quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

The Thing (1982) de John Carpenter


  
por João Palhares

Fomos injustos para com a ficção científica neste grande ciclo, não tão grande que tivesse incluído nele mais um ou dois exemplos do género, de Edgar G. Ulmer (The Man from Planet X, The Amazing Transparent Man) a Jack Arnold (It Came from Outer Space, Tarantula, The Incredible Shrinking Man) de Gordon Douglas (Them!) a Don Siegel (Invasion of the Body Snatchers), de Roger Corman (X: The Man with the X-ray Eyes) a Stanley Kubrick (2001: A Space Odyssey), passando por Richard Fleischer (20.000 Leagues Under the Sea, Soylent Green) ou David Lynch (Dune). Qualquer um deles (e qualquer um deste filmes) merecia estar aqui a representar este género popularizado nos anos 30 e 40 por escritores como Isaac Asimov, Leigh Brackett, Ray Bradbury, Arthur C. Clarke ou Robert A. Heinlen. Muitos desses escreveram na revista que é hoje considerada o berço da ficção científica pura e dura, Astounding Science Fiction, pela altura em que John W. Campbell, Jr. lhe tomou a rédea como editor. Foi ele que escreveu Who Goes There?, a história que dá origem tanto a The Thing from Another World de Howard Hawks e Christian Nyby como ao filme que hoje vamos ver: The Thing, de John Carpenter. 

Esta ficção científica, parida pelas descobertas e aventuras sub-atómicas de Niels Bohr, Albert Einstein, Erwin Schrödinger e Max Born, só chegou ao cinema nos anos 50, no seguimento da que será a mais triste e trágica das aplicações práticas da ciência: o lançamento da bomba atómica em Hiroxima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial. Vêm então as atmosferas de fim do mundo, as aberrações químicas a semear o horror entre a população como monstros ou a descobrir pragmaticamente o seu lugar na vastidão do cosmos, as invasões e as visitas extraterrestres nas suas múltiplas formas, os cientistas loucos de saber e de poder, arrastando com eles os inocentes e as invasões das mentes frágeis dos terrestres por forças estranhas que levam a cabo a sua ocupação nos domínios da consciência. A física quântica viabilizou o oculto e deu rédea solta à imaginação de escritores e realizadores, que começaram a usar o futuro para falar do presente. E em 1951, Edgar G. Ulmer, nos cenários em segunda mão de Joan of Arc (produção prestigiosa de Victor Fleming interpretada por Ingrid Bergman), realizou The Man from Planet X e encheu-o com um nevoeiro místico onde transpareciam todas estas questões. 

Era o tempo das viagens que ultrapassavam a velocidade do som (foi Chuck Yeager quem o conseguiu, como veremos em The Right Stuff, no fim do mês) e das audiências e inquéritos do comité de Joseph McCarty, que tanto aguçaram as garras, os dentes e as penas dos argumentistas de Hollywood. A Guerra Fria também estava no auge e os miúdos que cresceram durante esta década viviam ainda com o medo de um ataque nuclear, instruídos pelos pais e professores com simulações atómicas e exercícios de sobrevivência. Entre essas crianças, estava John Howard Carpenter, que nas horas livres, se perdia nas imagens destes filmes que o levavam a querer fazer os dele. Nas suas próprias palavras: “creio que a primeira experiência realmente terrificante que me aconteceu no cinema foi a projecção em três dimensões do filme de Jack Arnold, It Came from Outer Space. Na cena de abertura havia um meteorito que caía no deserto. Depois, subitamente, começava a dirigir-se em direcção da câmara a toda a velocidade, em chamas, até que explodia. Por causa do efeito de relevo, tive a impressão de que o meteoro me ia explodir na cara. Saltei do meu lugar e pus-me a correr para a saída. Mas lembro-me que, segundos depois, o meu medo se transformou em excitação. Foi certamente uma das experiências mais incríveis que me sucederam em criança. Voltei para a minha cadeira, a pensar: “Um dia, também quero fazer isto. Quero que as pessoas sintam aquilo que estou neste momento a sentir”. 

Mais tarde, dos catorze aos vinte e um anos e antes de entrar para a USC, fez pequenos filmes com os amigos usando a câmara de super 8 do pai, curtas com nomes como Revenge of the Colossal Beasts ou Terror from Space. Na USC de Los Angeles e num só ano, fez Captain Voyeur, Warrior and the Demon, Sorcerer from Outer Space, Gorgo Versus Godzilla e Gorgon, the Space Monster. Foi lá que assistiu a conversas com grandes nomes da Hollywood clássica como Orson Welles, Howard Hawks, John Ford, Alfred Hitchcock e Billy Wilder. Com The Ressurection of Bronco Billy, curta co-escrita por ele e com banda-sonora sua, a equipa de alunos da USC envolvida ganhou um Óscar para Melhor Curta. Mas como costuma acontecer com qualquer grande cineasta, a aventura académica não correu bem. Fora o tentarem impingir a gente nova e influenciável os Deleuzes, os Barthes e as Sontags da berra, tentam também apropriar-se do trabalho dos seus alunos, no caso, a primeira longa metragem de Carpenter, Dark Star. Nas palavras de Carpenter: “Na origem, Dark Star era um filme de fim de curso, que realizei com Dan O’Bannon, futuro argumentista de Alien. Consegui recolher financiamento, e investi uma parte importante do meu dinheiro pessoal. E assim realizei esta média metragem, que quatro anos mais tarde se tornou num filme de hora e meia, estreado nos cinemas americanos. O negativo foi meu até ao momento em que o departamento de cinema da USC se declarou proprietário de todos os filmes realizados pelos estudantes da universidade. Na verdade eles tinham os seus próprios circuitos de distribuição, o que lhes permitia colher imediatamente benefícios de todos os filmes realizados pelos seus alunos, designadamente mostrando-os noutras universidades americanas. Quando Dark Star se estreou, finalmente, em sala, a direcção do departamento de cinema da USC telefonou-me a pedir que lhe entregasse o negativo do filme. Respondi-lhes então, gentilmente, por palavras delicadas, que por mim eles bem podiam ir dar uma curva. Nunca tinha assinado um contrato a estabelecer que a escola era proprietária de todos os trabalhos dos seus alunos. E que eu saiba, não existe nenhuma escola de pintura que alguma vez se tenha declarado proprietária dos quadros pintados pelos seus alunos. A USC fez tudo o que podia para me lixar.” 

Dark Star é também um filme de ficção científica e que paga a dívida sentimental e afectiva de Carpenter a todos os filmes já citados de Arnold, Siegel, Ulmer, Douglas, Hawks e Corman mas também a bizarrias obscuríssimas de Fred F. Sears, Edward L. Cahn, Dan Milner, Alfred E. Green e Inoshiro Honda. Além dos importantes filmes ingleses da série encabeçada pelo Professor Bernard Quatermass e produzida pela Hammer (The Quatermass Xperiment, Quatermass 2 e Quatermass and the Pit, todos baseados em histórias ou argumentos de Nigel Kneale, um dos maiores ídolos de Carpenter, com quem trabalhou em Halloween III: Season of the Witch). Se adicionarmos a obra de H. P. Lovecraft e os westerns de Howard Hawks completamos finalmente o caldo das influências de John Carpenter e justificamos esta longa divagação ainda sem dizer uma palavra sobre The Thing, que de John W. Campbell, Jr. a Nigel Kneale, passando por Hawks, Arnold, Corman e Lovecraft é um compêndio admirável do fantástico, do terror e da ficção científica dando ainda um passo em frente na evolução desses géneros, da nave de milhões de anos a alcançar a superfície terrestre ao monstro visível e de pesadelo, coisa que nunca se tinha visto num filme de terror. Descrevendo lutas interiores com o medo, com a identidade e com uma carrada de outras coisas que nos impedem o sono, Carpenter vai a passo muito ponderado até ao final, que projecta tudo num mar de mil hipóteses e possibilidades. Faltou falar da Twilight Zone de Rod Sterling, mas é esse o género de alcance, multiplicado pelo gelo e pelo fogo da Antártida... 

"Os filmes são pedaços de película colados uns aos outros num certo ritmo, uma batida absoluta, como uma composição musical. O ritmo que se cria afecta o público." E todas as sequências de The Thing, são assim pensadas e executadas. Repare-se na cena em que se ouve Superstition de Stevie Wonder e Carpenter vai andando de divisão em divisão e se ouve a música cada vez mais baixo como se se fosse para longe do que é seguro e a tensão fosse aumentando. Os travellings por corredores vazios e escuros que não mostram nada mas nos dizem tudo. As facas escondidas em primeiro plano e que nos tornam cúmplices e nos associam à loucura dominante, que escalara gradualmente desde que a primeira semente de dúvida se instalou no coração destes homens. A banda sonora como o bater do coração, acelerando a batida quando o perigo está próximo. O frio como ameaça e o fogo como solução. Um monstro tão concreto e, no fim, tão abstracto. Já coisa próxima de medos bem profundos e que não têm nada que ver com extraterrestres mas só com os homens. Por isso o filme só pode acabar com um sorriso desencantado e desesperado, como o de In the Mouth of Madness, treze anos depois. Chegados à boca da loucura, ao fundo do abismo, passando a fronteira da incredulidade e dos últimos recursos, é a única coisa que se pode fazer. O último cartucho na câmara dos instintos naturais de sobrevivência...

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