sexta-feira, 28 de julho de 2017

Lucky Star (1929) de Frank Borzage



por José Oliveira

Começamos o ciclo de cinema americano com Charles Chaplin, mas não com a ternura de um City Lights, pois tratou-se de uma carta-branca a Pedro Costa e ele escolheu Monsieur Verdoux, um dos mais cruéis e lúcidos ajustes de contas com os crimes de alguns humanos que certamente não mereceram outra coisa. Foi Costa que disse, cito de memória, que foi preciso alguém – Chaplin – ter sofrido muito e ter visto muita coisa terrível para pôr em marcha aquela máquina arrasante que é Verdoux. E assim já entramos de cabeça no que foi o primeiro século do cinema de Hollywood, dos que trabalharam nas suas margens mas fazendo como o fizeram pois existiu essa montanha de todos os sonhos e de todos os pesadelos, ou os que lutaram contra ela e daí retiraram o produto do embate. De resto, alguns ainda não terão recuperado das guerras no terreno de Phil Karlson ou da solidão arrepiante de Nicholas Ray, da solidão gelada de quem tudo teve nas mãos e largou por conta e risco aceites do Jack Nicholson de Five Easy Pieces ou das guerras do dia-a-dia dos vampiros de Fritz Lang; como superar a subversão diabólica da natureza com que o esfarrapado humanista Sam Fuller sempre lutou, as máquinas carregadas de excesso de amor de The Tarnished Angels, a perdição dos que descobriram o seu dom logo no leite materno à imagem do Newman e do Cruise nos filmes de Robert Rossen e de Martin Scorsese? Enfim o Apocalipse tão antigo como no fio cortante do presente na monumental obra de Francis Ford Coppola. 

E assim foi o cinema americano... documento precioso e preciso das movimentações humanas e das maquinações do poder e da glória – e mesmo quando existiram os tão empolados pontapés na História ou as liberdades poéticas tudo isso só reforçou a loucura de existir, coexistir e sobreviver – onde uma grande Guerra Mundial poderia ser travada na cabeça de um indivíduo – Fuller outra vez, inevitavelmente, no Shock Corridor reservado a quem viu a luz cegante de certas verdades soterradas – ou no meio do total espectáculo que ela – a maldita guerra – também tende a ser cada vez mais, nos deixaram ficar com o ponto de areia minúsculo que o homem como o bicho é no cosmos, o filme de Coppola passando uma hora como um noir dos anos 40 ou na mesma medida do grito de deserto do genial e terrorífico The Incredible Shrinking Man. E assim foi o cinema americano... que tantas vezes só no movimento arrasante pode esquecer ou vingar o movimento arrasador que o presente excedia de realismo e de ficção. A Lilith de Jean Seberg que Rossen velou na sua despedida deste mundo foi tanto a primeira mulher criada pelo diabo como o ser frágil e sensível demais que não alinha nos jogos da vaidade e do dinamismo dos mercados actuais, que não compreende o que quer dizer pró-actividade nem consulta as agências verdadeiramente mabuseanas das agências de rating.... essa Lilith está mesmo ali bonita e pequenina e com todo o futuro azul e solar à sua frente no mais belo jardim e tudo lhe pode acontecer – Rossen, e tantos outros, nos fizeram ver isto através das imagens e dos sons saídos não só da carrne e do sangue e do suor como também do encontro e do desencontro das almas tacteantes. O fantasma carnívoro e omnívoro da luz e da química do cinema.

Mas hoje temos a última sessão, o fecho momentâneo. E urge redimir, limpar, extrair sujidades e cancros e culpas. Redimir misérias sem culpas. Urge, depois de um caminho e de uma via-sacra com tanta tortura e com tanta paixão – o Cinema Americano também é paixão incomensurável e um segundo cadente num filme de Ray pode valer a eternidade – ficar com uma imagem acabada e absoluta da luz do amor e da temperatura da coragem. E Frank Borzage, o realizador deste Lucky Star que deu nome ao nosso cineclube por sugestão de Pedro Costa, foi o mais puro entre os muitos anjinhos da guarda da nossa companhia que o cinema já teve ao canto da almofada. O que é bastante complexo de sustentar por palavras, pois só numa imagem de fusão perfeita entre o homem e a mulher e o mundo (e Deus) no final de Lucky Star pode ser sentido e percebido sem margem para dúvidas. O encontro das almas prometidas, merecidas, inseparáveis, neste mundo ou noutro qualquer, na chamada vida ou na imaginada morte. E complexo pois vários filmes de Borzage levaram ao cúmulo o erotismo, o surrealismo ou a metafísica. Pois as águas que banham e inundam Mary Duncan e Charles Farrel em The River são também correntes furiosas de esperma; a baixa combustão geral de George Brent mesmo depois de encontrar o seu arcanjo em Living on Velvet parece ligada a niilismos recentes que nada suscitam de bom, longe das dádivas sublimes; enfim, os brilhos enviesados e moldados à medida das leis sociais dos pares de corpo presente em The Shining Hour remetem para as bocarras elegantes de Ernst Lubitsch. Não entrando a fundo nas associações e simbolismos que também fundiram a filigrana da carne e a massa do espírito com o arrasador e camaleónico desejo e que assim cederam delícias aos surrealistas dos anos 20 e por aí fora.

Mas mesmo nisso tudo Borzage continua a ser o caminho, a verdade e o sagrado. O caminho, a verdade e a luz. Os rios orgásticos são olhados assim mesmo, sem ironia aprendida, existindo inteiros e reveladores na cidadela original. O desânimo e o apagamento e a negridão de quem viu a morte só deixam entrever uma parte mais bonita que é a ontológica, lá atrás no espanto da inocência e do choro do primeiro olhar, saindo da noite imemorial; os jogos de bastidores e de aparências vão acabar por destapar tudo e fazer surgir a nudez que não se veste, ainda no Éden. Com Frank Borzage, a redenção pura da criança corada, a claridade dos altos estelares a descer sobre o véu arrasante dos baixos mais do que baixos, o beijo na orelha oferecido a um dos seus três amados por Margaret Sullavan em Three Comrades, ser puro demais e de uma consumição instantânea porque na corda e na magia perfeita do pleno. E Margaret Sullavan é Borzage, é o cinema de Borzage e é a beleza e o romantismo. Quem se quiser purificar, que olhe a carne e a aura dessa menina e mulher nos sentidos mais plenos. Obra da criação e criadora esculpida tanto de carne comum como de luz inexplicável, rimando com os corpos que aparecem literalmente em luz no inexplicável Lucky Star. Lucky Star é o cinema pois todo o seu sentido pleno de emoção e de compreensão se atinge no escuro da sala rasgada pela luz que irrompe lá do alto. Inexplicável, incompreensível e plena.




por João Palhares

Como é óbvio, não podíamos terminar este ciclo de cinema americano que nos levou dos anos 30 ao nosso século e depois de volta para os anos 20, sem mostrar o filme que nos deu o nome, julgado perdido durante décadas e milagrosamente re-encontrado nos anos 90 nos cofres do Filmmuseum da Holanda: Lucky Star de Frank Borzage. É o terceiro filme do par tão estranho como enternecedor que Charles Farrell e Janet Gaynor formaram de final dos anos 20 a inícios dos anos 30, depois de 7th Heaven e Street Angel, ambos também de Borzage (“ela, palmo e meio de altura, “piccina, tanto piccina, troppo piccina”, como escreveu o meu heterónimo Ramperti, pintas na cara e nos olhos, mozartianíssima, assustadíssima (...) Ele, com quase dois metros de altura, um corpanzil imensíssimo, pés e mãos quase do tamanho dela e, lá em cima, uma cara simpática e imberbe. Corpo de quem morde, cara que não ladra”, diz o grande João Bénard da Costa no seu texto sobre o filme). Trabalhariam juntos, ainda, com Raoul Walsh e Henry King, mas foi com Borzage que sonharam com todos os céus só com o chão como amparo, que se olharam um ao outro alma na alma (se se disser “olhos nos olhos” não se começa sequer a desvendar o mistério, já que aqui a alma testa os próprios limites do corpo - não é o próprio Farrell que diz em 7th Heaven que "now that I'm blind, I can see that"?), que percorreram e ultrapassaram mil obstáculos para voltarem a estar um com o outro.

Foi no mundo de Frank Borzage, filho de um pedreiro de uma área agora italiana do antigo Império Austríaco e de uma empregada suíça de uma fábrica de seda (quem reconhecer neles alguns dos seus heróis, não estará totalmente enganado). Mundo de transfigurações e transmigrações, fusões místicas de amor e entendimentos e partilhas telepáticas, de seres imensamente maiores que os seus corpos, em que o próprio estúdio de cinema se transformava a pinceladas de luz e à frente dos nossos olhos numa realidade total e transcendente. Em I've Always Loved You, as personagens de Philip Dorn e Catherine McLeod separavam-se depois de um concerto em que ele tentava esmagar o piano dela com todos os instrumentos da sua orquestra como se se batessem ou fizessem amor, encontrando-se noutro momento transmigratório e telepático pela música que tocavam e como se se ouvissem um ao outro, apesar de quilómetros os afastarem. Em Liliom, Charles Farrell descreve a Rose Hobart o comboio que só ele e nós vemos a atravessar o cenário para o levar a prestar contas ao Criador e voltar para se redimir dos seus pecados da forma mais insólita e inesperada possível. O coração sabe o que quer e vê verdades e amores profundos escondidos em acções aparentemente mal intencionadas e egoístas. Em The Mortal Storm, o mal nazi nascia numa taberna em confrontos palpáveis entre a acção e o silêncio, entre o medo e a razão - com certeza a ilustração mais verdadeira para com a experiência interior dos alemães que se recusavam a sucumbir a esse mal e pagavam por isso.

Mas como o que nos interessa agora é outro filme de Borzage, Lucky Star apresenta-nos primeiro a personagem de Janet Gaynor, Mary, antagonizada por uma mãe que tem mais quatro filhos pequenos além dela. Vemo-los a descer as escadas, lembramo-nos de um que não as desce tão rápido como os irmãos e ainda sobe, devagar, antes de as descer finalmente e ir ter com os outros. Não haverá um sentido para esta acção, é só uma prova de que Borzage abraça os imprevistos e os acidentes e os deixa entrar pelos seus planos dentro. A personagem de Charles Farrell, Tim, trabalha muito perto da pequena fazenda de Mary, conhecem-se quando esta lhe vai levar a ele e aos seus colegas algum leite a que vemos ter misturado água para ganhar mais uns trocos (primeira das suas vigarices que vemos no filme e que tanto irritam Tim), tentando depois enganar o patrão de Tim ao esconder uma moeda que este lhe tinha dado por baixo do seu sapato. Tim percebe a patranha e dá-lhe uma sova. Alistam-se todos para combater na Primeira Grande Guerra. Tim regressa com as pernas paralisadas e com redobrado interesse em arranjar coisas que se estragaram ("Never thought much about broken things, until I got smashed up myself. That gave me the idea," diz ele a um amigo depois de ter estado um ano em França e outro no hospital). Não sabe que até ao filme acabar é ele quem vai ser transformado e arranjado pela força redentora do amor, numa travessia terrível pela neve e um abraço belíssimo por cima dos carris que prometem auspiciosos recomeços para si e para Mary.

Ver estes filmes de Frank Borzage (que era muitíssimo admirado, pelo menos pelos seus pares: Samuel Fuller disse que "Frank Borzage foi um dos maiores realizadores americanos de todos os tempos", Sergei Eisenstein equiparava-o a Chaplin e Stroheim, era o realizador favorito de Terence Fisher, junto a John Ford) ajuda-nos com certeza a perceber a geração de cinéfilos dos anos cinquenta e sessenta, que vivia o cinema tão intensamente como a vida. Apetece citar de cor o juiz benévolo de Karl May de Hans-Hürgen Syberberg, que antes do julgamento decisivo desse escritor alemão falava de um mundo interior muito maior que o das montanhas, dos mares e das planícies que se estendiam por esse planeta fora. Um mundo das ideias, um mundo dos sentimentos, um mundo dos sonhos. Podia ser a mitologia dos romances de Karl May, podia ser o Quinto Império de Pessoa. Podiam ser o mundo e os filmes de Frank Borzage...

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