o último movimento de câmara acompanhado pelos acordes de fim do mundo de José Mário Branco e cai o pano transparente com o título do filme: “A RAIZ DO CORAÇÃO – um filme de PAULO ROCHA”.
 
Este título virá de um romance tradicional de Trás-os-Montes, como diz o genérico, mas também se encontra numa balada registada e anotada por Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti no primeiro volume inteiramente dedicado a canções transmontanas de uma antologia da música portuguesa, fruto das suas viagens à região entre os anos de 1958 e 1961, continuando o trabalho do pioneiro alemão Kurt Schindler, que nos anos 1920 tinha percorrido 12.000 quilómetros entre Espanha e Portugal e gravado cerca de quinhentas canções. A balada chama-se Dona Filomena e foi gravada em Tuizelo, no concelho de Vinhais, pela voz de Ana do Rio, e também é conhecida por títulos como Dona Francisquinha, Grancalinda, Care-Linda ou Dona Felismina. Descreve o encontro de uma mulher com um soldado desconhecido, que a acha bonita e lhe dá a mão. Ela diz-lhe, “Meu marido foi à caça / lá prós campos d´aragão. / Se quiseres qu´ele cá não volte / roga-lhe uma maldição: / Os corvos lhe comam os olhos / e a raíz do coração.”
 
A aldeia e a cidade, mais dois pólos opostos e aparentemente irreconciliáveis. Para Paulo Rocha, na aldeia, a ordem reina, mas só a custo de justiças tribais e vinganças violentas. A cidade parece ser o refúgio perfeito para a diferença, o campo de batalha de todas as aberrações. E o caos talvez seja um conjunto de pessoas de várias origens e ambientes que lutam sozinhas e entre si por uma ordem que não existe. No pico dos combates de cantigas da noite de Santo António, depois das investidas cantadas dos grupos de travestis, polícias e fascistas entre os casais que dançam entre uma espécie de coreto e uma fonte de pedra, com a sua própria canção, um miúdo, que tinha dito à mãe, ao apontar para um travesti, “ó mãe, ó mãe, quando eu for grande eu quero ser assim,” consegue escapar-lhe das mãos outra vez e vai para dentro da fonte com uma pequena barca que vai puxando muito devagarinho. E com uma candura semelhante, a câmara aproxima-se da barquinha e acompanha-a até ao fim da fonte, já sem o miúdo, onde encontra o reflexo da Sílvia de Joana Bárcia, que também já foi um menino chamado Sílvio e com a sua canção parece conciliar e resolver todas as diferenças e vencer o embate das melodias, das contradições e das identidades.
 
“A senhora sabe que eu sou um poço sem fundo,” diz Janeiro quando a personagem de Isabel Ruth, a Ju, o visita no que parecem ser as escadas da Assembleia da República. “Quando olho para dentro de mim, até me perco.” Como seria se em 2001, em vez de nos atirarem poeira para os olhos com as alegrias e as maravilhas do progresso que desembocaram nos tempos em que hoje vivemos, se em vez de nos dizerem sobranceiramente a propósito deste filme para não procurarmos “correspondências directas com o real fora de nós. Não vejam aquele político como imagem de outro político, não olhem aqueles travestis como os que vagueiam à noite pela cidade, não queiram encontrar chaves, a busca será estulta e frustrante, não as há.”[4] A Raiz do Coração provocasse a polémica e tivesse o sucesso que merecia no seu próprio país? Uma panóplia de Diáconos Remédios abastardados, da extrema-direita aos praticantes do politicamente correcto, passando pelos mais clássicos diáconos da Igreja Católica, pregando sempre a própria virtude, encontravam um bode-expiatório comum, enfrentavam-se, exorcizavam-se, acabavam por se entender entre si e com todos, e o filme era exibido na televisão, era editado em DVD, circulava por todo o país. O José Mário Branco não seria obrigado a dizer, quando confrontado com a pergunta sobre a possível edição de uma banda-sonora, que “teria que se fazer um trabalho com a finalidade específica do disco – embora com as mesmas músicas, temas e palavras e até, se calhar, as mesmas vozes e instrumentos. É sempre uma possibilidade, mas seria preciso que alguém estivesse disposto a investir.”[5] Ouviu-se tantas vezes e disse-se outras tantas que nem sequer se considerou por um momento que pudesse ser errado, mas depois deste filme já não se consegue esquecer: o único vilão desta fantasia dramática é um agente duplo chamado Vicente Corvo, que dita a sua sentença de morte ao dizer a Sílvia, sem pensar duas vezes, “cuidado com os sonhos…”
 
“Xô, corvo!” 
  

[1] in «”Talvez fosse uma loucura, talvez começasse a escavar outro filme nesse filme…”. Entrevista com Pedro Costa sobre o restauro de Os Verdes Anos e Mudar de Vida, de Paulo Rocha», Aniki, vol. 6 nº 1, 2019. Disponível em: https://aim.org.pt/ojs/index.php/revista/article/view/495 (consultado a 12 de Agosto de 2025).

c Publicado em espanhol no letterboxd, a 22 de Fevereiro de 2023: https://letterboxd.com/migblah/film/the-hearts-root/ (consultado a 12 de Agosto de 2025).

[3] Disponível em: https://lugardoreal.com/video/marginalia-i-preambulo (consultado a 12 de Agosto de 2025).

[4] in «A Caldeira do Inferno», Jorge Leitão Ramos, Expresso, 13 de Janeiro de 2001. Disponível em: https://cinemaportuguesmemoriale.pt/Filmes/id/540/t/a-raiz-do-coracao (consultado a 12 de Agosto de 2025).

[5] in «José Mário Branco – Entrevistas para a imprensa 1970-2019», Ricardo Andrade, Hugo Castro e António Branco (org.), Edições tinta-da-china, Lisboa, 2025, pág. 445. Entrevista publicada originalmente no jornal Blitz, a 2 de Janeiro de 2001, com o título de «José Mário Branco – inéditos no grande ecrã».

 

Folha de Sala