quarta-feira, 29 de maio de 2024

Inferno (1980) de Dario Argento



por João Palhares

Vidros partidos, paredes raspadas, desenhos que se formam sob gesso, placas de pavimento arrancadas, argamassa moída, cabos cortados, folhas rasgadas, canos soltos, tectos caídos, salpicos de sangue, maçanetas seccionadas, amontoamentos de gatos, de ratos ou de insectos, são tudo coisas que surgem em filmes de Dario Argento. Uma e outra vez. Essa fragmentação física, associada nas suas estórias a mistérios que as personagens precisam de resolver a todo o custo, e que normalmente até é provocada por elas, seja por acidente ou de propósito, é imediatamente seguida por uma fragmentação formal accionada por Argento e que as castiga cruelmente. Esses planos que duram um instante e que não mostram absolutamente nada, pois é o encadeamento da sequência em que se inserem que lhes dá o sentido, dão prova do seu grande talento e de uma herança que podemos retraçar a Dziga Vertov e aos soviéticos ou ao inevitável Alfred Hitchcock. 
 
Como disse em entrevista a Daniele Costantini e Francesco Dal Bosco para o livro Nuovo cinema inferno, de 1997[1], Dario Argento frequentou o Filmstudio, cineclube fundado em 1967 por Americo Sbardella, Annabella Miscuglio e Paolo Castaldini, e por onde passaram cineastas como Michelangelo Antonioni, Marco Bellocchio, Marco Ferreri, Jean-Luc Godard, Gregory Markopoulos, Pier Paolo Pasolini, Roberto Rossellini, Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Paolo e Vittorio Taviani ou Luchino Visconti. “Era um lugar muito excitante para um entusiasta do cinema,” disse Argento. “Eu via de tudo. Cinema alemão, cinema francês... Cinema russo também, pelo qual era apaixonado. Dziga Vertov, o Kino-Glaz. E Eisenstein, fascinante. Uma das coisas que mais me impressionou, além da mostra de filmes de terror no Metropolitan, além de Hitchcock e Visconti, foi “Kino-Pravda”[2] de Vertov. A história é pura aventura, acção em estado puro. Com meios muito simples consegue comunicar emoções visuais muito profundas.” 
 
Foi activo politicamente, era e é de esquerda, mas percebeu muito cedo, durante a corrente de cinema político ou revolucionário que era praticado em Itália e um pouco por toda a Europa, que as certezas formais e discursivas desses filmes os afastavam por completo das pessoas e da realidade que tentavam captar. É uma cisão parecida com a dos Cahiers du Cinéma com Gillo Pontecorvo e a de Manoel de Oliveira com os filmes engajados politicamente e rodados nas ruas portuguesas durante o Processo Revolucionário em Curso. Um filme até nos pode dizer tudo o que queremos ouvir, defender tudo o que achamos por bem defender, mostrar as coisas de um ponto de vista supostamente isento ou jornalístico, se é que isso é possível, mas dessa posição estamos todos perfeitamente confortáveis, não há espaço nem margem para a descoberta, não há mistério nenhum, e a câmara e a montagem podem tornar-se em relação proporcional de um conservadorismo medonho. Isto dá sempre azo a mal-entendidos, infelizmente, mas foi certamente por estas vias de pensamento que os Cahiers chegaram à realização de que a moral e a estética são uma e a mesma coisa e que “o travelling é uma questão de moral,” ou que Oliveira decidiu que “o cinema revolucionário está atrasado face à revolução.” Ideias semelhantes tinha Argento, que disse na mesma entrevista a Constantini e Dal Bosco que “normalmente o cinema, e o espectáculo em geral, servem de amortecedores, ou se não tendem para a análise, para a especulação intelectual. Eu, pelo contrário, dirigia-me para os becos mais escuros, tentava explorar as zonas ocultas, e expressava uma fúria sempre crescente. Uma fúria instintiva que coincidia, sem qualquer planeamento, com o estado de espírito de uma parte da sociedade que era normalmente negligenciada ou mesmo observada com um olhar político e cultural muito tradicional. Falo do estado de espírito dessa grande massa de jovens que exprimiam todos os dias um forte instinto de revolta, quase selvagem, certamente de origem social mas de certa forma também pré-política.” 
 
Embora seja importante, também por essa fúria instintiva e por essas zonas ocultas de que fala o cineasta italiano, para além do que possa revelar sobre si próprio e os seus fantasmas, não é o mais importante que ele povoe os seus filmes de assassinos e degenerados, que haja sangue e mortes a rodos pelas suas extensões, que as próprias estórias às vezes nem façam grande sentido ou que se assista frequentemente a actos verdadeiramente grotescos. Porque tudo isto é apenas o que potencia o seu lado verdadeiramente imaginativo e poético, que também passa por rechear todas as suas cenas de contrapontos e contrastes fabulosos. Pode-se começar pela banda-sonora de Inferno, que foi composta por Keith Emerson e convive com excertos de Verdi que são estudados pelos musicólogos interpretados por Leigh McCloskey e Eleonora Giorgi. Não é pouco comum ouvir nela grandes repentes sonoros que abalam uma serenidade e uma harmonia aparentes, ou melodias concorrentes que se intersectam ritmicamente até serem engolidas por um paroxismo inevitável. Esta tensão constante permite a Argento, por exemplo, cortar do grande auditório onde as personagens de McCloskey e Giorgi têm a aula de música para Giorgi dentro de um táxi com o cabelo enchumbado de água sem que achemos que é despropositado ou que esteja deslocado. Sem se preocupar demasiado, também, com o que possam ser as construções e progressões dramáticas como as aprendemos a analisar, ele permite-se ainda acrescentar pormenores insólitos como os pregos espetados na porta do táxi que ferem o dedo de Giorgi, a maçaneta que se parte e corta a mão da personagem de Daria Nicolodi, as saliências no pano estendido na parede que se rasga a meio para revelar Nicolodi moribunda, a cena em que o vizinho de Nicolodi, às portas da morte, se agarra a ela em desespero e não a quer deixar escapar, ou a sequência absolutamente demente do livreiro que se afasta sob a lua cheia numa noite de eclipse com um saco cheio de gatos, em que todas as nossas expectativas como espectadores saem frustradas. 
 
E podia-se passar linhas e parágrafos a elogiar mais uma data de coisas, do artesanato das miniaturas e das pinturas em espelhos do grande Mario Bava à iluminação quase opressiva de Argento, que usava mais projectores do que qualquer um dos seus colegas de profissão e assustava até alguns dos seus técnicos e produtores associados, passando pelo grande feito que é a cena subaquática do início do filme, a bela recriação da cidade de Nova Iorque nos estúdios INCIR-De Paolis em Roma ou a atenção do cineasta italiano ao som, que noutra cena insólita vai ao detalhe de acompanhar por tubos um sistema acústico criado para facilitar a comunicação entre apartamentos no prédio amaldiçoado das três Mães. Mas fiquemos com a cena da decapitação da personagem de Eleonora Giorgi, um prodígio de construção e um prodígio de execução. Deambulação da personagem, apresentação de todo o espaço. As janelas partem-se sozinhas, troveja lá fora. Sente-se uma grande instabilidade, tudo é incerto. Ela aproxima-se de uma portada. Não parece estar lá ninguém. Vira as costas e é agarrada pelas sombras, duas mãos tapam-lhe a cara e expõem-lhe o pescoço. Vemos os pregos, em baixo. O vidro a cair aos poucos, em cima. Os olhos dela procuram uma saída, por todas as direcções. O vidro falha o alvo. Surgem braços velhos e quase cadavéricos a puxar de novo o vidro para cima, com as sombras desse movimento no rosto dela no plano seguinte. O vidro está de novo lá em cima e surge agora a mão a segurá-lo no topo. Novo plano do rosto da vítima. Plano aproximado da mão e do vidro, desaparecem os dois para baixo. Sai um jacto de sangue para cima do vidro iluminado a vermelho, diz-se que a cor do inferno.
 
Durante perto de trinta anos, no pico da sua criatividade, Dario Argento praticou um cinema que criava dados e situações novos a cada minuto que passava, refugiando-se no grande bastião do género do terror para levar a cabo essas experiências. Era por isso que não era levado a sério e era considerado um mero sucedâneo de Alfred Hitchcock, mas também era por isso que tinha rédea solta para libertar os seus fantasmas e as suas soluções estéticas. Passados quarenta e quatro anos e superando a barreira dos nossos preconceitos, ainda presos às histórias e aos temas, talvez possamos admitir finalmente que o seu talento e a sua importância não são mera opinião, mas um facto.

[1] «Nuovo cinema inferno. L'opera di Dario Argento», Daniele Costantini, Francesco Dal Bosco e Dario Argento, Pratiche editrice, Parma, 1997.
[2] “Kino-Pravda” é uma série de jornais cinematográficos realizados por Dziga Vertov, com Elizaveta Svilova e Mikhail Kaufman. Teve vinte e três episódios e foi considerado pelo cineasta como o primeiro trabalho em que leva a cabo as suas ideias sobre cinema. Em russo, “kino-pravda” quer dizer “cinema-verdade”.



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