quarta-feira, 20 de julho de 2016

Hell to Eternity (1960) de Phil Karlson



por José Oliveira

Vale sempre recordar a doutrina de Phil Karlson, homem do lixo dos passeios comuns e de muitos palcos baixos e altos, cineasta, artilheiro da chamada série-b do cinema clássico americano, fascinante e atormentado artesão: veracidade, natureza, osso, implicação. Trabalhando com nada ou com milhões, o que lhe interessou foi a forma certa a cada caso, a cada enquadramento ou respirar, sempre a rasgar normas, sempre novo. Fez os mais acossados noirs, acompanhado e protegido pela sombra dura e magnética de John Payne, como 99 River Street; filmes de género variado, tipo assalto: 5 Against the House, obliqua aventura pelos mecanismos dos anseios e dos brilhos sem moral ou com ela dinamitada; Westerns não pretos e brancos: Gunman's Walk é um dos becos da luta entre o incondicional e o imperdoável; ou as vinganças finais já nos anos 70 (o companheiro já é o arcanjo e mostrengo Joe Don Baker, ainda vivo, façam retrospectivas!) que puseram em sentido as revoluções e as ruínas da nova Hollywood, como que apelando aos velhos escritos e ao inaceitável. E foi, como tinha de ir, compulsão sem escape, à guerra. 

Na abertura de Hell to Eternity, o paraíso, crianças à bulha no pátio da escola, nostalgia. Paraíso que configura e adivinha a vida adulta – americanos no seu país contra um mexicano nascido americano que é amigo de Japoneses. A situação evidentemente que se resolve, as tragédias “normais” batem à porta ou estalam os dedos - Guy Gabaldon (Jeffrey Hunter como o aço de Payne), o herói que iremos seguir fica com a casa vazia, sem pai e com a mãe às portas da morte – e outra girândola do destino voa sem lógica alguma: o miúdo perdido é recebido de braços abertos pela família japonesa e logo se torna um deles, aprendendo a língua alheia e ensinando a sua. É a felicidade clássica, essa ordem arrancada à dor que se impõe e mantém, mesmo no aparentemente extraordinário. No diálogo fundamental desta odisseia, Mama-San, estátua vigilante e criadora, transmite ao filho adoptado que o cimento das gerações é o mais alto a alcançar. Os velhos devem cimentar os novos para depois os novos cimentarem os seus, e deixando-o boquiaberto ainda lhe abre os olhos para o ilógico natural da humanidade – fazendo-o ver a guerra como mais uma coisa de entre tudo o que a nossa raça criou, sem espanto. Diálogo que abraça com a história ancestral do amor e da falta dele que uns reconhecem e outros não. Todas as coisas se vão transformando no seu semelhante, serenamente, todas as coisas que são coisas. 

América contra Japão ou vice-versa, Pearl Harbor. A mão da tragédia a virar-se, os velhos acomodados e anafados a matarem os novos e os esqueléticos, uma relação de corpo-a-corpo ou de amor entre um soldado sem terra nem língua esventrada pelos campos de batalha esmifrados a grão descarnado de película de cinema e pela montagem mais do que dialéctica, corpos a caírem ao deus-dará, sem rosto ou fala, e uma das panorâmicas (fundida a ferro escaldante com o bailado Wagneriano de Apocalipse Now) mais cruéis e lúcidas de todo o cinema: vejam bem o que os irmãos ou simplesmente o que homens fazem uns aos outros, carne da mesma carne, sem irmos à alma, estátuas petrificadas no mesmo solo dos cadáveres em estertor, sangrados, logo descansados. Todos iguais no lado de lá e no lado de cá. Para o drama perene se rasgar e complexificar ainda mais: o soldado Gabaldon que ama os japoneses na sua casa a ter de enganar e matar os mesmos Japoneses na ilha do diabo, para os salvar a seguir, lhes indicar o caminho e ver o suicídio em prática fatal. Os americanos que têm um japonês no seu grupo a dependerem dele e do seu suposto heroísmo. Na guerra é matar ou morrer, diz um deles, contando com instinto e contradição, sabendo que aquele jogo indefinível jamais os irá definir. 

Sem comentários. Gabaldon a ler uma carta da sua mamã, palavras impressas que no inferno metem a tal ordem de cepa na ordem do dia. Tudo continua e há missões como valores que resistem a todos os números e actos oficiosos. No crepúsculo o dito americano ou mexicano amado e criado por japoneses pega numa criança pelos braços para de certeza a oferecer a Mama-San e para cimentar os alicerces genuinamente humanos como devem ser cimentados. Hell to Eternity é um petardo universal e aglutinador, onde perfeições cavam pelas vias do inferno, aparecendo japoneses estúpidos como americanos estúpidos, americanos mais do que perfeitos e japoneses como esses. Em Hell to Eternity pode-se amar e detestar sem lei, credo ou religião a servir de cobarde caução, conforme justiças e paixões, ordens e atalhos superiores, animalidade e beleza, tal como na bulha infantil ou na argamassa da composição final. Catártica e silenciosa oração para o purgatório da violência aleatória dos campos de batalha sem campo de hoje.

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