sexta-feira, 7 de junho de 2019

A 15ª Pedra (2007) de Rita Azevedo Gomes



por João Palhares

Nesta conversa em que o decano Manoel de Oliveira e o eterno aprendiz João Bénard da Costa trocam aforismos durante perto de duas horas, em que a instigadora de toda a empresa se limita a dizer “quando quiserem” ao princípio e “o Dreyer” quando Oliveira se quer lembrar de Murnau (o realizador portuense dá uma falsa pista quando diz “o realizador do Vampiro”), a pergunta inicial é “como representar a vida?”. Começa-se então pelo princípio, pelos irmãos Lumière, propondo-se como arquétipos de duas correntes distintas o La sortie de l'usine Lumière à Lyon e o L'arrivée d'un train à la Ciotat. A partir daí, as possibilidades são infinitas. E o que marca a transição entre os diálogos sobre encenadores que explicam aos seus funcionários como devem sair da fábrica e as gamas de cores invisíveis com que se poderiam filmar a alma – entre as coisas e as ideias, portanto – é o relato da décima quinta pedra no templo zen de Ryōan-ji, em Quioto, apenas vista pelo coração. Objectos que se escondem a si próprios, quinze pedras alinhadas de forma a que se vejam apenas catorze de todos os ângulos. A impotência de quem percebe que a realidade ou a verdade às vezes também nos pregam partidas. Foi a intuição certa para organizar um dia de conversa numa direcção lógica, em que nos são dissecados inclusivamente os vocábulos que formarão o discurso posterior, pelo Sr. Oliveira: “imagem”, “palavra”, “tempo”... 

“O João tinha duas fases,” diz Rita Azevedo Gomes a propósito de João Bénard da Costa[1], “uma muito fechada, numa esquina, com uma esferográfica (sempre com um marcador), a fazer uma letra que ninguém conseguia ler, era uma espécie de coisa secreta. Mas, depois, a alegria com que falava com as pessoas... Não conheço outra pessoa assim. Vinha apresentar um filme e, de repente, era uma explosão de intimidade com as pessoas: punha-nos tão próximos que quase me sentia no colo dele quando falava connosco. E, depois, tinha uma particularidade (que está um bocado presente no filme): era muito familiar, como se estivesse a falar com os netos dele ao lado da lareira ou sentados à mesa. Dizia coisas muito importantes, mas com o mesmo ar de quem fala sobre o que se vai comer ou do passeio que se vai fazer... E tinha essa alegria de pôr as coisas todas no mesmo nível, cruzava tudo. O Manoel, por seu lado, é uma pessoa do Norte. E aqui também é preciso diferenciar entre o português do norte e o do sul. O Manoel tem uma forma de falar muito religiosa, muito de jesuíta. Às vezes com dificuldade na busca das palavras, mas muito acertado e também com muita ironia. E eles entendiam-se de forma extraordinária. Por isso é que gostei tanto de fazer esse filme: porque assisti aos vários encontros deles, e via-os a aparecerem um diante do outro com a mesma estima e admiração (que não é uma coisa fácil de manter). Não eram pessoas que gostavam ou se relacionavam no sentido de irem juntos de férias. Eram pessoas que se admiravam com uma estima profundíssima, mas sempre cada um no seu sítio. Portanto nunca houve aquela intimidade entre iguais. O Manoel era vinte anos mais velho, é um senhor, e o João era uma criança. Então havia uma cerimónia na relação deles que se manteve intacta e sempre naquele tom, ao longo dos vinte anos em que os vi juntos. E eu queria captar a relação entre os dois, como mantêm esse gostar um do outro, essa estima inquebrável até ao fim. E essa era a ideia do filme. E, por outro lado, eu sou vinte anos mais nova que o João. Portanto havia três escalões... E, de repente, olhava para os dois, com aquela alegria de se terem encontrado. Agora que penso nisso, dou-me conta de que era como se eles quisessem dar valor à amizade deles acima de tudo. Tinham que a manter intacta, e assim o fizeram.” 

“Deixe-me aí que eu abro,” atira o Sr. Oliveira com a energia dos seus noventa e cinco anos quando Bénard da Costa tenta abrir um papel que tirou do seu bloco de notas (ali estrategicamente colocado por Azevedo Gomes para que a conversa não fosse apenas sobre os filmes do realizador de Vale Abraão – um risco aparentemente muito real dada a admiração da "criança" pelo "senhor"). A resposta é “deixe-me lá ser desajeitado”. E além das palavras sobre a arquitectura, sobre Leonardo da Vinci e Michelangelo, da equiparação dos impulsos artísticos aos impulsos criminosos (é aqui que o Sr. Oliveira volta a dizer que “fazer um filme é como cometer um crime”), do ateísmo como religião, dos paradoxos ou contradições que englobam a arte e a vida, o sagrado e o mundano, a verdade e a mentira, a máxima humildade e a máxima vaidade, as cores quentes mais frias e as cores frias mais quentes, as amizades distantes e as admirações estreitas, de Fritz Lang, de Aristóteles e Molière, de Henry Miller, de Gertrud, de Tiziano e de Vermeer, de Pablo Picasso, de Wagner e Beethoven, de José Régio e da Agustina Bessa-Luís que ainda esta semana nos deixou, o que fique talvez seja o olhar emocionado de João Bénard da Costa a ouvir as palavras do maior realizador português, olhar certamente ali ao lado do das grandes almas emotivas do nosso cinema e da nossa cultura (António Reis e Fernando Lopes, que segundo se diz vertiam uma ou duas lágrimas quando ouviam certas palavras ou diziam certas frases), registando a relação e ilustrando as frases de Rita Azevedo Gomes sobre estes dois grandes homens da cultura portuguesa. Ou sobre estes dois homens. O pensamento, a filosofia e a arte podem ser coisas essenciais à vida, mas os sentimentos, as emoções e os comportamentos de certas pessoas também se devem tentar fazer eternos. As casmurrices adoráveis de uma, a efusividade apaixonada de outra. "Queria captar a relação entre os dois, como mantêm esse gostar um do outro, essa estima inquebrável até ao fim." Não é coisa pouca, não, é um feito.

Se há um grande plano com quinze pedras da eternidade onde só catorze se vejam, talvez seja essa a décima quinta pedra que o coração vê: lembrar os cantores dos grandes pensadores e dos grandes guerreiros da beleza mundana e terrena desses homens. Do João e do Manoel.

[1] in “Sonidos com los ojos abiertos (o continúe describiendo para que yo vea mejor). Entrevista a Rita Azevedo Gomes” por Álvaro Arroba, Cinema Comparat/ive Cinema, nº3, 2013.

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