quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

164ª sessão: dia 20 de Fevereiro (Quinta-Feira), às 21h30


Esta semana iremos do nascimento e das edificações aos escombros e às ruínas, através de dois filmes separados por quatro anos. O primeiro é uma colecção de imagens de arquivo relacionadas com o Bairro de Alvalade, Imagens do Bairro de Alvalade. O segundo é o famoso Ruínas, que talvez dispense apresentações. É assim a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Na sinopse da curta-metragem pela Cinemateca Portuguesa, lê-se que "tal como o título indica, Imagens do Bairro de Alvalade é uma montagem de imagens documentais desse bairro lisboeta oriundas de filmes pertencentes ao Arquivo da Cinemateca. Tratam-se de excertos notáveis que documentam algumas das características do bairro e da sua génese, registados entre meados das décadas de quarenta e setenta. Encontramos partes de Lisboa de Ontem e de Hoje (Augusto Fraga, 1956), Lisboa de Hoje e de Amanhã (António Lopes Ribeiro, 1948), Nasceu uma Nova Cidade (Ricardo Malheiro, 1948), Quinze Anos de Obras Públicas (1948), Portugal (Alfred Ehrhardt, 1952), Imagens duma Capital – Lisboa (Silva Brandão, 1961) e segmentos extraídos de jornais de actualidades."

Para o Jornal dos Encontros Cinematográficos de 2012, Edmundo Cordeiro escreveu que "Ruínas, de Manuel Mozos, começa com uma demolição. Um plano geral, fixo, sobre dois grandes edifícios aparentemente iguais da Península de Tróia: um deles implode, dando a sua silhueta na paisagem lugar a uma nuvem densa de pó que vai envolver o outro edifício, que se mantém de pé, ao lado do que acabou de implodir. Este filme começa (pré-genérico) com uma imagem forte pelo seu conteúdo. Um edifício de grandes proporções, que levou tempo (muito) a conceber e a construir, que desenhou a paisagem durante muito tempo, desaparece em alguns instantes. É uma imagem a que Kant chamaria sublime, dado que representa o desmesurado, aquilo que a nossa sensibilidade não capta harmoniosamente, dado que o entendi- mento não lhe aplica nenhum conceito, continuando à procura, à procura, sem o encontrar: não há conceito, não conseguimos perceber o choque do permanecer e do desaparecer, o choque destes dois aspectos do tempo. E, porém, sendo sempre poderosa, esta imagem é, mesmo assim, uma imagem banal – banal como imagem e banal como acontecimento do mundo: um mundo de demolição acelerada, demolição que é o correspondente da construção acelerada.

"Mas logo o filme passa dos edifícios na paisagem e da implosão de um deles para um cemitério. As casas não têm cemitério. O Homem sim. O cemitério contém traços de vidas: é onde estão os mortos. Depois de imagens (planos fixos) da romagem e do vaguear das pessoas no cemitério, ou de lápides reflectidas nos vidros de um carro, uma sucessão compassada de planos de uma estatueta de mármore à frente de um jazigo. Aí, ouve-se um texto que é lido, a história de Henriqueta e a história da sua ligação a Etelvina. A história de uma vida infame, ao mesmo tempo extraordinária e horrível. Talvez Henriqueta e Etelvina estejam sepultadas ali, talvez a estatueta de mármore seja a imagem de São Francisco de Assis mandada fazer em Itália da história que ouvimos. E as pequenas histórias, cartas, pedidos, panfletos vão surgindo sempre numa relação com imagens de espaços, interiores e exteriores, os quais contêm em si mesmos um desacerto, uma deslocação qualquer, mas não sendo todos «Ruínas». Contrariamente às imagens iniciais da implosão, estas não são imagens fortes pelo seu conteúdo – mas, no entanto, é logo a partir daqui que o filme manifesta a sua força: ela está na relação entre os textos lidos que ouvimos e as imagens que vemos; ela está não no conteúdo desta matéria audiovisual, mas na sua forma. Os textos colocam-se em várias relações com as imagens, e o trabalho do espectador consiste numa construção constante, que é ela própria sublime, dado que nunca o poderá fazer como tal, inteiramente. São essas relações que importa estudar. Cabe perguntar: que «Ruínas» são estas? São Vidas, talvez, na medida em que as Vidas colocadas no tempo são Ruínas."

Já Mário Jorge Torres, em 2010 para o Público, defendeu que "Manuel Mozos ocupa no panorama do actual cinema português um lugar singular: por um lado, o de construtor de arrojadas ficções que inscrevem um olhar renovador na geografia de uma Lisboa proletária, marginal e povoada por oníricos sinais, entre a (im)perfeita completude dessa obra-prima impura e dialéctica que dá pelo nome de um herói desgarrado, Xavier (1992, mas estendendo-se ao longo de anos de difícil produção, para estrear demasiado tarde, de modo a poder entender-se a sua radical importância), o curioso fracasso de uma obra confusa e algo megalómana como ...Quando Troveja (1999) e o recente descentramento de 4 Copas (2008), a traçar uma visão suburbana, quase irreconhecível, do seu mundo de fantasmas vivos, ao encontro do quotidiano moderno; por outro, o de rigoroso documentarista, oscilando entre o brilho incontroverso da "biografia cultural" (José Cardoso Pires - Diário de Bordo, 1998) e o fascínio pela colagem arquivística, mas infinitamente criativa, de pequenas preciosidades históricas: o magnífico Cinema Português? (1997) ou o inventivo Censura: Alguns Cortes (1999), um dos mais transversos e importantes olhares sobre as intrínsecas contradições do Estado Novo.

"Este intróito revela-se fundamental para falar de Ruínas, na medida em que este filme-ensaio funciona na curta obra de Mozos como súmula de todo o seu universo conceptual. Se não vejamos: o filme assume-se como "biografia" subterrânea de um país condenado pelo abandono da memória, transformada em lixo cultural; faz da "collage" modernista o seu método caótico de investigação sobre um passado contraditório e algo desconexo; inscreve nos intervalos de um documentário aleatório e prospectivo o desejo de ficções miniaturais, tendentes a recompor um retrato de meio-corpo de personagens ausentes e perdidas na voragem do tempo: os habitantes anónimos daquele sanatório gigantesco que agride a paisagem da Serra da Estrela, feito esqueleto de uma doença passada, mas perpetuado pela permanência dos seus sinais físicos na paisagem; os actores fantasmáticos daquele Parque Mayer desertificado no centro de uma Lisboa transformada em lixo urbano e transtornada por um progresso sem sentidos; os turistas "mortos" da ribatejana Estalagem Gado Bravo, de que saltaram letras da insígnia identificativa, numa tétrica "natureza morta" povoada por dejectos e por restos quase fossilizados de caveiras de animais; os frescos modernistas de um restaurante em Monsanto, com panorama sobre a capital do Império perdido, como se ainda convidassem a lautos banquetes de tempos que já lá vão e não voltarão nunca mais; as viagens impossíveis de chegada à estação de Barca de Alva, desactivada e inoperante, no coração do Douro Internacional, com carruagens enferrujadas e marcas de uma impotência atávica em operar uma arqueologia da memória; os vestígios desfeitos de uma mina abandonada que sinaliza o impasse de uma produção obsoleta de riquezas miríficas."

Até amanhã!

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