domingo, 26 de janeiro de 2025

Nikias Skapinakis - O Teatro dos Outros (2007) de Jorge Silva Melo


 
Por Eduardo Calheiros Figueiredo

"E Nikias começa uma nova série, talvez", ao pronunciar estas palavras, em vez de pôr termo ao filme, Jorge Silva Melo propõe, embora como mera potencialidade, aquilo que não seria menos do que uma certeza: a de que tudo recomeçaria uma vez mais. Enquanto isso, deixando-nos de fora, ou pelo menos assim aparentando, vemos o artista a pôr em cena o fechar da porta do atelier de Vila Martel, resguardando-se das suas obras mais recentes. Ainda assim, ou justamente por isso, dou por mim a pensar naquele talvez que pontua a última frase, naquele talvez seguramente delicado: marca da firme amizade que se veio a pautar entre ambos. A dificuldade que nos ensinam será, em suma, a de saber criar com uma devida distância, essa meia encosta de que Lucrécio falava, e que o Jorge tantas vezes citava, distância que poderá também ser escutada, neste filme, na maneira, também ela leve e preclara, de Dinu Lipatti tocar Johan Sebatian Bach, Scarlatti ou Mozart, interprete que não por acaso integra a banda sonora que acompanha as pinturas de Nikias, ou as fotografias de Sena da Silva, Victor Palla e Costa Martins, entre outros. Ora, não a colocar tal distância, também em exercício, na própria montagem, seria revelador de falta de coerência, ou de que não se tinha visto, afinal, o essencial. Neste mesmo sentido, dar um fim diferente ao filme, procurar conferir-lhe, ao invés da agilidade do pensamento que o percorre com insuspeita naturalidade, uma tessitura pesada e grave, querê-lo definitivo e devidamente sedimentado, sim, seria, de certo modo, subverter a estrutura que lhe subjaz e que constitui a sua maior singularidade. E, se bem a entendo, não obstante o recurso à vasta bibliografia disponível sobre o artista, à qual acede com o auxílio de António Rodrigues e da qual faz, disse-o, uma manta de retalhos, a narrativa ensaiada não tem como verdadeiro desígnio instituir ou fixar, da forma mais sustentada possível, um paradigma de compreensão, antes demonstra o anseio, como se acaso fosse possível, de recomeçar simplesmente, sim, tentar, de forma incessante, uma constante reaproximação à obra em causa: apetecia-me imenso fazer de novo e de outra maneira, disse-o também o Jorge, por mais do que uma vez, a respeito deste filme, e tenho para mim que essa vontade - não por verdadeira insatisfação, mas, como disse, pelo prazer de recomeçar – como que se divisa neste último, ainda assim.
 
Ao mesmo tempo, não será menos verdade que as pinturas que constituem a exposição “Quartos Imaginários” e que instituem esse Teatro dos Outros, não deixam de possuir, também elas, no contexto da obra retratada quer o interesse, quer o fulgor centrípeto que normalmente se atribui às chamadas obras de maturidade, servindo, por isso, enquanto obras maiores que são, o mais profundo questionamento, motivando, com justeza, esse “voltar atrás” empreendido pelo filme, qual anseio de lhes procurar os antecedentes e, ao mesmo tempo, procurar um sentido para os enigmas que há muito compõem o seu estilo: «Um ensaio como este é sempre aproximativo… Por isso, também gostei desta estrutura que aparentemente chumbaria em qualquer Escola de Cinema. De voltar atrás e contar a mesma história outra vez, como faço com a exposição… Assim como a minha intervenção lá dentro – em princípio, o realizador não pode entrar no filme a dizer: “Olhe, não consegui que o pintor dissesse mais coisas sobre a pintura: ele é assim…” Mas era um problema, com que eu estava, na construção do filme… E acho que era uma coisa que fazia luz, em relação à pintura. A tal distância de paisagista, era dizer “Atenção, o que o pintor diz destes quadros é só isto: Esta é uma cama de não sei quem. E ali está um baú. Não diz mais nada”. [É] por isso [que] eu ouso entrar na imagem – mas fiz um truque, mascarei-me de José Augusto França, vesti-me de preto, gravata preta, camisa encarnada, que fui comprar de propósito para ser igual ao quadro da Brasileira. Quis ser crítico!» – disse o Jorge, com graça, de uma das vezes que apresentou este Nikias Skapinakis - O Teatro dos Outros (2007), explicando assim, quer as razões que motivam quer o desdobramento observado na parte final do filme, quer a razão pela qual se colocou, a si mesmo, em cena: havia, pois, que conceder uma função diversa à sua própria voz e intervenção no filme, permitir-lhe uma outra mobilidade, refractária, aliás, daquela que engendra o fio condutor da narrativa, como se tivesse sentido que se demonstrava determinante, por forma a cumprir com o que se propunha, acabar com o enleio ou o encantamento das palavras até então pronunciadas, colocá-las em causa, enfrentar, pelo contrário, o insatisfatório, fazer girar as contradições, pôr a a nu as pontas soltas, as insuficiências, o silêncio, sim, as provocações do artista, a dada altura o Jorge terá sentido que era preciso abandonar o início, a forma como tinha começado e encaminhado o filme, para demonstrar que o pensamento que sustentava era vivo, incessante, aliás, como acima disse, e que o filme era seu, e como mostrá-lo, senão assim? E, porventura, tão feliz foi o resultado, que outro filme-complemento se lhe seguiu, Nikias Skapinakis: Continuando (2012), mas segundo me contou o próprio Jorge, por vontade do Nikias, teriam continuado a trabalhar. Mas se não voltaram a filmar, nunca mais deixaram de se contactar, e sei, aliás, que foi uma enorme satisfação, para o Jorge, nessa continuidade, ter o Nikias exposto, por duas vezes, na Sala das Janelas do Teatro da Politécnica, quando tinha começado justamente por expor nessa mesma sala, em 1954, refiro-me às exposições "Paisagens ocultas (2014/16)" e a, francamente extraordinária, esse adeus à vida que intitulou "Descontinuando – Pintura e Desenho – 2018/19". E quando penso nestas exposições, que com espanto visitei e revisitei, é como se, de alguma forma, este filme não tivesse cessado quando cessou, mas muitos anos depois.
 
A 17 de janeiro de 2021, o Jorge escreveria na sua página: "Quando fiz o filme sobre o Nikias disse-lho: mais que o homem de costas junto ao cais, mais do que a mulher com flores na cabeça, o único auto-retrato que ele fez foi o desta palmeira na Rua das Taipas como sempre o avistou do seu atelier na Vila Martel [com a qual, o filme abre] e que ele havia de pintar em 1955 (colecção Manuel de Brito): esguia, solitária, altaneira, sobranceira, apolínea, independente, uma copa lá muito em cima que a brisa agita…" Anteontem, a CML cortou esta palmeira, cinco (tristes) meses depois da morte de Nikias (que há meia dúzia de anos deixara aquele mítico atelier). Sim, foi há quatro anos, mas este filme fixou-a para sempre, como que constituindo, além do seu início, o verdadeiro eixo deste filme, de onde diria que se desprende todo o pensamento a que dá curso, e de alguma forma é como se tudo o resto pudesse ser reformulado, recomeçado, repensado, perspectivado de outra forma, menos a planificação, as palavras, a montagem que Jorge Silva Melo dedica à obra Os quintais de Lisboa, a esta palmeira recortada contra o céu. 
 
 
 
 

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