quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Heaven's Gate (1980) de Michael Cimino



por João Palhares

Disse na folha de sala sobre The Deer Hunter que as suas questões não resolvidas eram "apresentadas de forma solta, dispersa e imperscrutável, como na vida", e para Heaven’s Gate pode-se mesmo começar por aí: são tantas as personagens que chocam e entram em rota de colisão nesse Wyoming pintado (há outra palavra, porventura?) por Michael Cimino e Vilmos Zsigmond (naquele que há-de ser um dos cumes absolutos da pintura cinematográfica, onde se arrisca tanto e tão bem com a luz e com o vento, com as nuvens e com a poeira, captadas de forma a manter e mostrar a sua essência redentora, transformadora e eterna...) que se torna muito difícil arriscar escrever sobre motivações e sentimentos além daquele que põe todo o filme em marcha: a resistência contra os barões de gado e contra os mercenários contratados com o aval do Estado e do Governo Central dos Estados Unidos da América. Mas dentro dessa luta temos Billy (a personagem de John Hurt), do lado errado mas dizendo sempre coisas tão certas, Nate (Christopher Walken), de lado nenhum que não o seu mas fazendo tantas vezes coisas erradas, o Jim (Kris Kristofferson) de origens e porte aristocráticos e que se calhar se pode dar ao luxo de fazer o que está certo (quantas vezes lhe atiram isso à cara, no filme?) e os imigrantes desalmados que não têm outro remédio que não seja fazê-lo, à custa da vida. 

Além disto, e como acontece em vários filmes de Michael Cimino, as cenas prolongam-se e mostram coisas perfeitamente soltas e de fluidez desarmante, exemplares de quem, na prosa, dá largas à poesia (e tentar imaginar como é que o realizador o conseguiu fazer, em termos práticos, é uma questão bem produtiva), do bailado ao som do Danúbio Azul de Johann Strauss e dos círculos percorridos à volta da árvore em Harvard, que se repetirão na batalha de Johnson County, à dança e à noite de copos do último Domingo antes da chegada dos mercenários ("let them have their Sunday", diz Kris Kristofferson a Jeff Bridges), passando pela luta de galos que se transforma em luta de homens no barracão de John Bridges (a personagem de Jeff Bridges) e que dá o nome a este filme (que vem também do vigésimo nono soneto de William Shakespeare). E que dizer da recitação da lista da morte, ou da chamada para a resistência que acaba com o tiro de caçadeira na orelha do presidente da cidade, disparado por uma emigrante decana e atravessando a sala pelo meio da multidão, num lampejo, que é quando todos decidem partir para a batalha e enfrentar a Associação de Criadores de Gado? 

Cimino estende as cenas e as sequências não por simples teimosia ou para enfrentar os estúdios por enfrentar os estúdios mas sim por amor às suas personagens (vejam-se os devaneios poéticos de Billy, que tem além disso tudo um plano "à Ford" dedicado apenas a si, o que é um atestado perfeito da complexidade do seu personagem e do carinho que Cimino lhe tem; Geoffrey Lewis, que tem tempo para contar uma estória sobre línguas e lobos e diz que as balas não o ferem; o discurso de Brad Dourif no meio da confusão dos debates entre os imigrantes, que pode ser visto como um solo de instrumento nesta grande sinfonia onde tantos têm lugar e espaço e tempo para terem lugar; etc, etc...). E não o faz só por isso, fá-lo também por questões da história que tem para contar, controlando o que sobressai num dado momento para noutro ecoar numa melodia ou num olhar (a fotografia da rapariga de Harvard que tantas vezes se vê pode levar-nos a arriscar pensar que há uma mulher aquele tempo todo e por isso Jim não se compromete casar com a Ella da fabulosa Isabelle Hupert). Pouco se fala do trabalho de escrita de Michael Cimino, mas ele escreveu sozinho este filme e ainda dezenas e dezenas de argumentos que não viram a luz do dia, muitos de certeza com o alcance e a abrangência deste. 

É ainda neste filme que convivem mais actores da obra passada e futura de Cimino. Jeff Bridges e Geoffrey Lewis vêm de Thunderbolt and Lightfoot, Christopher Walken vem de The Deer Hunter e Mickey Rourke tornar-se-á a personificação perfeita das questões e dos paradoxos que sempre assombraram Cimino, em The Year of the Dragon e Desperate Hours. De resto, também aqui as amizades e as guerras se desfazem e intrometem nos destinos dos homens, como no resto da sua obra, e confluem, além de colaboradores (já falamos dos actores, mas também Joann Carelli, Vilmos Zsigmond e David Mansfield, trabalharam, ou voltariam a trabalhar com Cimino) temas (as relações de força e de perseverança às circunstâncias - voltando ao raio e à candura: Kris Kristofferson é Thunderbolt, John Hurt é Lightfoot?), obsessões ("um grupo de homens, sentados à volta de uma mesa, numa suite de hotel, enquanto comem o pequeno-almoço ou o almoço, a comer comida fina de bela porcelana, num ambiente agradável, a discutir calmamente quantas pessoas vão matar...", como disse Cimino a Bill Krohn), motivos visuais (as montanhas e os lagos de Cimino, puros e cristalinos) e narrativos (primeiro a despreocupação, a liberdade e a beleza absolutas e, depois, um oceano de remorsos).

Lançando-nos no caos da história como se fosse tempo presente, deixamos de saber se faríamos o que estava certo nas mesmas circunstâncias. Fazer o bem é a coisa mais difícil do mundo, e por isso Billy e Jim se embebedam tanto, da manhã à noite, por isso o peso da consciência se vê nos semblantes de toda a gente neste filme. E, mais importante, por isso valem tanto esses bailados, jantares, passeios e conversas de amor entre as personagens desta obra fabulosa, tanto mais verdadeiros quando sentidos por últimos, abalando as fundações deste mundo. Porque é que este filme se chama Heaven's Gate? Porque Jim, Ella, Nate, J.B. e Billy as vêem e, por momentos, até ficam à entrada? Como é que cantava o outro? Não era "it's getting dark, too dark to see... I feel I'm knocking on Heaven's Door"? Mas quem está do outro lado para a abrir?

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