“(...) ao que venho é a guiar-vos para imagens e memórias cá de mim, puxadas de onde tiver que ser para onde me apetecer que seja. Terei por companheiros os que já tiverem os apetecimentos ou os que os passarem a ter porque apeteceram o que lhes dei a provar.” João Bénard da Costa
Assim abre este filme, e esta declaração de intenções, que não foi obviamente escrita para o filme (uma homenagem póstuma a João Bénard da Costa), é extraordinariamente ajustada. O filme é um duplo gesto de amor do realizador: amor pelo companheiro João Bénard da Costa e amor pelas coisas que João Bénard da Costa amou. Por causa desse duplo amor, Manuel Mozos toma como seu o desígnio de nos dar a provar as coisas que JBC[1] amou. Para que elas nos venham a apetecer como a eles apeteceram. Para que também nós nos tornemos companheiros. E quem melhor, para nos dar a provar o que a João Bénard da Costa apeteceu, do que o próprio?
“Maior do que a fé, era o amor.”[2] E é assim que, pelo amor, a morte dá lugar à vida e temos João Bénard da Costa ressuscitado, a guiar-nos, através da palavra, pelos seus lugares, filmes, livros, revistas, pinturas, pessoas, memórias, pensamentos. E tão engenhosamente urdida é esta obra que cremos que as palavras ditas foram destinadas a este filme, que JBC as escreveu para ele. Um milagre concedido pelo cinema, que evoca um outro filme de palavras filmadas[3] e de ressurreição através da palavra e do amor: precisamente A Palavra, de Carl Dreyer (1955), um dos filmes mais queridos de João Bénard da Costa.
Esse filme, centrado em questões tão fundamentais para JBC como a crença, os mistérios e o poder do amor, tem presença medular na tessitura de Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei. Forte presença tem também Johnny Guitar, de Nicholas Ray (1954), filme que JBC viu dezenas de vezes (“68 vezes, entre 1957 e 1988” ) e acerca do qual disse só ser “capaz de falar delirando”[4]. Mas muitos outros filmes se entrecruzam nesta homenagem que, sendo dedicada a um homem apaixonado pelo cinema, acaba por ser também, naturalmente, uma homenagem ao cinema e à cinefilia. João Bénard da Costa teve a sua “vida organizada em torno de filmes” . Foi director da Cinemateca Portuguesa de 1991 a 2009, e antes, durante e depois foi pensador, crítico, cronista, ensaísta, programador, professor, actor.
“[...] cedo aprendi que ‘isso’ existia, ‘isso’, a cinefilia, essa vida organizada em torno de filmes. A palavra ‘cinefilia’, nesses tempos, incessantemente pronunciada, designa em boa verdade um amor e uma prática irremediavelmente ultrapassados. Porque o cinema precisa que se fale dele. As palavras que o nomeiam, as histórias que o contam, as discussões que o fazem reviver, modelam-lhe a verdadeira existência. A tela em que se projecta, a primeira e única que conta, é a tela mental. Está na cabeça dos que o vêem para, depois, o sonharem, lhe partilharem as emoções; cultivarem-lhe a memória, a discussão e a escrita. Ir ao cinema ver filmes não faz sentido sem o desejo de prolongar essa experiência pela palavra, pela conversa, pela escrita. Cada uma dessas rememorações dá ao filme o seu verdadeiro valor.”[5]
Talvez afinal essa prática (cinefilia) não esteja assim tão irremediavelmente ultrapassada. Os cineclubes resistem. Ainda dão a ver. Ainda nos guiam. Ainda nos dão a provar. A cinefilia adquiriu, entretanto, outras formas, além dessa. Há hoje outros modos complementares de praticar a cinefilia (blogs especializados, comunidades cinéfilas digitais, …). Para quem ama o cinema, a possibilidade de terminar o dia com o visionamento de um grande filme, mesmo que no (actualmente já não tão) pequeno ecrã caseiro, tornou-se vital para nos resgatar dos dias maus. No entanto, ver um filme numa sala de cinema, num grande ecrã, é por um lado, uma experiência de maior entrega, e por outro, tem um lado ritualístico e de comunhão, que a ampliam. Ver um filme nas dimensões e condições para o qual foi pensado é uma experiência muito mais grandiosa. Mais intensa no encantamento estético, na provocação, no mergulho, na compreensão.
Como toda a grande arte, o cinema proporciona-nos as mais poderosas emoções e os mais profundos entendimentos e, por isso, é uma das mais belas formas de nos salvarmos. Este filme é também, ou talvez sobretudo, sobre isto.
[1] JBC = João Bénard da Costa
[2] Frase atribuída a S. Paulo por JBC, na apresentação do filme A Palavra, de Carl Dreyer, para a série "No Meu Cinema", da RTP (nos anos 90).
[3] “(Carl Theodor) Dreyer pressentiu o cinema futuro, pois teve a força de filmar a palavra.” Manuel de Oliveira, a propósito do filme A Palavra.
[4] Os Filmes da Minha Vida - Os Meus Filmes da Vida, João Bénard da Costa, Assírio e Alvim, 2003
[5] Antoine de Baecque, citado por João Bénard da Costa, na crónica Confusão de narizes, no Público, 10/12/20024, disponível em: https://www.publico.pt/2004/12/10/jornal/confusao-de-narizes-196055
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