terça-feira, 7 de novembro de 2017

71ª sessão: dia 14 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


O terreno era fértil, mas para homenagearmos Jean-Pierre Melville acabamos por escolher O Círculo Vermelho. Que é um mecanismo perfeito de realização cinematográfica, da gestão dos timings à exploração espacial.

Mas Melville sempre foi muito mais rico e surpreendente do que as imagens de marca que lhe colaram: as personagens complexas, discretas e comoventíssimas; os silêncios lancinantes e graves; a observação e contemplação da acção; enfim, uma liberdade transcendente.

Teremos duas apresentações em vídeo: Rui Nogueira, o mítico cinéfilo e autor da obra Le cinéma selon Melville : Entretiens avec Rui Nogueira, que conheceu bem o realizador e esteve presente na rodagem do filme que vamos ver; e Daniel Curval, outro cinéfilo apaixonado e autor do blog UNRACCORD.

Foi em Le cinéma selon Melville que o realizador declarou a Rui Nogueira que "como lhe disse, eu queria escrever um guião para um filme de assalto muito antes de ver The Asphalt Jungle, antes até de ouvir falar dele, e bem antes de coisas como Rififi. Acho que também lhe disse que era suposto eu ter feito Rififi? Não? Bom, fui eu quem convenceu o produtor a comprar os direitos: ele anunciou que era eu que ia realizar o filme, e depois não o vi mais durante seis meses. Finalmente, o filme foi feito por [Jules] Dassin, que teve a extrema cortesia de dizer que só o fazia se eu lhe escrevesse a dizer que estava contente com o combinado. O que era o caso.

"Então eu queria fazer um filme de assalto desde 1950, mais ou menos, à volta da altura em que acabei Les Enfants Terribles. Eu queria que O Círculo Vermelho fosse perfeito, claro, mas ainda não sei se vai ser; acho que os elementos são suficientemente interessantes para tornar boa a sequência, e o tempo dirá se coloquei o assalto no contexto certo ou não. Também é uma espécie de condensação de todos os filmes tipo-thriller que fiz anteriormente, e não facilitei as coisas para mim próprio de forma nenhuma. Por exemplo, não há mulheres no filme, e certamente que não é tomar o caminho mais fácil fazer um thriller com cinco personagens principais, nenhum dos quais uma mulher."

Chris Fujiwara, num artigo para a Criterion, reteve-se sobre a ausência das mulheres no filme e escreveu que "um exemplo pequeno e significante da subversão insistente do filme em relação às mulheres aparece perto do fim do filme. A rosa que uma florista dá a Corey na casa de Santi pode ser um sinal de simpatia ou um convite sexual; de qualquer das maneiras, exprime a escolha e a acção da mulher, e a sua oferta da rosa (outro círculo vermelho, já agora) é o único acto obstinado e auto-expressivo realizado por uma mulher no filme inteiro. Na cena seguinte, depois de Corey e Vogel dizerem adeus no apartamento de Corey, Vogel, ao pegar na rosa e rodopiá-la distraidamente, apropria-se do signo feminino e transforma-o num sinal da sua devoção a Corey. 

"Esta mancha brilhante de cor oposta aos tons suaves da mise en scène de Melville lembra-nos do hermetismo do trabalho de Melville. O prazer dos seus filmes, como notei mais acima, tem pouco que ver com o sucesso deles como espectáculos de acção. No entanto, se os filmes de Melville são filmes de suspense, esta palavra devia ser tomada num sentido diferente do habitual. O suspense melvilliano suspende os detalhes e os ornamentos normais, deixando apenas alguns símbolos esotéricos e uma colecção de cenários rarefeitos esvaziados para o combate, testes de habilidade, e vitórias silenciosas. O suspense em Melville é o poder do cinema em arrancar a vida do tempo, pará-la, removê-la para um espaço abstracto, e torná-la um objecto para contemplação."

Já Louis Skorecki, para o Libération, escreveu que "ao repetir demasiado que Jean-Pierre Melville é um grande cineasta, perde-se de vista o porquê do comentário. Rever deslumbrado o Círculo Vermelho dá, pelo menos, algumas pistas. Começando pela propensão melvilliena em naturalizar os seus actores como um naturalista empalha feras ferozes ou, melhor, este ou aquele animal doméstico, um gato, um cão, que o seu proprietário procura voltar a ver quase vivo. É neste quase que assenta a ambiguidade friamente calorosa da direcção de actores de Melville ­ ou daquilo que lhes toma o lugar. Aqui, através das interpretações estilizadas (e quase extintas) de Delon e Montand, somos ferozmente encerrados por qualquer coisa como uma virilidade policial levada à incandescência e com o olhar obstinado de uma baleia branca saída de Moby Dick. Capitão Ahab da homossexualidade disfarçada frigidamente sob um impermeável imaculado demasiado novo, Jean-Pierre Melville mostra as suas obsessões como outros lançam uma garrafa ao mar ou um arpão desesperadamente sozinho. Aqui, além de uma interpretação quase agonizante de Bourvil, desfigurado em polícia abelhudo e demasiado duro, vamos reter as sequências alucinadas em que Montand, invadido por ratos que rastejam pelo seu corpo, ameaçado por salamandras e serpentes, acorda com frieza de um sonho demasiado real. E se Resnais, na sua mise en scène admiravelmente contida do Meu Tio da América, recorreu a roedores gigantes conduzidos por Laborit em homenagem distorcida a este gangster de Melville?"

Até Terça!

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