segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

António Pinho Vargas, notas de um compositor (2002)



por Manuel Mozos

O ponto de partida, ou de como os filmes se vão transformando 

Também não sei até que ponto é que realizadores ou filmes que pelo menos a partir de certa altura começaram a ser considerados obras de arte foram pensados para ser isso mesmo. Talvez fossem somente uma vontade de contar uma história através do cinema sem qualquer outra pretensão para além dessa. Há muitas coisas que podem não partir do realizador, e acabarem por se tornar grandes obras, e falo de encomendas, ou filmes feitos dentro de contratos com produtoras. De repente no meio disso pode aparecer um filme genial porque o realizador trabalhou como trabalharia nos outros filmes, acabando por catapultar o trabalho para a zona, digamos, da obra de arte, deixando o lado de entretenimento. Um filme como o Zidane, por exemplo, para mim é uma coisa que realmente só tem a ver com televisão. Mas acaba por ser um produto muito fora do vulgar. Aquilo é feito um pouco como se fosse um jogo de futebol só que em vez de estar a acompanhar a bola, se está sempre em cima de um determinado jogador, e com isso apercebemo-nos de que grande parte de um jogo é passado a olhar, à espera (mesmo eu, que gosto de futebol, e jogo ainda às vezes, não me tinha apercebido disto). Trata-se de um processo televisivo, embora consiga identificar raízes cinematográficas, como os filmes da Leni Riefensthalt, com a utilização de uma panóplia de câmaras para filmar um determinado objecto. 

E isto traz um outro problema que é o da classificação. Realmente, qual é o espaço daquele filme? Para mim é até muito curioso, porque trabalhando no ANIM, para catalogar o material, tenho que tomar decisões. Onde é que se põem certos objectos que são, como este, mais fora do comum? Julgo que mesmo na área do documentário há uma série de coisas muito diferentes. E por uma facilidade de linguagem há tendência para catalogar as coisas: é o western, um filme de aventuras, um melodrama, um thriller; um certo documentário é cinéma-vérité... mas para mim, o que eu acho mais interessante é ver o contrário dessa classificação, ou seja, conseguir ver que todos os filmes têm um carácter documental. 

Entre a ficção e o documentário: o filme e a sua época 

Por um lado não acredito no cinema como uma coisa da verdade. É sempre uma coisa da encenação. Ao colocar a câmara num certo sítio já estou a delimitar. Não acredito no “cinema-verdade”, não acredito que as coisas acontecem e nós estamos a captar o real. Acho que nunca é bem o real. Mesmo que atirasse uma câmara ao ar, e donde ela caísse filmava, mesmo isso implica uma acção, quer dizer, não é a vida em si. Por outro lado mesmo os filmes que estão no tal campo do entretenimento, para mim documentam a sua época. Mesmo aquilo que está ultra-encenado acaba por transmitir qualquer coisa de uma época e eu acabo por encontrar a arquitectura de uma cidade, ou por ver a maneira como as pessoas se vestem, os costumes, certas tradições, o que é que comem, e portanto, mesmo que aquilo seja tudo encenado, também há um lado que não está a fugir completamente ao real. Mesmo as coisas mais mirabolantes do cinema fantástico estão contaminadas pelo real. Tal como o oposto, ou seja, no documentário, para mim a colocação da câmara num sítio já está a deturpar esse real. E a própria película está a passar por um lado químico, no mínimo, que já vai refractar a realidade (mesmo nós, a nossa visão, ou os sentidos em si não nos possibilitam captar tudo). 

Por enquanto as ficções que fiz são muito centradas em Lisboa, para deixar alguma coisa do tempo em que estou a filmar a própria cidade. E isso é deliberado. Mas nem sequer obedeço à geografia da cidade. Na última ficção que fiz havia um personagem que saia de Alfama, e já estava no Lumiar a apanhar o Metro para ir para Caselas onde não há Metro. Tento transformar a cidade num cenário. E não me interessa obedecer ao seu lado realista nesse aspecto, interessa-me sim que esse pedaço de Alfama, do Lumiar ou de Caselas, um dia seja reconhecido por alguém que possa assim ver como eram as casas desses bairros. Ou seja, em vez de estar sempre a filmar o mesmo bairro, prefiro mostrar coisas diferentes. Do mesmo modo, nos documentários eu assumo que tudo está a ser um bocado encenado, não quero dizer que aquilo é a verdade de qualquer coisa. 

Em termos de documentário, fiz sobretudo biografias, ou coisas em que usei materiais de arquivo. Portanto, não tenho o tipo de relação com as coisas que tem a maioria dos documentaristas portugueses. Coisas como a análise do bairro não sei quê, ou a comunidade tal que vive não sei onde... acho óptimo que se façam esses filmes, mas como eu acho que já há pessoas a trabalhar sobre isso, e que é o que lhes interessa, eu tento explorar outras coisas que a mim me interessam, mesmo que não sejam coisas tão obedientes aos cânones do documentário, mas que fiquem eventualmente como retrato de uma época. 

Nas biografias do José Cardoso Pires ou do Pinho Vargas tratei uma época da vida deles, e não fugi a isso, mas nos outros servi-me muito de material de arquivo, e neste que estou a fazer agora, e que é talvez o mais “livre”, a minha ideia é contaminá-lo com uma série de coisas que lhe trazem um lado mais artificial. Ou seja, vou tentar jogar com efeitos de encadeados e sobreposição de imagens, pôr imagens fotográficas e fílmicas de arquivo e sons, fugindo a esse lado, digamos, mais verdadeiro do documentário que realmente não é a coisa que eu acho mais interessante. 

excerto de «Um Cinema de Verdade», texto inserido no catálogo do Panorama – Mostra do Documentário Português de 2008.

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