quinta-feira, 10 de abril de 2025

La Rebelión de las Flores (2022) de Maria Laura Vasquez



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
O filme A Flor do Buriti (2022), de Renée Nader Messora e João Salaviza, exibido na semana passada, expressava preocupações ecológicas e abordava os diferentes tipos de violência contra povos ancestrais. O recurso ao cinema, não somente como ferramenta de denúncia e activismo político, mas como meio visual de representação cultural (de uma estética inclusive) e de comunicação da História Oral destas nações, é, enquanto tal, um gesto subversivo e decolonial que contraria paradigmas de pensamento hegemónicos e modos convencionais de representação.
 
No alinhamento da programação deste ciclo, La Rebelión de Las Flores (2022), de Maria Laura Vasquez, dá continuidade e complementa o filme anterior, expondo, numa perspectiva cinematográfica e documental diferente, os problemas e os modos de resistir postos em prática na actualidade, bem como a relação estreita destes com os desafios globais.
 
O recurso ao cinema por parte de nações indígenas tem vindo a ganhar maior importância, ou visibilidade, desde o emblemático filme The Kayapo: Out of the Forest, de 1989, no qual os Kayapo do Brasil pegam nas câmaras de filmar para registar a sua cultura, como forma de resistir às ameaças constantes (e arquisseculares) de apagamento do seu povo e do seu modo de vida, de par com a luta, inclusive legal, para salvaguardar o direito à terra e à sua preservação, denunciando já a lógica extractivista global e prejudicial para o meio ambiente. O trabalho de campo e a realização do documentário contou com a colaboração próxima do antropólogo Terence Turner.
 
La Rebelión de las Flores acompanha um grupo de mulheres indígenas argentinas que, em 2019, ocuparam o Ministério do Interior, em Buenos Aires. Vindas de diversas regiões e nações indígenas da Argentina (Mapuche, Qom, Guaraní, Diaguita, Huarpe, Tonokote, Charrúa, entre outras), com a presença da carismática activista e Weychafe Mapuche Moira Míllan, exigem o diálogo direto com o Ministro do Interior para exigir o restabelecimento dos seus direitos, denunciando a violência estrutural contra seus corpos e os seus territórios.
 
O grupo de mulheres acusam, corajosamente, as empresas privadas, as grandes corporações e a conivência do Estado na prática de vários crimes e tipos de violência contra as suas comunidades e territórios, delatando as ameaças de expropriação para exploração mineira e/ou construção de barragens que submergirão a vários metros de profundidade os seus territórios, bem como a falta de água e a sua contaminação pela extração mineral, causando a infertilidade dos solos e, subsequentemente, a pobreza e a fome. Relatam, ainda, os ataques com incêndios, os raptos e o espancamento de jovens ou, ainda, a violação das meninas como forma de opressão para os obrigar a abandonar as suas casas e terras ancestrais.
 
A ocupação levada a cabo por estas mulheres não é apenas um protesto político, é também um gesto espiritual, põe avante uma cosmovisão indígena e/ou ecofeminista, bem como uma filosofia e modo de conhecimento imbuído no corpo em relação com a natureza (memória, história oral, práticas culturais, etc.). Acto, o qual, na partilha, a produção de conhecimento e a necessidade de um novo pacto social e político ganha expressividade nas ruas da capital, quando outras mulheres, não indígenas, e alguns homens se juntam à ocupação, reconhecendo a urgência em encontrar novas soluções para resolver problemas globais, estes com repercussões a vários níveis e pontos geográficos (por vezes com maior impacto sobre alguns grupos de pessoas, geralmente diferenciadas pelo racismo estrutural).
 
A presença da antropóloga Rita Segato, académica de referência na Argentina e não só, no que concerne aos estudos de género e o estudo da violência enquanto matriz da estrutura colonial e patriarcal, é pontual e surge como aliada e mediadora entre a luta das mulheres indígenas e os debates feministas e académicos, reforçando, assim, a necessidade de um debate público e colectivo com visibilidade. Da mesma forma,  a breve presença, mas marcante, de Nora Cortiñas, uma das fundadoras Madres de la Plaza de Mayo que lutou contra o fascismo, nos finais dos anos 70, na Argentina, reforça a ideia de união e unidade entre as várias lutas que, mesmo em épocas e contextos diferentes, têm causas comuns. O documentário colmata, ainda, a invisibilidade mediática e político-institucional destes movimentos sociais e políticos.
 
Os planos de imagem variam entre planos gerais e aproximados, filmados com a câmara à mão (por vezes até com o telemóvel), típicos do documentário, sobretudo quando se regista um evento que decorre no presente, sem a possibilidade de repetição (ex. ocupação do Ministério, vários “delegados” e responsáveis da administração que aparecem para demover o grupo de mulheres da sua missão). Não obstante, este documentário rompe com a lógica tradicional da representação. Em vez de falar “sobre” as mulheres indígenas e/ou de as representar como a “outra”, o filme fala com elas e por meio delas, dando espaço para que expressem suas próprias palavras, cantos, rituais e silêncios, fomentando uma estética da escuta.
 
Grandes planos gerais da natureza queimadas/incendiadas, captados com drone, denunciam os crimes contra a natureza e a própria vida. Contudo, a realizadora alterna esta visão com planos de paisagens naturais imponentes, colocando-os em diálogo com a força das mulheres, o seu potencial criador e gerador de vida, em oposição a um sistema hipertecnológico e hiperindustrial, reprodutor da morte.
 
A Rebelión de las Flores é cada vez mais pertinente, atendendo à crise política actual vivida na Argentina, em que vários grupos de pessoas, as quais compõem grande parte da massa civil, estão sob ataque (inclusive as comunidades LGBTIQ+), ocorrendo várias marchas, manifestações e movimentos de luta contra o governo tido como fascista. A luta destas mulheres indígenas continua e conta com vários aliados (os quais estão sob constantes ameaças, perseguições e aprisionamentos), persistindo enquanto “Movimiento Mujeres y Diversidades Indígenas por el Buen Vivir” e as “Voces de los Territorios”.
 
 

Bibliografia consultada/leituras recomendadas

 

Herrero, Y. (2019). Los cinco elementos de la crisis ecológica y civilizatoria. Libros en Acción / FUHEM Ecosocial.

Lugones, M. (2008). “Colonialidad y género”. Tabula Rasa, 9, 73–101. https://doi.org/10.25058/20112742.182

Salleh, A. (1997). Ecofeminism as politics: Nature, Marx and the postmodern. Zed Books.

Segato, R. L. (2018). La guerra contra las mujeres (5ª ed.). Traficantes de Sueños.

Segato, R. L. (2013). Las estructuras elementales de la violencia: Ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Prometeo Libros.

Shiva, V. (1988). Staying alive: Women, ecology and development. Zed Books.

Walsh, C., & Mignolo, W. D. (2018). On decoloniality: Concepts, analytics, praxis. Duke University Press.

 

 

 Folha de Sala

Sem comentários:

Enviar um comentário