quarta-feira, 8 de junho de 2016

Some Came Running (1958) de Vincente Minnelli



por José Oliveira

Some Came Running, o filme de 1958, é baseado num romance de James Jones com o mesmo nome lançado apenas no ano anterior, fascinante escritor da hoje chamada segunda linha da literatura norte americana do pós segunda guerra mundial – bendita segunda linha tantas vezes melhor do que a titular – e muito mal recebido depois do sucesso estrondoso de From Here to Eternity. A crítica acusou-o de apressado, mal escrito, cheio de divagações, inutilidades e falta de nexo. Vincente Minnelli, humanista incurável, percebeu logo que não se tratavam de erros mas sim da busca do calor essencial a cada qual, desse irracional da paixão em estilhaços, da volta ao lar condenada, de alguns no acaso, coralidade onde os seus seres vão constantemente da tensão ao rodopio, resultado dos instantes graves e da bifurcação sem apelo nem agravo. Movimentos estonteantes e pacificações vislumbradas que divergindo nas palavras e no celulóide conservam o essencial. Jones expande-se no tempo, na geografia, no dia-a-dia detalhado – a inenarrável central de táxis aberta por Dave Hirsh, o papel da vida de Frank Sinatra, por exemplo – e no amor em lento trabalho, enquanto Minnelli tudo concentra, os amores furiosos em primeiro lugar, num diminuto cenário e em poucos dias para tudo fazer explodir na cena da feira popular, onde as cores garridas do technicolor e os ângulos vacilantes do cinemascope se consomem num fim ou numa libertação que é o auge do livro ou do filme. 

Dando a palavra a Jones, é lá perto do final das mil páginas originais deste contundente e contraditório altar terreno que se lê: «a essência, o sumo do que queria dizer, era que o homem constituía por si mesmo um universo sagrado e ao mesmo tempo um balde de porcaria, que infectava o ar do jardim e do qual era preciso desembaraçar-se o mais rapidamente possível. Estas duas coisas não só se misturavam indestrinçavelmente, sim formavam uma entidade só e única, não existindo portanto mais do que uma evolução». Isto é o que Hirsh ousou dizer num momento de aflição ou de clareza, e é o coração de Some Came Running. O alto e o baixo, o sublime e a degradação, a expressão bela e os impulsos selvagens e irreprimiveis. Contradições que são o sangue e a normalidade de quem como Minnelli, Jones ou Hirsh – ou a personagem de Dean Martin e absolutamente a de Shirley MacLaine – se entregam ao turbilhão da vida – que podem ser os copos emborcados sem regra, o jogo das cartas como modo de vida ou a inocência sem freios – e assim tanto estão ao lado dos modos aceites e ditos bonitos como no momento seguinte bailam com a selvajaria e a sujidade. 

Voltando ao filme, tudo isto está logo na primeira cena. Hirsh a aterrar na sua minúscula cidade natal, muitos e muitos anos depois de a ter mandado às favas, ressacado de morte da noite de ontem, acordado pelo motorista e com a cabeça ainda em chamas, tudo acentuado pela fabulosa partitura pica-miolos de Elmer Bernstein. Sai do autocarro e atrás dele a rapariga de MacLaine, Ginnie simplesmente chamada, que correu atrás do magala pois a bebedeira desse tudo lhe prometeu. Hora e palco perfeito para o sagrado e a porcaria tomarem conta da interacção, de tudo. Ele, muito naturalmente, nem se lembra dela. Ela, já tinha feito todos os planos do mundo e agradecido aos sonhos. Hirsh afasta-a, corre com ela, como que a abraça. Oferece-lhe dinheiro como a uma prostituta descartada, pede desculpa, é carinhoso e amargo. Uns entre nós podem achar comportamentos destes genuínos, outros apelidar de bestas e de porcos os seus autores. Isto para não referir muito esse encontro feio entre a Ginnie de má fama e a sua rival de tacão alto afamada, onde sobre alta cultura ou sobre sexo masculino ambos dizem o mesmo, sendo a primeira muito mais singela e por isso mesmo complexa e clara. Mas Minnelli, e Jones, não fazem julgamentos, apenas seguem o fluxo, possuídos, na caneta e na câmara, por tal febre. 

Ficando agora no temperamental e ainda hoje não consensual cineasta – tantos diriam "realizador" – do povo e dos largados, mas também de artistas e dançarinos, muitos especialistas têm dividido a sua obra entre o género musical e o melodramático, a comédia e a tragédia. Mas basta ver a sequência da morte de Ginnie, que depois da desgarrada culmina com uma junção em torno do seu corpo e da sua aura, próxima das composições renascentistas mas tocada pelo bailado da Hollywood quintessenciada, num equilíbrio e num derrapanço de forças e de centro que vai além da fasquia da modernidade – e para quebrar ainda mais o charco basta lembrar uma entrevista em que Minnelli a propósito de Yolanda and the Thief e outros fala da sua admiração pela pintura surrealista, de Max Ernst a Salvador Dalí, ganhando a questão dimensões completamente alucinantes (atenção ao sonho/Dalí/Luis Buñuel de Spencer Tracy Father of the Bride) - para se perceber e sentir que tudo na arte e no respirar de Minnelli é uno e igualmente indestrinçável, consanguíneo, sem fórmulas prontas-a-vestir; sequência que ao lado da aurora sinfónica do coro de animaizinhos que vai acordando em The Clock, será o exemplo supremo. O deslizar esvoaçante e os engates corriqueiros, os insultos sem intenção e o triste crime, o canto dos pássaros enlaçado com o vociferar dos incompreendidos. Assim como se disse e é evidente que em Orson Welles a poesia entra na prosa e a prosa é logo poesia, também no caso de Minnelli o dito musical e o dito romanesco correm nas mesmas veias, sem prejuízo de rebentamento. A varinha de condão das fadas sempre fez parte do repertório e da vasta gama de recursos do cineasta, tanto como a alucinante e descarnada sensação de realidade e de chão. Por isso não há gaveta nenhuma onde se possa arrumar disto. 

Resquícios de Western e melodrama sem amarras. O cinemascope ao nível dos sentimentos e o technicolor a rebentar em encarnados incendiários no instante lancinante. Miséria, companheirismo e redenção. Dave Hirsh, que não queria mais escrever por nada deste mundo, que tinha deitado para o balde do lixo o seu último manuscrito - mas que trazia na mala junto com as garrafas de whiskey as obras completas de Faulkner, Hemingway, Wolfe, Steinbeck e Fitzgerald - descobriu uma tal energia e candura secreta na menina de Ginnie, um modo de viver pacificado e livre mesmo na dor no estóico Bama, o personagem de Dean Martin, e que aprendeu também decisivamente com a professora que o rejeita ou com o irmão cheio de sede da decência e do dinheiro, fez o que tinha a fazer e acabou o romance, emergindo forte à sua condição ambiguamente afastada. Como fez o que tinha a fazer aquando do primeiro encontro – mais do que encontro, reconhecimento de uma estirpe fortíssima, frágil e irmã na moral do tudo ou nada – com Martin: "quando tinha a tua idade eu sabia bem como arranjar bebida" dispara Sinatra ao miúdo pusilânime que não consegue um trago, e logo Minnelli oferece a Martin um dos grandes-planos mais rasgados, bondosos e genuínos da história do cinema; grande-plano do tamanho dos prédios modernos ou das montanhas seculares, como um tronco de Manoel de Oliveira; contracampo para Sinatra e está selada uma amizade imune a todo e qualquer acontecimento, ego, deriva. No plano final, Bama a retirar para Ginnie o chapéu que jamais tirara, dá-se o afastamento pleno de todas as distâncias lamentosas, em comunhão suprema. Entre as crianças cheias de tempo e ainda imunes ao seu passar e os adultos trapalhões em constante corrida que nada sabem fazer direito, essa vénia. 

No mais, Some Came Running não tem movimentos de câmara elegantes, sofisticados ou subtis, tal como The Tarnished Angels, o filme de Sirk que vimos na semana passada, não os tinha. Nem os encarnados da paixão e da morte, como os cinzentos do fumo ou os dourados da bebida não são ilustração escolar ou psicológica. Toda esta imensa edificação está destituída de visionarismo ou do cálculo cerebral, pois trata-se da arquitectura das entranhas. O tal do irracional e do calejamento dos vividos são a mão-de-obra e a argamassa deste caso inaudito e irmão da banal novidade da publicação sensacionalista. Travellings e temperaturas em acordo, camaleónicos, conforme o orgão e a víscera em toque. Era uma vez... e não se sabia da morte, já foi uma vez... e tanto dela se tacteia. O filme, o livro, a vida, acontece: Sinatra a insultar MacLaine indesculpavelmente num segundo para no seguinte lhe pedir ajoelhado que esta se case com ele. Dean Martin a desenvolver que nasceu para beber tal como o seu amigo nasceu para escrever e por isso vive e morre conservado na bebida como Dave na fogueira literária. Alguns, como estrelas cadentes, tudo em milésimos, de passagem, amando o efémero, à maneira de Eugénio de Andrade.

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