quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Van Gogh (1948) de Alain Resnais + Lust for Life (1956) de Vincente Minnelli

 
Por António Cruz Mendes

A figura romântica do artista que, apesar da incompreensão do público, sacrifica a vida à realização da sua obra tem protagonizado muitos filmes. Van Gogh é um caso exemplar. Nas últimas décadas, a sua vida e a sua obra motivaram a realização de vários filmes: em 1990,uma das curtas-metragens que fazem parte de Yume (Sonhos), de Akiro Kurosawa, foi-lhe consagrada; em 1991, Maurice Pialat, realizou Van Gogh; em 2014, Dorota Kobiela e Hugo Welchman, realizaram Loving Vincent (A Paixão de Van Gogh), um filme de animação totalmente pintado à mão no estilo do pintor; e, em 2018, Julian Schnabel (também ele um pintor), realizou At Eternity’s Gate (No Portal da Eternidade). Na sessão de hoje apresentamos dois filmes mais antigos: a curta-metragem Van Gogh, de 1948, de Alain Resnais, e o filme de Vincente Minelli, Lust for Life (Sede de Viver), de 1956.
 
Provavelmente, o nascimento e a difusão da fotografia e do cinema (que nos permite reproduzir com grande precisão as imagens que a realidade nos oferece) terá dado um contributo muito importante para a desvalorização da mimesis como elemento definidor da qualidade artística da pintura. E, nesse processo de invenção de formas desobrigadas de uma função mimética que vai caracterizar a arte moderna, as correntes expressionistas que não entendem a pintura como uma representação realista da realidade perceptível, mas como a sua transfiguração através da projecção imagética do mundo interior do artista, dos seus sentimentos e emoções, vão ter em Van Gogh um importante precursor.
 
O filme de Alain Resnais assume esta ideia de uma fusão entre a vida e a obra do artista oferecendo-nos um ensaio sobre Van Gogh que dispensa a encenação de episódios da sua vida e a própria representação física do pintor para se fundar exclusivamente na filmagem das suas pinturas, como se as suas paisagens e os seus retratos bastassem para nos revelar a sua personalidade, os seus propósitos, as suas obsessões e angústias.
 
O filme conduz-nos das obras do seu “período holandês”, onde, em tons sombrios, procura expressar a miséria dos operários e camponeses, para aquelas que realiza em Paris, onde descobre o impressionismo, e para as realizadas em Arles e, depois, em St. Remy e Auvers, onde pelo uso expressivo da cor e, depois, pela figuração retorcida da natureza, dos objectos e das pessoas, se afasta progressivamente da representação “impressionista” de puras sensações visuais. No entanto, Resnais decidiu desvalorizar esse processo evolutivo da pintura de Van Gogh para ressaltar a sua unidade fundamental e a sua dimensão humanista. Para isso, resolveu filmar a preto e branco, valorizando a importância da materialidade da pintura sobre a valia da cor. A câmara passeia-se pelas suas telas privilegiando planos de pormenor, para melhor evidenciar o fazer da obra, as texturas e as marcas deixadas pelos traços do pincel. Oferece-nos, assim, uma visão mais abstractizante da obra de Van Gogh para nos mostrar que essa coisa que a pintura é pode significar essa outra coisa que é a vida do artista.
 
Se o filme de Resnais procura compreender o homem a partindo de uma leitura da sua obra, o de Minnelli segue o caminho inverso e tenta perceber a obra de Van Gogh a partir da sua biografia. No entanto, um tanto paradoxalmente, dada a importância da cor na pintura de Van Gogh, no primeiro a realização optou pelo preto-e-branco, enquanto no segundo a vibração cromática das suas telas parece ecoar nas cores saturadas do filme.
 
Em Sede e Viver, seguimos também o trajecto, da Flandres a Paris e, daí, a Arles e ao hospício de Saint-Rémy e a Auvers que, com o auxílio do narrador, podemos observar em Van Gogh, mas, desta vez, pelos passos do próprio pintor. Ganham mais relevo os seus dramas amorosos e familiares e o papel de Theo como confidente e apoio, e vamos sabendo das suas intenções artísticas através das suas confissões e debates. No filme de Minnelli, as imagens dos quadros de Van Gogh continuam presentes, mas servem sobretudo para ilustrar uma narrativa biográfica.
 
Em Arles, Van Gogh julga ter alcançado o ápice da sua arte. Contudo, o estado de tensão emocional em que continua a viver agrava-se com a chegada de Gauguin e as frequentes e violentas discussões entre os dois acerca do sentido da vida e da arte. A suposta loucura de Van Gogh encontra em Sede de Viver um relevo particular. Na verdade, ela nunca foi diagnosticada e supõe-se que o famoso episódio do corte na orelha possa ter ocorrido no contexto de uma crise de epilepsia. Note-se, no entanto, que a epilepsia era considerada à época uma doença psiquiátrica. A repetição desses ataques terá feito Van Gogh duvidar da sua própria sanidade mental e, embora no intervalo das crises tenha retomado o seu trabalho de pintor, o carácter atormentado das obras que pinta em Saint-Rémy e Auvers denotam a angústia que o consome e anunciam o desfecho final.
 
O dilema existencial de Van Gogh é o tema central de Sede de Viver (“desejo de viver” numa tradução mais literal de “lust for life”): para ele, a vida não tem sentido à margem da criação artística, mas as energias que ela consome tornam-lhe a vida insuportável. 
 
 
 

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