terça-feira, 29 de março de 2016

Canyon Passage (1946) de Jacques Tourneur



por João Palhares

My thoughts rarely travel in a straight line 

Brian Donlevy, no filme 

Robert Siodmak, realizador do bem cínico e explosivo Phantom Lady da semana passada, e num acaso que dá o mote para a sessão desta semana e a liga à dessa semana, esteve para realizar Canyon Passage, como de resto também esteve Stuart Heisler, provando que os realizadores em Hollywood bastantes vezes não tomavam parte na génese dos projectos nem sequer tinham palavra em relação aos guiões dos seus filmes. Jacques Tourneur confessou ter dito sempre que sim a cada projecto que lhe punham à frente e Fritz Lang também disse que, em Hollywood, se não se quisesse acabar a carreira mais cedo era boa ideia nunca dizer que não. Sabendo isto, alguns realizadores retaliavam filmando o menos possível, o suficiente apenas para uma única montagem, evitando filmar esses planos “pelo sim pelo não” que depois acabavam por ser usados por produtores para construir um filme totalmente diferente nas suas costas. Uma questão prática, como assumiu o próprio Tourneur, quando disse a Simon Mizhari, para a Présence du Cinéma, que “o próprio som é muito importante, e eu não gosto de misturar os sons. Sigo sempre de muito perto a sincronização e a montagem sonora dos meus filmes. Às vezes tomo grandes liberdades. Se alguém está prestes a falar, se levanta e começa a andar, eu corto o som todo e não ouvimos o barulho dos passos. Se um vilão entra numa casa e precisa de subir uma escada, eu sei que, depois de eu sair, os técnicos vão guardar os sons todos, a escada, a porta, os passos. É por isso que faço a minha própria mistura de som no plateau. Assim que o actor acaba de falar ou de abrir a porta, eu corto o som e há um completo silêncio enquanto ele sobe e atravessa a sala. Assim sei muito bem que logo que o filme esteja terminado e eu já lá não estiver, os técnicos não vão fazer asneiras na mistura.” E isto pode-se ver, por exemplo, numa cena em que Honey Bragg, a personagem interpretada por Ward Bond chega e só percebemos que alguém chega pela reacção de Hi (Hoagy Carmichael). E que é Bragg, só quando Ward Bond entra em campo. 

Claro que também se pode ver e também se pode perceber isso tudo pela maneira como Tourneur filma, como constrói os planos e como pensa as cenas. Através de movimentos de câmara como o que começa acompanhando Lucy Overmire (Susan Hayward) quando esta descobre que Logan (Dana Andrews) vai casar com Caroline (Patricia Roc), parando primeiro perto de Vane (Victor Cutler), que sente o mesmo que ela em relação ao casamento, enquadrando-os aos dois em ciúme colectivo, e que termina enquadrando Andy Devine (Ben Dance) a sussurrar ao ouvido de Caroline. Antes desse plano terminar, Lucy ainda tem tempo para esconder os ciúmes e dar os parabéns aos noivos, o que demonstra o poder de síntese de Tourneur e imprime às cenas esses traços de surpresa e de novidade constantes, com pormenores que à terceira revisão ainda despontam e que descobrimos pela primeira vez. Canyon Passage, como os grandes Tourneurs, é muito difícil de apreender à primeira vista, pode-se acompanhar a história e sair muitíssimo satisfeito mas as ênfases e pontuações que ele dá a certas coisas ou a calma quase resignada com que pinta a revolta e a agitação interior de certas personagens são coisas bem mais misteriosas e que persistem já em forma de fascínio insondável muito depois de se ter visto o filme e superando esse paradoxo e essa estranheza iniciais. E foi esse fascínio, sem dúvida, que levou Louis Skorecki a escrever em Contre la Nouvelle Cinéphilie que “o cinema de Tourneur é mesmo o cinema do invisível, mas de um invisível que se lê e que se desenha sobre o próprio tecido da tela: os traços estão lá, as impressões, e as sombras, e basta, no seu pequeno fora de campo apaixonado e pessoal, saber não cobrir os olhos; basta saber não cobrir os olhos diante da persistência do real, das manchas do real que são as marcas efectivas na tela de uma experiência única do invisível; basta ver o filme, dá medo, isso está lá, vê-se.“ Ou Jacques Lourcelles, em Note sur Jacques Tourneur, que “os filmes de Tourneur são aqueles em que, do princípio ao fim, temos mais a impressão de ver as personagens envelhecer – vingança do Tempo sem dúvida, expulso artificialmente da mentalidade dos protagonistas. Compromisso também, renúncia, em relação àquilo que queríamos ter sido, querido fazer, em relação às pessoas que queríamos ter encontrado, aos sítios em que queríamos ter vivido; renúncia, sobretudo, em relação a tudo aquilo que queríamos ter aprendido e descoberto. (O herói de Tourneur, tentemos dizê-lo sem literatura, é um herói rodeado de fantasmas e de mistérios insolúveis, de mistérios que ele renuncia pouco a pouco em resolver.) Compromisso definitivo, e nada mais, com os nossos esforços, os nossos sofrimentos.” 

Outra cena, que além de demonstrar o trabalho minucioso e exaustivo de Jacques Tourneur esconde também mistérios profundos, é a que mostra o atormentado George (Brian Donlevy) a seguir o pobre McIver com o olhar e tomar a decisão de o matar. Em que se vê e se sente tudo pelos olhos de Donlevy e pelos enquadramentos bem expressivos de Tourneur nessa noite escura. E é George a personagem mais atormentada deste filme, indeciso em tudo e indeciso ao ponto de deixar as suas decisões nas mãos das moedas que atira ao ar, confuso em relações e com sonhos e aspirações que acabam por o destruir. Mas, para complicar isto bastante (como é já complicada a perseguição e a fissura da comunidade com a personagem de Ward Bond, a relação de Lucy e Logan e a de Caroline com os Dance) não são sonhos despropositados ou pouco razoáveis, despedaçam-se apenas pelas circunstâncias e pelo que as amontoadas e sucessivas decepções, choques e privações fazem à sua alma frágil. Não parece ser mentira que Logan, George e Bragg (e Lucy também, porque não?) são personagens muito parecidos e que querem todos a mesma coisa: uma saída. Qualquer coisa além do ar fresco do Oregon, duma casa nesses campos e das festas em comunidade. Talvez não soubessem bem o quê e talvez quisessem passar a vida inteira à procura e em constante mudança e constantes viagens. 

De resto, só posso elogiar as cenas que salientam a beleza do Oregon e ilustram os esforços dos primeiros americanos em fundar comunidades e explorar a terra, a personagem de Hoagy Carmichael que nos ajuda a perceber as coisas, servindo mesmo como testemunha e observador atento das acções das outras personagens, um pouco como a personagem de Bob Dylan em Pat Garrett & Billy the Kid de Sam Peckinpah (e aqui lembro que Peckinpah foi assistente de Tourneur em Wichita) e toda a cena final, da perseguição à conversa entre as ruínas e as cinzas que celebra a persistência e a tenacidade humanas e onde todas as tramas e toda a história do filme confluem apenas para garantir e prometer que, acabadas essas, outras virão.

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