quarta-feira, 29 de junho de 2016

The Hustler (1961) de Robert Rossen



por José Oliveira

The Hustler é o penúltimo filme de um realizador americano que ao contrário de muitos dos seus contemporâneos não primou pela extensa filmografia nem pela multiplicidade de géneros. Se fosse preciso uma palavra impossível para resumir ou centrar a sua obra – que sempre permaneceu irresumível e descentrada – ela talvez fosse “obsessão”. Do pugilista encarnado e afundado por John Garfield em Body and Soul, até à elevação suprema de Alexander The Great, chegando-se à perfeita comunhão entre o homem e o seu dom que veremos no filme de hoje - a natureza e a consciência - a rampa da solidão e da tragédia sempre se mostrou escancarada a quem investiu na única coisa possível. Se estraçalharmos a palavra “obsessão” vai jorrar vulcânicamente o assombramento, a sombra e a treva, o buraco prometido a quem não se adapta a todas, espinhos da perfeição. E aí já estamos no demonismo de Lilith, o ápice de Rossen e um dos traçados mais tortuosos percorridos por uma alma que sugou o corpo e o meio rodeante oferecido. 

The Hustler é sobre o mundo do bilhar, mas o que realmente interessa não é a precisão plana e abstracta sobre uma mesa que pode obedecer a regras cósmicas, a gravidade que pode estar completamente incompreensível, electricidade invisível e big bangs privados, linhas de tensão curtas e infinitas em relação com as forças e leis da física tornadas visíveis nesse magnífico jogo, mas no caso esse corpo (caixões esburacados, dirão os fatalistas) que comporta tudo isso e que faz corpo com a personagem de Paul Newman - Eddie Felson, hoje mítico mais pelo que é genuíno no seu comportamento, mesmo ou talvez sobretudo nas misérias, do que pelo efeito ou estilo de estrela. Eddie Felson é alguém que pode estar dominado por um chamamento incomensurável que o puxa para si e o devora, morrendo nessa consumição; ou simplesmente o taco do jogo faz fatalmente parte de si mesmo, carregado das suas veias e do seu sangue, e assim mesmo ele está certo, sendo a obsessão o factor vital de qualquer ser animado. 

No início, ainda o jogo, ou seja, a dissimulação e o pacto com as regras. Eddie e o seu agente, enganando e rebaixando os outros mas eles mesmos em primeira instância, inseridos nos mecanismos sociais e brilhando na corda bamba. A batalha épica que dura e dura com Minnesota Fats, o seu talento extraordinário a impor-se e a sua natureza a derrubá-lo secamente, sem recurso. Com o sorriso ampliado ainda do medo. Sai do jogo, entrega-se a si próprio incondicionalmente, conhece uma mulher/menina/velha que ao contrário dele ou não tem interesse nenhum na vida ou já o teve e o que sobrou foi o que esse fogo permitiu. De tragédia em tragédia – de fidelidade plena em fidelidade plena – vivem o sonho que pode ser real ou apenas o onírico de qualquer paraíso – rodeado de flores e sorrisos ou do degredo do álcool e do caos caseiro, como aquela pintura de algodão dos anjos dos impressionistas ou de Borzage em que ambos nos fecham a janela para eles mesmos – e no instante ao mesmo tempo mais fugaz e de maior peso de todo o filme – esse piquenique à Kazan ou à Joshua Logan – a mulher das letras diz ao Eddie da acção que ele não é um perdedor nato mas sim um vencedor sem margem para dúvidas. Muitos passam uma longa vida inteira sem se interessarem por nada, falando como Eddie fala da sua paixão, basta um segundo ou a bola ao calhas. 

Entre deuses e homens. Carlos Resende, treinador de Andebol do ABC de Braga e um dos grandes génios da actualidade quer se trate de desporto ou de qualquer outra área que envolva pensamento, humanismo e pressão, campeão esta época com uma equipa de tostões alguns anos depois de ter acabado a carreira de jogador como o melhor de sempre, disse em entrevista que nunca fez um esforço na vida (ou na carreira, para o politicamente correcto); sempre se levantou cedo da cama, conciliou estudos e bola, trabalho e bola, família, amigos e bola, com o maior dos prazeres e das facilidades. Nunca ninguém lhe apontou uma pistola à cabeça para exercer a sua paixão, nunca proferiu o credo dos coitadinhos, e assim brilhou, com a mais certa das naturalidades, a beleza e o tal do génio. Eddie Felson, cravado dos demónios das pulsões indetectáveis e do mau olhado que o fumo das salas (ou necrotérios, segundo os pessimistas) e a diversão de quem faz o que gosta traz aos comentadores de bancada da vidinha que não admitem que os outros vivam os seus sonhos por eles, poderia ser um Carlos Resende, mas as arestas entre a sombra e a claridade são cortantes e sem aviso. Alguns, atraídos pela cor da noite, de lá não desejam sair, campeões sem manchetes. E assim, à personalidade que lhe era exigida pelos patrões e donos da vida adulta, essa menina e velha fez-lhe perceber que a solução era a entrega directa. Só que uns são muito fortes e morrem mil vezes e continuam a insistir nos mesmos buracos, e outros mesmo sabendo o certo só fazem o errado. Sarah Packard, esse ser acima de tudo descascado como nunca se viu em película, talvez tenha sabido demais, mirrado e morrido; ou alguma coisa inconfessável não tenha dito para lá da acusação feita ao agente de George C. Scott antes de cortar os pulsos e se entregar ao desconhecido; Outra hipótese, a mais cruel e que rasga a ontologia com ambiguidades de cálculo, é que ela não tenha aprendido a não dar as desculpas dos desistentes, como parece ter aprendido Eddie no jogo derradeiro com Fats, em assunção total rumo a um amanhecer (ou ao eclipse, mas mesmo assim assumido). Com o sorriso já sabido. Sabido e porventura fuzilado pelo mais roedor dos bichos, a culpa. Esperemos pela longa escuridão que nos trará os néons, o speed e Tom Cruise em The Color of Money, novas velocidades e nova psicologia que muito terá a esconder e a revelar nos esconsos do tempo que passou. 

Rossen parece só se interessar e só se mexer nos meandros mais frágeis, imperscrutáveis e sem cor exacta da existência – andou pela escrita de The Roaring Twenties de Raoul Walsh, ainda nos anos 30 – e então não há sinopse, análise ou conclusão que valha, apenas o relato, os olhos húmidos e o andar estragado, esse vacilar como certeza incerta de constituições assim. O final, um caminhar para algures, desconhecido muito mais temível, é a maré dos obsessivos. Esses que por não sossegarem ficam sem rumo, sem crédito, sem emprego ou amanhã, sabendo o certo e praticando o incerto. The Hustler é sobre pedreiros, sobre cineastas, até sobre prostitutas, vagabundos, deformações, casualidades ou conquistadores do mundo, santos ou guerreiros que caminharam sem pedirem desculpas. No nosso ciclo de cinema americano houve Howard Roark (The Fountainhead) e há-de haver Robert Eroica Dupea (Five Easy Pieces), ambos absolutamente radicais e absolutamente principiantes. The Hustler é sublime pois a tensão das vontades e das acções e a matéria do filme estão síncronas – como uma máquina de sobrevivência médica faz parte do moribundo - concentrando o absoluto num universo de onde não saímos – dentro das paredes do jogo ou nos quartos – entalhados e drenados no traçado e no peso do enquadramento imperturbável que se entrega ao caos e o comporta; no branco e no negro mesclados, metamorfoseados, possuídos. O vórtice da paixão escutada. Tão ferrado como Nicholas Ray ou Sam Fuller; tremente e teimoso pelos subterrâneos de Phil Karlson ou Jack Garfein.

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