domingo, 18 de maio de 2025

397ª e 398ª sessão: dia 20 e 22 de Maio (Terça e Quinta-feira), às 21h30 e 20h30, respectivamente


“Uma Mulher Sob Influência” de John Cassavetes e “Aqueles Que Ficaram (Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem)” de Marianela Valverde, esta terça e quinta
 

Para o mês de Maio, o Lucky Star- Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação cultural Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

Esta terça-feira 20 de maio, exibimos o filme Uma Mulher Sob Influência (1974), de John Cassavetes e no dia 22 de maio, quinta-feira, será exibido o filme Aqueles Que Ficaram Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem (2024) de Marianela Valverde.

Em Uma Mulher Sob Influência, Mabel (Gena Rowlands) é uma dona de casa em constante batalha com seus demónios internos e com o peso simbólico de ser mulher, enquanto o seu marido, Nick (Peter Falk), tenta lidar com as consequências da sua saúde mental fragilizada. Nesta trama visceral e sensível, Cassavetes explora os limites do amor, da sanidade e da família, oferecendo um retrato cru e imersivo das relações humanas no contexto doméstico. O filme é notável pela improvisação dos diálogos e pela performance de Gena Rowlands, bem como pela abordagem inovadora e realista, sem recorrer a artifícios cinematográficos convencionais.

Com um olhar intimista e profundamente humano, Aqueles Que Ficaram Em Toda a Parte Todo o Mundo Tem explora as marcas deixadas pela ditadura do Estado Novo em Portugal. Através de relatos de 28 familiares, filhos e filhas de opositores políticos, o filme investiga o legado de uma época de repressão e como as histórias pessoais se entrelaçam com a memória coletiva. Uma reflexão poderosa sobre resistência, identidade e os ecos do passado no presente. A sessão contará com a presença da realizadora e investigadora Marianela Valverde.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. As sessões especiais, no gnration ocorrem às quintas, às 20h30, e têm entrada livre.

Até a próxima terça e quinta-feira!


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Rostos (1968) de John Cassavetes



por Alexandra Barros
 
Segundo a sabedoria popular, quem vê caras não vê corações. Neste filme, porém, é através dos rostos que Cassavetes procura captar e revelar o que se passa nos corações. O que querem mostrar as suas personagens e o que querem elas que não se veja?
 
Pertencentes à classe média da América dos anos 60, vivem em casas grandes, profusamente decoradas e perfeitamente apetrechadas com os objetos e equipamentos vinculados ao “greatAmerican Way of Life. Têm bons carros, conforto material e financeiro e, nalguns casos, cargos sonantes. Procuram projetar uma imagem de sucesso através da “qualidade de vida” que alcançaram. Bebem muito, cantam, dançam e riem espalhafatosamente, ostensivamente. Mas as risadas hiperbólicas são, em grande medida, auto-ilusões. Richard, Jeannie, Maria e os que os rodeiam, não riem porque estão felizes. Riem para não se confrontarem com o facto de se sentirem inadequados, inseguros, incapazes de comunicar, receosos de amar, sós. Tendo crescido numa sociedade dominada pelo consumismo, terão acreditado que a felicidade lhes seria proporcionada pelos bens materiais que o poderoso marketing se vai encarregando de impor.
 
O que lhes falta então? Estar bem consigo próprios, com os outros e com a vida, em geral. Querem ser acarinhados, desejados, admirados, mas começam a aperceber-se que aquilo que alcançaram ao longo da vida de pouco lhes serve para obter o que realmente desejam. São estes desejos, angústias e conflitos interiores que interessam a Cassavetes. Para os revelar, procura registar com a câmara os trejeitos involuntários, as micro-expressões, tudo o que não pode deixar de irromper na superfície das personas que todos criamos para interagir com os outros nas mais variadas circunstâncias: no trabalho, em eventos sociais ou mesmo na intimidade. Hoje, esta dissociação entre quem queremos parecer e quem realmente somos está mais exposta do que nunca nas redes sociais, com curadoria cuidada de perfis e publicações, para transformar os seus utilizadores nas pessoas sensíveis, engajadas, divertidas, corajosas, informadas, inteligentes, ou seja lá o que for que dê likes e aprovação.
 
Acerca de Cassavetes, diz-se muito que amava os atores. Sendo um realizador devotado à exploração da natureza humana, Cassavetes procurava obter performances que fossem, de alguma forma, reveladoras. O que lhe interessava era, essencialmente, o que os atores, através das personagens que encarnavam, lhe poderiam dar, e como é que ele, por sua vez, poderia transmitir essas revelações aos espectadores. Por isso, os atores tinham liberdade para improvisar e interpretar as personagens como entendessem. Por isso, os seguia com a câmara na mão e, tantas vezes, preenchia o ecrã com os seus rostos. Neste filme, esses grandes planos estão provavelmente mais presentes do que em qualquer outro. O título do filme evoca, aliás, a importância destes close-ups. Cada rosto é simultaneamente um “palco” para a imagem que a personagem quer projetar e uma janela (mais ou menos) mal fechada para o que lhe vai na alma.
 
Richard e Maria formam o casal que está no centro do filme. Estão perdidos individualmente e estão perdidos um para o outro, cada um acantonado nos seus egoísmos e nos seus descontentamentos. Farto do seu dia vazio fora de casa, Richard quer-se deitar e quer, principalmente, o consolo da intimidade física. Maria, farta do seu dia vazio em casa, quer sair para ver um filme: “Hoje há um filme de Bergman aqui perto.”, ao que Richard responde: “Esta noite não me apetece ficar deprimido”. Instantes depois confrontar-se-á com uma evidência: ele e Maria estão tão deprimidos quanto as personagens dos filmes de Bergman.
 
Esta referência a Bergman num filme que é ele próprio bergmaniano não é o único momento de metacinema de Rostos. Richard, presidente de administração de uma empresa de investimentos financeiros, é responsável por selecionar filmes em que vale a pena investir. No início do filme, ele e outros membros da indústria do cinema preparam-se para ver um filme, que será submetido ao seu julgamento. Quando o visionamento arranca, o título Rostos enche o (nosso) ecrã, criando uma justaposição ambígua entre o filme a que estamos a assistir e o filme-dentro-do-filme, sujeito à avaliação de Richard. Esta inside joke evoca os problemas que o próprio Cassavetes teve com os estúdios de Hollywood, nomeadamente a proscrição após os confrontos com o produtor do seu filme anterior. 
 
Produzido pelo próprio realizador e amigos, e com baixo orçamento, Rostos foi feito graças à dedicação e boa vontade dos atores e técnicos que nele trabalharam. Foi aclamado pela crítica e recebeu vários prémios em festivais de cinema, tendo até sido nomeado para três Óscares, os prémios mais importantes do sistema que o rejeitara. É unanimemente considerado um dos mais icónicos filmes de Cassavetes e, em 2011, foi selecionado para preservação no National Film Registry dos EUA, pela sua relevância cultural, histórica e estética. 
 
 

domingo, 11 de maio de 2025

396ª sessão: dia 13 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Rostos” de John Cassavetes, esta terça-feira
 
Para o mês de Maio, o Lucky Star - Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.
 
Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration, nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

Esta terça-feira, 13 de maio, exibimos o filme Rostos (1968), de Cassavetes. Num bar, Richard e Freddie conhecem Jeannie, uma call-girl que os leva para sua casa. Ao retornar, Richard tem uma discussão com sua esposa, Maria, e decide voltar para Jeannie. Maria, por sua vez, resolve também passar a noite fora. Assim, inicia-se uma noite carregada de tensão emocional e revelações íntimas sobre os limites do amor e do casamento. A narrativa acompanha a desintegração do relacionamento do casal através de confrontos e diálogos intensos.

A partir de experiências que testemunhou, Cassavetes retrata a inquietação que muitos casamentos da classe média americana da época exalavam, fruto da incapacidade das pessoas comunicarem genuinamente e estabelecerem ligações emocionais profundas. Cassavetes afirmou que o propósito fundamental da obra era expor o quão raramente os seres humanos escutam e conversam de forma autêntica.

O filme foi rodado em 16mm, com todo o cenário iluminado de modo a permitir maior liberdade de movimento aos actores. Na maioria das cenas, optou-se pela utilização de microfones de lapela para evitar o recurso a equipamentos sonoros mais intrusivos que poderiam comprometer a espontaneidade das interpretações.
 
As filmagens prolongaram-se por seis meses, enquanto a montagem e edição levaram cerca de três anos a ser concluídas. No total, Cassavetes registou perto de 237 mil metros de película. Rostos foi distinguido com três nomeações para os Óscares: Melhor Argumento Original, Melhor Actor Secundário para Seymour Cassel e Melhor Actriz Secundária para Lynn Carlin.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quarta-feira, 7 de maio de 2025

Sombras (1959) de John Cassavetes



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
O filme Sombras, primeira longa-metragem do então actor John Cassavetes, não foi, nem é, apenas um primeiro filme, foi um gesto inaugural que rompeu com a gramática clássica de Hollywood e demarcou o “cinema de autor” nos Estados Unidos, propulsionando o cinema independente norte-americano. Produzido com escasso financiamento e limitações técnicas, a sua originalidade e estética resulta destes obstáculos e da vontade de fazer filme sobre “pessoas reais”, como proferido por Cassavetes. Filmado com câmara à mão de 16mm (portátil), Sombras rompe com o formalismo convencional do cinema produzido pelos grandes estúdios e deriva para uma abordagem improvisada, crua e intimista que, influenciado pelo neorrealismo italiano e pela estética documental, remete-nos, ainda, para o Direct Cinema americano e, em certa medida, para o Cinema Verité.
 
Poder-se-á deduzir que a experiência de John Cassavetes enquanto actor terá tido, também, um profundo impacto na forma como realizava e orientava as narrativas fílmicas. Ao dar liberdade aos actores para improvisarem os seus diálogos, a narrativa materializa-se e sedimenta-se na relação, ou seja, na interação espontânea e improvisada entre os actores e as suas personagens, como acontece na vida real. Esta espontaneidade acrescenta profundidade e complexidade às personagens interpretadas, bem como ao emaranhado de relações que compõem a sua realidade social – pequenos mundos interiores oprimidos e conspurcados, mas também impelidos e estimulados pelo exterior e pelo “outro”.
 
Assim, num gesto de resistência, Cassavetes optou pelo risco em vez da convenção: preferiu uma narrativa aberta com personagens em constante transformação (os actores não são profissionais e recorrem à improvisação), em vez de uma história formulaica, baseada em arquétipos, lugares-comuns e clichés. Escolheu a imperfeição deliberada em detrimento de uma produção polida e tecnicamente irrepreensível. A versão final de 1959 resultou da regravação de algumas cenas e de uma nova montagem, após o próprio Cassavetes rejeitar a primeira versão — um processo que procurava reflectir o real e a “verdade” emocional, procurando encaixar a individualidade, suas idiossincrasias e fluidez, em contextos socioculturais determinantes e igualmente complexos, marca central de toda a sua obra cinematográfica.
 
A história do filme gira em torno de três irmãos afro-americanos (dois deles de pele clara) que vivem em Manhattan, nos anos 50: Hugh, um cantor de jazz desiludido; Ben, um jovem irreverente e boémio; Lelia, a irmã mais nova que se envolve com um homem branco que desconhece a sua origem racial. A revelação desencadeia uma crise que expõe o preconceito latente na sociedade, mesmo nas camadas mais liberais. A trama não é linear, é construída em torno de episódios e encontros que exploram temas como identificação/pertença e alienação. A dimensão racial é tratada com ambiguidade: os protagonistas, de pele clara, experienciam crises identitárias que põem em causa os próprios limites da perceção social e racial. 
 
 O filme destaca-se, assim, por abordar o racismo e as complexas dinâmicas interpessoais num país ainda imerso na segregação racial, antes da promulgação do Civil Rights Act de 1964, mas numa época em que a luta contra a segregação já pulsava com força e urgência. Sombras consegue aludir a isto tudo numa narrativa fragmentada, com personagens não unidimensionais e sem rigidez identitária, mas profundamente influenciadas pelo seu contexto, (con)vivências com o “outro” e, ainda, submetidas às imagens dominantes do “ideal” (exemplo: cartaz de Brigitte Bardot que a personagem Lelia observa atentamente).
 
O impacto de Sombras reside tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Do ponto de vista formal, o uso do improviso — especialmente nos diálogos — torna os personagens instáveis, emocionalmente imprevisíveis e, sobretudo, vivas. A câmara à mão, também instável, segue esses impulsos com a fluidez quase documental. No plano temático, o filme propõe uma abordagem subtil e provocadora da questão racial, sobretudo através da performance ambígua da personagem Lelia, à qual se sobrepõe, ainda, a categoria de “mulher”, sua condição, derivas e subversões. O desajuste e o mal-estar em Ben são também gritantes, limitando-se, por vezes, a reagir de forma impulsiva e/ou agressiva ou simplesmente resigna-se à apatia. Hugh, seguro quanto à sua pertença “racial”, esforça-se por corresponder a um ideal de figura paternal e ser capaz de dar suporte emocional, moral e financeiro aos mais novos. Contudo, tem dificuldades em vingar no mundo artístico, devido ao racismo e à cultura de consumo, superficial e chauvinista, que prefere exibições de mulheres seminuas do que à sua performance musical.
 
Assim, as três personagens transitam entre mundos sem verdadeiramente se encaixarem em algum. A crise racial, mas sobretudo existencial, corresponde a crises “identitárias” — pessoal, social e até cinematográfica –, expressadas ou exteriorizadas nos seus constantes reajustes, ou seja, nos reposicionamentos individuais. Em suma, as identidades expressas são meras “sombras”, são situacionais e relacionais, não dependem de uma essência fixa (essa sim “ficcionada”, imaginada, imposta e projectada), mas sim de um âmago em constante construção.
 
Cassavetes rejeita o “panfleto propagandístico” e prefere o incómodo. O racismo não é um “tema” meramente discursivo, é uma presença fantasmática que emerge nos momentos mais mundanos, no quotidiano das personagens. Esse desconforto é amplificado pela estrutura episódica e pela recusa de uma resolução clássica. Sombras termina como começou, com incerteza. O jazz, omnipresente na banda sonora (música de Charles Mingus), não é mero acompanhamento: é a matriz estética do filme. A estrutura narrativa é jazzística — feita de improviso, de rupturas, de variações sobre uma mesma “melodia”. Este estilo musical, que também quebra convenções e privilegia o improviso, faz par e harmonia com os diálogos inventados e com a movimentação da câmara irrequieta, livre e próxima, quase voyeurista, que acompanha os actores sem filtros ou orientações, sem conhecer, ainda, o seu devir. 
 
 

domingo, 4 de maio de 2025

395ª sessão: dia 6 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Sombras” de John Cassavetes, esta terça-feira no Lucky Star- Cineclube de Braga
 
Para o mês de Maio, o Lucky Star- Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.
 
Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration, nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

John Nicholas Cassavetes foi um actor e realizador estadunidense que ficou conhecido como o “pai do cinema independente dos Estados Unidos”. Esta terça-feira, 6 de maio, iniciamos o ciclo com a exibição do filme Sombras (1959).
 
Esta primeira longa-metragem de Cassavetes foi filmada nas ruas de Nova York com uma câmara portátil de 16 mm. A equipa de filmagens era composta maioritariamente por colegas do realizador e voluntários que se ofereceram para ajudar no projeto. As filmagens decorreram na cidade de Nova Iorque, sem autorização para gravar em espaços públicos, o que obrigou toda a equipa e elenco a apressarem-se para captar as cenas antes de serem expulsos pela polícia.
 
Sombras foi incluído no Registo Nacional de Filmes dos Estados Unidos em 1993, pela Biblioteca do Congresso, por ser “cultural, histórica e esteticamente significante”. Devido ao sucesso do filme, o realizador John Cassavetes recebeu várias ofertas de grandes estúdios, o que resultou na realização de dois filmes de estúdio, Too Late Blues (1961) e A Child is Waiting (1963).
 
Com diálogos improvisados, actores não profissionais e uma câmara inquieta, Sombras marca o nascimento do cinema independente americano. John Cassavetes rompe com os padrões de Hollywood para criar um retrato cru e íntimo das relações humanas na Nova Iorque dos anos 1950. Ao som do jazz de Charles Mingus, Sombras mergulha na vida de três irmãos que enfrentam dilemas raciais, afectivos e de identidade. Entre notas dissonantes e silêncios reveladores, Cassavetes constrói um filme tão improvisado quanto a música que o acompanha.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 1 de maio de 2025

A História de Souleymane (2024) de Boris Lojkine



por António Cruz Mendes

Todo o cinema tem uma dimensão política na medida em que nos propõe uma visão do mundo que reflecte interesses, valores e crenças, e recorre a processos retóricos que visam convencer-nos da sua justeza. Apenas existem filmes cuja mensagem política é mais ou menos subliminar e outros onde ela é explícita. Isso pode revelar-se, desde logo, no assunto tratado. É esse o caso de A História de Souleymane. O seu tema é o da imigração, ou melhor, o da condição imigrante e, sobre isso, confrontamo-nos todos os dias com posicionamentos políticos diferentes.

Vivemos todos num mundo cada vez mais pequeno. Chamamos a isso “a globalização”. Sabemos que ela pode assumir diferentes aspectos. Quando falamos de globalização, podemos estar a falar da livre circulação de capitais, de mercadorias ou de ideias. Os meios tecnológicos de que dispomos permitem que ela se faça com uma facilidade e uma rapidez cada vez maior. Mas, podemos estar a falar também dos grandes movimentos migratórios que põem em contacto povos com diferentes costumes e tradições. Confrontamo-nos com as suas consequências, com a forma como ela nos afecta e com as diferentes reacções que suscita. As respostas que lhe damos são necessariamente políticas.

A História de Souleymane é um filme político desde logo pelo seu tema, mas é-o também noutro sentido. O seu final aberto obriga-nos a tomar uma posição: expostas as verdadeiras razões que levaram Souleymane Sangaré a emigrar clandestinamente para França, nós, espectadores, gostaríamos que as autoridades francesas lhe concedessem asilo ou não?

Podemos entender grande parte do filme como um preâmbulo à emocionante cena final onde se vai decidir o seu futuro. Afinal, todas as sequências anteriores, que nos descrevem a violência e a vulnerabilidade da condição do imigrante clandestino e, neste caso, daqueles que trabalham nas plataformas de distribuição da uber (será difícil continuarmos a olhar para essas pessoas com os mesmos olhos depois de temos visto este filme), permanentemente dependentes da boa ou da má vontade de desconhecidos, são uma demonstração prática da força das razões que levam muitas pessoas a suportar essa experiência.

A personagem de Souleymane Sangaré não é interpretada por um actor profissional, mas por alguém que viveu de facto os acontecimentos de que o filme dá conta. Vemo-lo praticamente em todas as cenas. O seu quotidiano decorre num ritmo frenético, a pedalar no meio dos carros, na urgência dos seus contactos com clientes e fornecedores, na corrida para o autocarro que o há-de conduzir ao albergue onde pode dormir, nas fugazes relações que mantém com outros imigrantes ou com Emmanuel, que lhe “aluga” a sua licença de trabalho... O tempo voa, aproxima-se a hora da entrevista com a agente da OFRA e ele tem de memorizar a “história” que lhe poderá dar direito à condição de refugiado.

Entretanto, ficamos a saber dos perigos que enfrentou para poder chegar a França e assistimos à ruptura da sua relação com Kadiatou, a namorada que deixou na Guiné. Depois de conhecida a história de Souleymane, das condições da sua “(sobre)vivência num mundo inóspito” (o tema do ciclo que com este filme se encerra) poderíamos concluir com uma afirmação muito ouvida nos filmes “de tribunal”: “that’s the case”. Cumpre-nos a nós, agora, decidir: Quem merece ser condenado, quem merece o nosso reconhecimento? 

 

 Folha de Sala

domingo, 27 de abril de 2025

394ª sessão: dia 29 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


A História de Souleymane esta terça-feira no Lucky Star- Cineclube de Braga
 
Para o mês de abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta um ciclo de cinema intitulado “(Sobre)vivências num Mundo Inóspito. Olhares sobre exclusões e resistências” que conta com a parceria do Fórum Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o projeto Migra Media Acts do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (CECS). 
 
O ciclo é composto por filmes que representam criticamente a vulnerabilidade humana e as condições político-económicas que a potenciam, dando a conhecer problemáticas e formas de resistência.
 
Este ciclo está, ainda, vinculado ao congresso internacional, no âmbito do projecto Migra Media Acts, intitulado: “Migrações e Comunicação na Era Planetária: Debates e Ações”, que decorre entre o 28 ao 30 de abril, em Braga.

Esta terça-feira, 29 de abril, terminamos o ciclo com a exibição da longa-metragem, A História de Souleymane, de 2024, realizado por Boris Lojkin e o argumento escrito por Delphine Agut.
 
A História de Souleymane retrata dois dias intensos na vida de um jovem guineense que trabalha como estafeta em Paris. Enquanto luta para sobreviver, garantir um lugar para dormir e preparar-se para a entrevista de pedido de asilo, Souleymane enfrenta a pressão de memorizar uma história fabricada que se enquadre nos critérios administrativos. Durante a entrevista, acaba por revelar a sua verdadeira história, expondo as dificuldades enfrentadas pelos migrantes.

O filme é protagonizado por Abou Sangaré, um ator não profissional cuja própria experiência de vida inspirou parcialmente o enredo. Em A História de Souleymane quase todos os atores do filme são amadores, o realizador e a diretora de elenco estiveram bastante tempo junto da comunidade guineense em Paris, onde por meio de uma associação conheceram o Abou Sangare.

O filme recebeu quatro prémios das oito nomeações em diferentes categorias nos Prémios César de 2025, em França. O filme estreou mundialmente na secção Un certain regard do Festival de Cannes em 2024, no qual ganhou três prémios: o Prémio do Júri, o de Melhor Actor e o Prémio FIPRESCI. O filme recebeu ainda dois prémios no European Film Awards.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça-feira!


quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Outro Lado da Esperança (2017) de Aki Kaurismaki



por Alexandra Barros 

O Outro Lado da Esperança é o segundo filme de uma trilogia iniciada com Le Havre (2011) e inicialmente denominada “trilogia dos portos”. Mais tarde, foi convertida para “trilogia dos refugiados” porque o tema se impôs: “Tive de fazer um filme sobre os refugiados porque a situação na Finlândia era o que era”, diz [Kaurismäki], referindo-se à intolerância que os seus compatriotas tiveram para com os 10 mil refugiados aceites pelo país.”
 
O filme cruza a história de um jovem sírio, Khaled, em fuga da guerra que devasta o seu país, com a história de um pequeno empresário finlandês, Wikström, que após uma vida no comércio a retalho de camisas, decide abrir um bar-restaurante, sem qualquer experiência ou competência na área. “Uma decisão muito sábia, porque quando os tempos vão mal os clientes bebem muito e quando vão bem ainda bebem mais.”, diz uma revendedora de vestuário que, dentro do que os tempos difíceis permitem, ajuda Wikström a liquidar a sua mercadoria.
 
Khaled chega a Helsínquia como passageiro clandestino de um navio que transporta carvão. À chegada, numa das mais belas cenas do filme, Khaled brota lentamente do carvão como um gigantesco cogumelo, negríssimo e pontuado apenas pelas duas pintas brancas dos globos oculares. Entretanto, noutra extraordinária cena, Wikström, em profunda crise existencial, larga a aliança de casamento junto ao copo da bebida com que se ocupa a mulher e sai de casa, com uma mala e sem uma palavra. É assim que Khaled e Wikström se colocam em marcha, procurando um outro lado da esperança, que estão longe de avistar.
 
O Outro Lado da Esperança é um filme cujo autor facilmente se adivinha numa qualquer “prova cega”. Tem um bouquet marcado pelas notas características do universo de Kaurismäki, tanto tematicamente e visualmente, como ainda musicalmente. Nos seus filmes, é habitual termos personagens mais ou menos à margem da sociedade, solitários, inadaptados, pessoas vulneráveis e desprotegidas, sujeitas a poderes dominantes, para quem não passam de números, ou maltratadas por outros que, por sua vez, são decerto maltratados. Daí que, nos filmes, paire sempre uma inevitável angústia ou tristeza. O seu bouquet, no entanto, inclui outros traços: um humor inteligente, não espalhafatoso, comunicado de forma impassível ou não sinalizado, e apontado aos absurdos da existência. É particularmente paradigmático deste gosto e aptidão para as situações trágico-cómicas o seguinte diálogo entre Khaled e Mazdak (um outro refugiado sírio, com quem o primeiro faz amizade).
 
Khaled: Pareces feliz e satisfeito.
Mazdak: Finjo. Os melancólicos são os primeiros a ser deportados. 
 
Outro traço característico dos filmes de Kaurismäki são os interlúdios musicais, com predominância de géneros “desusados” como: blues, rockabilly ou tango. Aqui, os “entreactos” são tocados ao vivo, ora por bandas de velhos rockers, em bares, ora por músicos que tocam na rua, na esperança de receber algumas moedas. Estes micro-documentários no interior da ficção são o meio que Kaurismäki diz ter engendrado para dar visibilidade e deixar registo de músicos finlandeses pouco conhecidos. Contudo, é mais do que isso. Para quem anda à deriva ou fustigado por permanentes tempestades, a música, de par com o álcool, é como um porto de abrigo, nos filmes de Kaurismäki.
 
O universo kaurismäkiano tem também cores e interiores muito próprios. Nas paredes são recorrentes os azuis-esverdeados, predominando, desta vez, o azul-petróleo. A disposição do mobiliário, objectos e pessoas remete ora para os quadros do pintor Edward Hopper, ora para os filmes de Yasujiro Ozu, um realizador que muito admira e a quem atribui a responsabilidade por ele próprio se ter tornado realizador. O sentido estético de Ozu é assumidamente fonte de inspiração para Kaurismäki, transparecendo, por exemplo, nos objectos do dia-a-dia que coloca em cena, escrupulosamente escolhidos, em número muito reduzido e dispostos em rigorosas composições visuais.
 
Todavia, o que torna o seu bouquet tão único são os gestos de entre-ajuda, gentileza, coragem ou amor que resgatam as personagens, quando menos esperamos, das torpezas e misérias humanas.
 
Este cocktail de sofrimento, comicidade e humanismo, dirigido tanto ao coração como ao cérebro, pode não ser suficiente para motivar o nosso ingresso numa qualquer instituição dedicada a voluntariado, mas deixa-nos certamente dispostos a fazer melhor. Kaurismäki diz que gosta de pessoas, mas que quanto à humanidade como um todo, não tem tanta certeza. Este paradoxo atravessa as suas obras, onde, por um lado, expõe as injustiças e sofrimentos a que estão sujeitos os homens comuns e, por outro, nos comove com a capacidade desses homens para resistir ao absurdo e crueldade do mundo, com a sua generosidade, altruísmo e solidariedade. Haverá filmes mais apropriados para os tempos que correm? 
 
 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Nha Sunhu (2021) de José Magro



por José Magro
 
 
Optando por dar voz ao realizador, transcreve-se a excelente apresentação da curta-metragem que está disponível no website do Festival Caminhos do Cinema Português:
 
“Como é que o viés do realizador influencia a representação do outro? O cinema documental é uma ferramenta poderosa para retratar o mundo, mas baseia-se numa relação intrinsecamente desequilibrada: segurar a câmara também significa ter poder sobre como o outro é representado. Dadas as variáveis dessa relação desequilibrada, é crucial que nessa representação do outro se proceda a um processo de questionamento (e autoquestionamento) do olhar, ponto de vista e perspetiva. Essa reflexão torna-se ainda mais importante quando existe desigualdade de poder na relação, devido a questões raciais ou a um passado colonial. Numa época em que se tornou essencial para o cinema ouvir e retratar as vozes daqueles historicamente e socialmente sub-representados, é importante que as suas histórias deixem de estar sujeitas apenas ao olhar ocidental e branco, que predomina, e a um sistema onde o direito de estar "atrás da câmara" é preservado e perpetuado. Nha Sunhu é um filme de ficção baseado numa situação real: a exploração de jogadores de futebol africanos no meu país natal, Portugal. Subvertendo as expectativas de uma abordagem documental, a narrativa volta os holofotes para o realizador, questionando o seu papel: quem é que está a contar a história e como é que a história está a ser contada?”.
 

[1] José Magro, https://www.caminhos.info/filmes/27ccp-298_nha-sunhu_jose-magro/?srsltid=AfmBOop1bROBqvdRDePBDm3kr18n6D2JGHMA2b-62EYG3ADi1xHcZF8m, 2021

 

 Folha de Sala

 

domingo, 20 de abril de 2025

393ª sessão: dia 22 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Nha Sunhu e O Outro Lado da Esperança esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga
 
Para o mês de abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta um ciclo de cinema intitulado “(Sobre)vivências num Mundo Inóspito. Olhares sobre exclusões e resistências” que conta com a parceria do Fórum Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o projeto Migra Media Acts do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (CECS). O ciclo é composto por filmes que representam criticamente a vulnerabilidade humana e as condições político-económicas que a potenciam, dando a conhecer problemáticas e formas de resistência.

Esta terça-feira, 22 de abril, exibimos dois filmes, a curta-metragem Nha Sunhu (2021), de José Magro e a longa-metragem O outro Lado da Esperança (2017), do realizador finlandês Aki Kaurismaki.
 
Nha Sunhu é um falso documentário, no qual, dois realizadores entrevistam Issa, um jogador de futebol da Guiné-Bissau que veio para Portugal. O que começou como um filme sobre a trajetória de Issa, a partir dos relatos sobre a vida e os desafios do jogador de futebol, transforma-se numa reflexão sobre questões éticas e das formas como o “outro” é representado. Entre ficção e realismo documental, Nha Sunhu questiona os mecanismos de exploração dentro do futebol e do próprio cinema, colocando em evidência as vozes que são ouvidas e as que são silenciadas. A sessão contará com a presença do realizador do filme, José Magro, que fará a apresentação do filme no início da sessão.
 
O Outro Lado da Esperança, de Aki Kaurismaki, aborda a crise dos refugiados com sensibilidade e ironia. A trama segue Khaled, um jovem sírio que chega clandestinamente à Finlândia em busca de asilo após fugir da guerra na Síria. Enquanto enfrenta a burocracia e o preconceito, cruza-se com Wikström, um comerciante finlandês de meia-idade que decide mudar de vida ao comprar um restaurante decadente. Com a marca inconfundível de Kaurismaki – um estilo visual minimalista, diálogos contidos e um humor peculiar –, o filme equilibra a crítica social com momentos de solidariedade e resiliência.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça!


quarta-feira, 16 de abril de 2025

Great Yarmouth: Provisional Figures (2022) de Marco Martins



por Manuel Sarmento - Coordenador do Fórum de Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga
 
São sombrias as cores que se projetam no écran. Hoje, no âmbito do Ciclo de Cinema Sobrevivências num Mundo Inóspito: Olhares Sobre Exclusões e Resistências, organizado pelo Cineclube de Braga - Lucky Star, em parceria com o Fórum de Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (CECS) passa no Auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, o filme Great Yarmouth - Provisional Figures, do realizador português Marco Martins, tendo Beatriz Batarda e Nuno Lopes como principais intérpretes.
 
Great Yarmouth é o nome de uma localidade no sudeste do Reino Unido e “Provisional Figures” corresponde à designação inglesa para trabalhadores precários. Tânia, a protagonista, é uma portuguesa que lidera uma organização de contratação de trabalhadores portugueses para trabalharem como operários na indústria de processamento de carne de peru, ao mesmo tempo que os aloja em hotéis decadentes, em quartos triplos, sem salubridade nem conforto. Nas fábricas, os operários e operárias migrantes são submetidos a horários de trabalho incomportáveis, com curtas pausas rigorosamente controladas e vigiadas, que mal permitem escapar ao horror do espetáculo das vísceras e do sangue dos perus a que são chamados a cortar a cabeça, desossar e depenar. Imigração, trabalho precário, insalubridade, exploração – afinal, onde é que nós já ouvimos isto? São, realmente, sombrias as cores que se projetam no écran.
 
Mas recordemos a sinopse oficial do filme: “Três meses antes do Brexit. Centenas de imigrantes portugueses continuam a chegar a esta vila costeira semi-abandonada, outrora um destino balnear de eleição para a classe trabalhadora inglesa, em busca de uma vida melhor. Tânia (a “Mãe dos Portugueses”), antiga trabalhadora das fábricas, está agora casada com um inglês e lidera uma rede de contratação de mão-de-obra barata vinda de Portugal para trabalhar nas fábricas de peru da região. Numa região com uma das taxas mais altas de desemprego do Reino Unido (onde o voto Leave teve mais de 70%), Tânia vive da exploração dos emigrantes que instala nos decadentes hotéis da marginal (pertencentes ao pai do seu marido) na esperança de um dia vir a adquirir cidadania inglesa e deixar o negócio de alojamento dos imigrantes, transformando os hotéis do seu marido em residências para cidadãos seniores.”
 
A narrativa tem em Tânia (papel absolutamente magistral de Beatriz Batarda) a protagonista absoluta. Praticamente todos os fotogramas do filme a captam a ela. A sua figura apenas é interrompida no écran quando surge o suplício das aves na linha de montagem ou quando os trabalhadores são despertados ainda de madrugada e se dirigem a caminho da fábrica. E mesmo aí Tânia está atenta e vigilante, presa à sua função de angariadora e supervisora do trabalho precário, ela própria escrava de uma situação a que mal escapa. É ambíguo o papel desta portuguesa que serve quem explora outros compatriotas imigrantes. O espaço possível de fuga encontra-o nos audiofones com que procura melhorar o seu inglês, buscando os termos certos para quando possa transformar as espeluncas dos hotéis baratos que aluga em casas de acolhimento onde idosos possam confortavelmente viver, passear junto ao mar e dançar chá-chá-chá.
 
O filme vive de uma constante isotopia entre a carne dilacerada dos animais abatidos para o consumo (não por acaso, o Natal é a época de maior movimento…) e a vida dilacerada desses corpos humanos consumidos, escravos de uma sociedade cujo lucro máximo não respeita tempos, nem dignidade, nem direitos, nem vidas (Tânia é proibida de entrar na fábrica por ter aceitado contratar uma mulher grávida…). “A realização de Martins combina o realismo absoluto com tons de pesadelo, proporcionando uma exploração arrepiante da servidão moderna”, lê-se numa crítica do filme. Uma vez mais: onde é que nós já ouvimos falar disto: servidão moderna?
 
Onde o filme de Marco Martins nos transporta é ao inferno da exploração da mão de obra migrante, aos seus agentes e às suas desventuras. Que eles sejam portugueses e portuguesas não espanta: não fomos nós tantas vezes em diáspora por Franças e Araganças habitar os bidonvilles e esgotar o coração e os pulmões nos estaleiros da construção civil, na estiva dos portos, nos campos ensolarados da recolha de morangos ou nas manufaturas industriais?
 
Mas são outros como nós que hoje em Portugal se esgotam nos campos alentejanos ou na construção das obras do PRP ou nos cafés e hotéis, vivendo em condições precárias, em quartos triplos ou em garagens mal-adaptadas, vítimas tantas vezes de cadeias de exploração e de um Estado se não desatento (faltam os papeis, oh, o horror dos papeis…) quando não cúmplice deste processo de desumanização. São sombrias as cores do filme desta noite. Uma pequena luz (“uma pequenina luz bruxuleante e muda”), não mais do que um sorriso ou um sussurro, um canto de ave ou um sonho adiado, reconduz-nos, porém, à possibilidade de um outro dia, de um reencontro com a dignidade humana. 
 
 

domingo, 13 de abril de 2025

392ª sessão: dia 15 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Great Yarmouth: Provisional Figures de Marco Martins, esta terça-feira
 
Para o mês de abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta um ciclo de cinema intitulado “(Sobre)vivências num Mundo Inóspito. Olhares sobre exclusões e resistências” que conta com a parceria do Fórum Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o projeto Migra Media Acts do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. O ciclo é composto por filmes que representam criticamente a vulnerabilidade humana e as condições político-económicas que a potenciam, dando a conhecer problemáticas e formas de resistência.

Esta terça-feira, 15 de abril, o ciclo prossegue com o filme Great Yarmouth: Provisional Figures (2022), de Marco Martins. O realizador português, muito conhecido pelo premiado filme Alice, de 2005, pertence à primeira leva de cineastas formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema e tem vindo a realizar filmes de autor desde os anos 90. Great Yarmouth: Provisional Figures foi nomeado na categoria Golden Shell Prize no San Sebastián Internacional Film Festival e ganhou vários prémios em diferentes categorias no Guadalajara Internacional Film Festival (Festival ibero-americano) e nos Prémios Sophia, em Portugal, em 2024.

O filme aborda a situação socioeconómica dos imigrantes portugueses em Great Yarmouth, três meses antes do Brexit, explorando as dinâmicas entre migração e exploração laboral numa região caracteriza-da pelo alto índice de desemprego e pelo apoio expressivo à saída do Reino Unido da União Europeia. A narrativa foca-se na personagem Tânia, uma ex-trabalhadora fabril portuguesa, que chefia uma rede de recrutamento de mão de obra imigrante para as fábricas de peru locais. A rede funciona explorando portugueses recém-chegados, acomodando-os em condições precárias em antigos hotéis da cidade.

Antes das gravações começarem, os atores passaram por uma preparação imersiva onde trabalharam ao lado dos trabalhadores da fábrica, para melhor incorporarem os papéis. Durante o filme o realizador incluiu alguns elementos simbólicos, como, por exemplo, um homem que observa as aves em migração, que subtilmente faz um paralelismo aos movimentos dos migrantes dentro da narrativa.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça-feira!

quinta-feira, 10 de abril de 2025

La Rebelión de las Flores (2022) de Maria Laura Vasquez



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
O filme A Flor do Buriti (2022), de Renée Nader Messora e João Salaviza, exibido na semana passada, expressava preocupações ecológicas e abordava os diferentes tipos de violência contra povos ancestrais. O recurso ao cinema, não somente como ferramenta de denúncia e activismo político, mas como meio visual de representação cultural (de uma estética inclusive) e de comunicação da História Oral destas nações, é, enquanto tal, um gesto subversivo e decolonial que contraria paradigmas de pensamento hegemónicos e modos convencionais de representação.
 
No alinhamento da programação deste ciclo, La Rebelión de Las Flores (2022), de Maria Laura Vasquez, dá continuidade e complementa o filme anterior, expondo, numa perspectiva cinematográfica e documental diferente, os problemas e os modos de resistir postos em prática na actualidade, bem como a relação estreita destes com os desafios globais.
 
O recurso ao cinema por parte de nações indígenas tem vindo a ganhar maior importância, ou visibilidade, desde o emblemático filme The Kayapo: Out of the Forest, de 1989, no qual os Kayapo do Brasil pegam nas câmaras de filmar para registar a sua cultura, como forma de resistir às ameaças constantes (e arquisseculares) de apagamento do seu povo e do seu modo de vida, de par com a luta, inclusive legal, para salvaguardar o direito à terra e à sua preservação, denunciando já a lógica extractivista global e prejudicial para o meio ambiente. O trabalho de campo e a realização do documentário contou com a colaboração próxima do antropólogo Terence Turner.
 
La Rebelión de las Flores acompanha um grupo de mulheres indígenas argentinas que, em 2019, ocuparam o Ministério do Interior, em Buenos Aires. Vindas de diversas regiões e nações indígenas da Argentina (Mapuche, Qom, Guaraní, Diaguita, Huarpe, Tonokote, Charrúa, entre outras), com a presença da carismática activista e Weychafe Mapuche Moira Míllan, exigem o diálogo direto com o Ministro do Interior para exigir o restabelecimento dos seus direitos, denunciando a violência estrutural contra seus corpos e os seus territórios.
 
O grupo de mulheres acusam, corajosamente, as empresas privadas, as grandes corporações e a conivência do Estado na prática de vários crimes e tipos de violência contra as suas comunidades e territórios, delatando as ameaças de expropriação para exploração mineira e/ou construção de barragens que submergirão a vários metros de profundidade os seus territórios, bem como a falta de água e a sua contaminação pela extração mineral, causando a infertilidade dos solos e, subsequentemente, a pobreza e a fome. Relatam, ainda, os ataques com incêndios, os raptos e o espancamento de jovens ou, ainda, a violação das meninas como forma de opressão para os obrigar a abandonar as suas casas e terras ancestrais.
 
A ocupação levada a cabo por estas mulheres não é apenas um protesto político, é também um gesto espiritual, põe avante uma cosmovisão indígena e/ou ecofeminista, bem como uma filosofia e modo de conhecimento imbuído no corpo em relação com a natureza (memória, história oral, práticas culturais, etc.). Acto, o qual, na partilha, a produção de conhecimento e a necessidade de um novo pacto social e político ganha expressividade nas ruas da capital, quando outras mulheres, não indígenas, e alguns homens se juntam à ocupação, reconhecendo a urgência em encontrar novas soluções para resolver problemas globais, estes com repercussões a vários níveis e pontos geográficos (por vezes com maior impacto sobre alguns grupos de pessoas, geralmente diferenciadas pelo racismo estrutural).
 
A presença da antropóloga Rita Segato, académica de referência na Argentina e não só, no que concerne aos estudos de género e o estudo da violência enquanto matriz da estrutura colonial e patriarcal, é pontual e surge como aliada e mediadora entre a luta das mulheres indígenas e os debates feministas e académicos, reforçando, assim, a necessidade de um debate público e colectivo com visibilidade. Da mesma forma,  a breve presença, mas marcante, de Nora Cortiñas, uma das fundadoras Madres de la Plaza de Mayo que lutou contra o fascismo, nos finais dos anos 70, na Argentina, reforça a ideia de união e unidade entre as várias lutas que, mesmo em épocas e contextos diferentes, têm causas comuns. O documentário colmata, ainda, a invisibilidade mediática e político-institucional destes movimentos sociais e políticos.
 
Os planos de imagem variam entre planos gerais e aproximados, filmados com a câmara à mão (por vezes até com o telemóvel), típicos do documentário, sobretudo quando se regista um evento que decorre no presente, sem a possibilidade de repetição (ex. ocupação do Ministério, vários “delegados” e responsáveis da administração que aparecem para demover o grupo de mulheres da sua missão). Não obstante, este documentário rompe com a lógica tradicional da representação. Em vez de falar “sobre” as mulheres indígenas e/ou de as representar como a “outra”, o filme fala com elas e por meio delas, dando espaço para que expressem suas próprias palavras, cantos, rituais e silêncios, fomentando uma estética da escuta.
 
Grandes planos gerais da natureza queimadas/incendiadas, captados com drone, denunciam os crimes contra a natureza e a própria vida. Contudo, a realizadora alterna esta visão com planos de paisagens naturais imponentes, colocando-os em diálogo com a força das mulheres, o seu potencial criador e gerador de vida, em oposição a um sistema hipertecnológico e hiperindustrial, reprodutor da morte.
 
A Rebelión de las Flores é cada vez mais pertinente, atendendo à crise política actual vivida na Argentina, em que vários grupos de pessoas, as quais compõem grande parte da massa civil, estão sob ataque (inclusive as comunidades LGBTIQ+), ocorrendo várias marchas, manifestações e movimentos de luta contra o governo tido como fascista. A luta destas mulheres indígenas continua e conta com vários aliados (os quais estão sob constantes ameaças, perseguições e aprisionamentos), persistindo enquanto “Movimiento Mujeres y Diversidades Indígenas por el Buen Vivir” e as “Voces de los Territorios”.
 
 

Bibliografia consultada/leituras recomendadas

 

Herrero, Y. (2019). Los cinco elementos de la crisis ecológica y civilizatoria. Libros en Acción / FUHEM Ecosocial.

Lugones, M. (2008). “Colonialidad y género”. Tabula Rasa, 9, 73–101. https://doi.org/10.25058/20112742.182

Salleh, A. (1997). Ecofeminism as politics: Nature, Marx and the postmodern. Zed Books.

Segato, R. L. (2018). La guerra contra las mujeres (5ª ed.). Traficantes de Sueños.

Segato, R. L. (2013). Las estructuras elementales de la violencia: Ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Prometeo Libros.

Shiva, V. (1988). Staying alive: Women, ecology and development. Zed Books.

Walsh, C., & Mignolo, W. D. (2018). On decoloniality: Concepts, analytics, praxis. Duke University Press.

 

 

 Folha de Sala