quarta-feira, 16 de março de 2016

Ball of Fire (1941) de Howard Hawks



por João Palhares

Howard Winchester Hawks foi um dos grandes realizadores de Hollywood. E se olharmos bem para o melhor que fez (Scarface, Tiger Shark, Today We Live, Bringing Up Baby, Only Angels Have Wings, His Girl Firday, Sergeant York, Ball of FireTo Have and Have Not, The Big Sleep, Red River, I Was a Male War Bride, The Big Sky, Monkey Business, Gentlemen Prefer Blondes, Land of the Pharaohs, Rio Bravo, Hatari! e El Dorado) a tentação é realmente escrever como escreveu Jacques Rivette (falecido este ano e um dos maiores admiradores do realizador americano), em Génie de Howard Hawks, que “a evidência é a marca do génio de Howard Hawks”, que a sua obra se “impõe ao espírito pela evidência” e que é mesmo o maior dos realizadores. Não se achará um exagero tal elogio vendo a primeira cena de Scarface, filmada num só plano que longe de ser uma demonstração de virtuosismo é necessário e muitíssimo esclarecedor, tanto por apresentar a personagem de Tony Camonte como por criar atmosferas, sensações e sentimentos que se revelarão capitais no desenvolvimento do filme; as imagens belíssimas da pesca ao atum pela comunidade de pescadores portugueses de Tiger Shark, que nos dão uma amostra da sua extrema dificuldade e que, sem palavras, adensam a tragédia; os olhos de Joan Crawford em Today We Live, espelhos límpidos e claros da complexidade dos três homens que ama; a energia contagiante de quatro dos cinco filmes com Cary Grant, as grandes comédias que se chamam Bringing Up Baby, His Girl Friday, I Was a Male War Bride e Monkey Business, e em que, respectivamente, é seduzido pela loucura de Katherine Hepburn, atazana Rosalind Russel e o noivo até ela ceder e o aceitar de volta, passa as passas do Algarve no inferno burocrático do pós-guerra na Alemanha e, finalmente, cede a todos os impulsos e vontades, acabando na macacada com Marylin Monroe e Ginger Rogers; as canções e as lágrimas de Only Angels Have Wings, filme que tanta saudade deixa e que é também um dos mais belos da História do Cinema; os paradoxos que dão muito que pensar, em Sergeant York, e que não acabam no ponto de partida do herói de guerra que é pacifista mas vão mais fundo e tomam forma soberba na cena quase expressionista da queda e da ascensão divina de Gary Cooper, nos bosques da sua terra natal; as variações bogart-bacallianas de The Big Sleep e To Have and Have Not, que nos envolvem numa teia de perfeita cumplicidade e que se confunde com a cumplicidade que vemos no ecrã, entre canções, beijos e cigarros que fizeram a própria Lauren Bacall e o próprio Humphrey Bogart apaixonar-se um pelo outro durante a rodagem do filme: não é desse material que são feitos os sonhos?; as antológicas cenas dos westerns de Hawks, todos maravilhosos: do início da travessia do gado em Red River, em que os cowboys gritam à vez e em grandes planos num imenso escalar de sensações, ao início de El Dorado, com essa canção de Nelson Riddle interpretada por George Alexander e que é sobre mitos e sonhos, transportando-nos através de Edgar Allan Poe para as pradarias e cidades percorridas por John Wayne e Robert Mitchum e para os vales eternos da ficção, passando por The Big Sky e por essas belas travessias pelo Rio Missouri, que é onde Jim Deakins e Boone Caudill se apaixonam por Teal Eye, a índia que só gosta de Boone, e por Rio Bravo, filme de uma vida, feito depois de uma longa re-avaliação ao sistema de Hollywood, ao método de contar histórias e todo ele antológico e inspirador; e quem esquece Marylin e Jane Russell em Gentlemen Prefer Blondes, o musical em que a primeira, contando pelos dedos das mãos, diz que é preciso uma hora e quarenta e cinco minutos para convencer o noivo a dar-lhe quinze mil dólares?; Land of the Pharaohs e as profundezas recônditas a que desce a ambição, no formato que só filma cobras e funerais, como disse Fritz Lang; e Hatari! e a abstracção pura, tanto formal como narrativa e em que um grupo de homens e mulheres se falam e se aproximam, cantam e se embebedam, enquadrados à altura das suas vontades, dos seus génios e dos seus impulsos. 

Hawks nasceu em Goshen, Indiana a 30 de Maio de 1896, primeiro filho de Frank Winchester Hawks e de Helen Howard. O avô tinha uma fábrica de serração e, bem novo, Hawks conheceu o mundo dos madeireiros, que depois documentou em Come and Get It (baseado também, em parte, nas aventuras do seu avô), que derrubavam troncos e depois os levavam rio abaixo para as grandes cidades, como se pode ver nesse filme mas também noutro, menos conhecido mas bem bom de George Sherman, chamado River Lady e com Yvonne de Carlo, Rod Cameron e Dan Duryea. Apaixonado pela aviação, pelas corridas de cavalos e pelo automobilismo, Hawks formou-se em Engenharia Mecânica em 1917 na Universidade de Cornell aos 21 anos. Como com muitos realizadores, nessa altura, a aproximação ao cinema não se dá com um planeamento prévio ou uma vontade antiga mas por puro acidente, como o próprio explica a Joseph McBride em Hawks by Hawks, quando este lhe pergunta se a família o influenciou na escolha da profissão: “Não. Queria ser engenheiro. Escolhi o curso que quis escolher. Toda a minha família fez o mesmo. Fui para Cornell, os meus irmãos foram para Yale, o meu filho para Princeton. No Verão, para fazer algum, trabalhava na Famous Players-Lasky. Era uma espécie de assistente de acessorista. Estavam a fazer um filme com Douglas Fairbanks e ele queria um décor moderno, um apartamento moderno. Ninguém fazia a mais pequena ideia que raio de coisa é que era moderno. Mas eu tinha estudado arquitectura durante cinco ou seis anos e sabia. Por isso disse: 'Posso fazer isso'. Doug gostou e ficámos amigos. Ele andava nessa altura atrás de Mary (Pickford) e por isso Mary escolheu-me para tratar dos acessórios dela. Acho que foi principalmente porque eu os deixava à vontade para trabalharem juntos quando estavam no bungalow deles. Foi então que Mary me promoveu a assistente de realização. Um dia, o realizador apanhou uma bebedeira e Mary disse: 'Estou a ver que hoje não trabalhamos'. Eu disse: 'Porque é que não fazemos umas cenas?' Ela disse: 'És capaz?' E eu disse: 'Yeah'. Fiz algumas cenas e ela gostou muito.” 

Escrito por Billy Wilder e Charles Brackett, argumentistas de Bluebeard's Eighth Wife e Ninotchka do Ernst Lubitsch de quem já vimos The Merry Widow, a 19 de Janeiro deste ano, Ball of Fire demonstra bem o amor de Hawks pelo realizador alemão. Mas se é verdade que muita coisa no filme podia entrar num filme de Lubitsch, é também verdade que as entoações e as variações sobre o tema (providenciado pela equipa Wilder-Brackett) o tornam puramente hawksiano, desde a descrição dum grupo de profissionais (aqui, professores) e do seu ofício ou da sua missão (acabar uma enciclopédia) ao trabalho sobre o ritmo e o espaço dedicado às canções em ambiente de pura descontracção, posto de resto em prática na própria rodagem: “Isso foi feito só como divertimento. Acho que vi o Kupra a fazê-lo com uma caixa de fósforos, e pareceu-me tão bom que disse, “Hey, vamos pô-lo no filme.” E então inventámos uma cena. Levou-nos à volta de duas horas a fazê-lo,” disse Hawks. Como Bertram Potts, o mais novo dos professores, temos Gary Cooper, que depois de se aperceber que o seu artigo sobre gíria e calão está desactualizado, sai à rua para beber directamente da fonte até encontrar 'Sugarpuss', ser estonteante e maravilhoso (como é também maravilhosa e estonteante a Barbara Stanwyck que o interpreta) que lhe ensina que as palavras são perigosas. Mas esse perigo é muito importante, porque é o que faz com que Potts se conheça verdadeiramente, depois de ouvir o discurso do professor Oddley (interpretado por Richard Haydn) e pensar ir ter com ele para lhe dizer umas palavras mas dizê-las, sem o saber, a 'Sugarpuss'. Sobre essa cena e sobre Gregg Toland, o director de fotografia do filme, Hawks disse, “Era um cameraman dos diabos! Tínhamos uma cena maravilhosa em que Cooper entrava e tinha que dizer alguma coisa à rapariga. Ela estava na cama, não se lhe podia ver a cara, só se lhe podiam ver os olhos. Disse a Toland: 'Como é que eu vou conseguir fazer isso? Como é que vou iluminar-lhe os olhos sem lhe iluminar a cara?' Ele respondeu-me: 'Bom, manda-a pintar a cara de preto'. No dia seguinte, quando a vi, disse-lhe: 'Barbara, amanhã não perca tempo a maquilhar-se. Quero que apareça com a cara pintada de preto'. Ela perguntou-me: 'Mas que raio de cena é essa?' Meu Deus, foi uma grande cena!” A importância da cena não é pouca, portanto, para ter dado tanto trabalho, e o que ele lhe diz a ela é que a quer tomar nos braços, que não aguenta olhar para ela e pensar em rosas e aguarelas, mas que está louco e não confia em si próprio. Este percurso de auto-descoberta e de rendição aos instintos, muito comum nas comédias de Hawks, neste filme parece tomar contornos bem mais dramáticos e muito urgentes, talvez por ser interpretado por Gary Cooper, actor que faz com que estas transições súbitas soem verdadeiras e muitíssimo emocionantes (vejam-se Garden of Evil de Henry Hathaway, Vera Cruz de Robert Aldrich, Man of the West de Anthony Mann e The Hanging Tree de Delmer Daves, por exemplo), como se dependêssemos todos de “re-despertar os instintos anárquicos, primitivos, sacrificados à ilusão de uma vida confortável,” nas palavras de Henry Miller em An Open Letter to Surrealists Everywhere, escrita em 1939 e que é coisa que não diz respeito particularmente ou apenas a professores que escrevem enciclopédias mas que é lição importante e universal, apesar de tudo. 

Podia-se falar agora da construção soberba do filme, em que as cenas se seguem umas às outras sem um excesso ou uma falta (genial a criação da personagem do homem do lixo, que serve de elo narrativo por mais do que uma vez no filme), dos sete professores que vão cedendo aos encantos de 'Sugarpuss' para grande efeito cómico: das perguntas nada inocentes a Potts depois dele ter ido aos bastidores do clube nocturno às desajeitadas manobras de evasão à curiosidade de Miss Bragg, passando pela dança da conga a ritmo de polca. E que dizer de Drum Boogie e Oh Genevive? Ou da cena do quizzola final, em que os professores vencem armas de fogo com retórica e engenho e em que a câmara de Hawks é clínica e didáctica a evidenciar essa mesma retórica e esse mesmo engenho? Mas do que apetece falar mesmo é de Barbara Stanwyck, que como 'Sugarpuss' foi também “a Third Avenue girl in the major league” e viveu anos bem difíceis durante a infância e a adolescência. Anos que lhe deram um sentido prático da vida e que no ecrã transparecem em movimentos graciosos e em algumas réplicas instintivas que nenhuma escola pode ensinar. Vê-la dançar a conga com os professores ou a comandar os ritmos dos convivas do seu clube nocturno ou a seduzir Potts com a conversa do “yum-yum” (afinal, a cada um a sua retórica) é presenciar directamente o talento natural e o enorme à-vontade desta grande actriz e sentir mesmo um pouco desse choque entre ‘Sugarpuss’ e os professores, se bem que não por ser dessas raparigas que, segundo Miss Bragg, “makes whole civilizations topple” mas sim por os desviar dos seus objectivos ou, ainda, por os fazer perceber que há outras coisas na vida, não só trabalho. Como eles a ela que não há só “hoy-toy-toy”. “Absotively”.

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