São sombrias as cores que se projetam no écran. Hoje, no âmbito do Ciclo de Cinema Sobrevivências num Mundo Inóspito: Olhares Sobre Exclusões e Resistências, organizado pelo Cineclube de Braga - Lucky Star, em parceria com o Fórum de Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (CECS) passa no Auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, o filme Great Yarmouth - Provisional Figures, do realizador português Marco Martins, tendo Beatriz Batarda e Nuno Lopes como principais intérpretes.
Great Yarmouth é o nome de uma localidade no sudeste do Reino Unido e “Provisional Figures” corresponde à designação inglesa para trabalhadores precários. Tânia, a protagonista, é uma portuguesa que lidera uma organização de contratação de trabalhadores portugueses para trabalharem como operários na indústria de processamento de carne de peru, ao mesmo tempo que os aloja em hotéis decadentes, em quartos triplos, sem salubridade nem conforto. Nas fábricas, os operários e operárias migrantes são submetidos a horários de trabalho incomportáveis, com curtas pausas rigorosamente controladas e vigiadas, que mal permitem escapar ao horror do espetáculo das vísceras e do sangue dos perus a que são chamados a cortar a cabeça, desossar e depenar. Imigração, trabalho precário, insalubridade, exploração – afinal, onde é que nós já ouvimos isto? São, realmente, sombrias as cores que se projetam no écran.
Mas recordemos a sinopse oficial do filme:
“Três meses antes do Brexit. Centenas de imigrantes portugueses continuam a chegar a esta vila costeira semi-abandonada, outrora um destino balnear de eleição para a classe trabalhadora inglesa, em busca de uma vida melhor. Tânia (a “Mãe dos Portugueses”), antiga trabalhadora das fábricas, está agora casada com um inglês e lidera uma rede de contratação de mão-de-obra barata vinda de Portugal para trabalhar nas fábricas de peru da região. Numa região com uma das taxas mais altas de desemprego do Reino Unido (onde o voto Leave teve mais de 70%), Tânia vive da exploração dos emigrantes que instala nos decadentes hotéis da marginal (pertencentes ao pai do seu marido) na esperança de um dia vir a adquirir cidadania inglesa e deixar o negócio de alojamento dos imigrantes, transformando os hotéis do seu marido em residências para cidadãos seniores.”
A narrativa tem em Tânia (papel absolutamente magistral de Beatriz Batarda) a protagonista absoluta. Praticamente todos os fotogramas do filme a captam a ela. A sua figura apenas é interrompida no écran quando surge o suplício das aves na linha de montagem ou quando os trabalhadores são despertados ainda de madrugada e se dirigem a caminho da fábrica. E mesmo aí Tânia está atenta e vigilante, presa à sua função de angariadora e supervisora do trabalho precário, ela própria escrava de uma situação a que mal escapa. É ambíguo o papel desta portuguesa que serve quem explora outros compatriotas imigrantes. O espaço possível de fuga encontra-o nos audiofones com que procura melhorar o seu inglês, buscando os termos certos para quando possa transformar as espeluncas dos hotéis baratos que aluga em casas de acolhimento onde idosos possam confortavelmente viver, passear junto ao mar e dançar chá-chá-chá.
O filme vive de uma constante isotopia entre a carne dilacerada dos animais abatidos para o consumo (não por acaso, o Natal é a época de maior movimento…) e a vida dilacerada desses corpos humanos consumidos, escravos de uma sociedade cujo lucro máximo não respeita tempos, nem dignidade, nem direitos, nem vidas (Tânia é proibida de entrar na fábrica por ter aceitado contratar uma mulher grávida…). “A realização de Martins combina o realismo absoluto com tons de pesadelo, proporcionando uma exploração arrepiante da servidão moderna”, lê-se numa crítica do filme. Uma vez mais: onde é que nós já ouvimos falar disto: servidão moderna?
Onde o filme de Marco Martins nos transporta é ao inferno da exploração da mão de obra migrante, aos seus agentes e às suas desventuras. Que eles sejam portugueses e portuguesas não espanta: não fomos nós tantas vezes em diáspora por Franças e Araganças habitar os bidonvilles e esgotar o coração e os pulmões nos estaleiros da construção civil, na estiva dos portos, nos campos ensolarados da recolha de morangos ou nas manufaturas industriais?
Mas são outros como nós que hoje em Portugal se esgotam nos campos alentejanos ou na construção das obras do PRP ou nos cafés e hotéis, vivendo em condições precárias, em quartos triplos ou em garagens mal-adaptadas, vítimas tantas vezes de cadeias de exploração e de um Estado se não desatento (faltam os papeis, oh, o horror dos papeis…) quando não cúmplice deste processo de desumanização.
São sombrias as cores do filme desta noite. Uma pequena luz (“uma pequenina luz bruxuleante e muda”), não mais do que um sorriso ou um sussurro, um canto de ave ou um sonho adiado, reconduz-nos, porém, à possibilidade de um outro dia, de um reencontro com a dignidade humana.
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