quarta-feira, 22 de maio de 2024

Les yeux sans visage (1960) de Georges Franju



por Alexandra Barros

Deus me proteja de mim 
E da maldade de gente boa 
Da bondade da pessoa ruim” 

excerto da canção Deus me proteja, do cantor/compositor Chico César 

A maldade de gente boa e a bondade da pessoa ruim” poderia ser o título desta folha de sala. Como tantas outras características humanas, a maldade e a bondade estão “in the eye of the beholder"[1]. As pessoas amiúde praticam acções que contradizem as respectivas intenções: os piores feitos praticados em nome do amor (a uma entidade divina, a uma causa, a uma pessoa); as acções pretensamente virtuosas praticadas com inconfessados propósitos egocêntricos. 

As ambiguidades e complexidades do bem e do mal permeiam este filme em que um cirurgião famoso, Dr Génessier, “rouba” rostos a jovens mulheres por amor à filha, Christiane, a quem deseja restituir (a qualquer custo) o rosto, desfeito num acidente de automóvel. Ou será que a obsessão se deve principalmente à sua vaidade profissional e interesse científico, como acusa a própria filha? Afinal ela é tratada como uma cobaia, uma prisioneira como os muitos cães e pombas, à disposição do pai para as suas experiências médicas. 

As tentativas do Dr Génessier, para refazer o rosto de Christiane, falham sucessivamente. Louise, a devotada assistente, tem uma fé cega no doutor e é ela quem se encarrega de trazer “rostos” para a mesa de operações e de ocultar “os efeitos colaterais”. Exasperada com o preço em vidas humanas que terá que ser pago pela eventual, mas muito improvável recuperação do seu outrora belo rosto, Christiane decide pôr fim aos actos desumanos do pai, mesmo que recorrendo ela própria a actos desumanos. 

Nesta altura do filme o “terror” torna-se mais “convencional”, mais visual e explícito, com imagens de grande violência. Durante a maior parte do filme - com excepção da operação de transplante de rosto - a nossa perturbação, assombro, repulsa ou pavor são respostas induzidas ora por sons, ora ambientes ora ainda reacções de personagens a imagens que não nos são dadas a ver. Talvez porque, supostamente, o produtor Jules Borkon impôs ao realizador as seguintes condições: o filme não poderia mostrar demasiado sangue (por causa dos censores franceses), nem tortura animal (por causa dos censores ingleses), nem personagens de cientistas loucos (por causa dos censores alemães). 

Ao mais gráfico horror segue-se a mais fantasiosa e lírica cena do filme. Christiane, após libertar os cães e as pombas destinadas às experiências do pai, adentra-se na escuridão nocturna de uma floresta, rodeada pelas pombas que esvoaçam em seu redor, numa cena que parece saída de um filme da Disney. Não faltam aliás possíveis diálogos com a história da Branca de Neve. Branca de Neve refugia-se na floresta para evitar ser assassinada por um caçador a mando da sua madrasta. Christiane refugia-se na floresta depois de assassinar Louise (a “caçadora” de rostos) e ser responsável pela morte (?) do pai. A sentença de morte de Branca de Neve é desencadeada por um espelho que, ao considerá-la a mais bela mulher existente, provoca a ira da madrasta. O pai de Christiane mandou inutilizar os espelhos da sua mansão-prisão para evitar que Christiane perceba quão horrível está o seu rosto. Na floresta, Branca de Neve faz amizade com os animais que aí habitam, vindo estes a tornar-se seus ajudantes, protectores e confidentes. Christiane visita os animais enjaulados pelo pai, oferecendo- lhes companhia, afecto e, por fim, a mais preciosa dádiva: a liberdade. 

Não admira pois que este filme que cruza terror, fantasia (uma pintura que “ganha vida”, ...), imaginário gótico (ambientes misteriosos e sombrios, florestas, neblinas, uma mansão labiríntica, cemitérios e sepulturas, espelhos, máscaras, duplos, gaiolas e jaulas, ...), questões psicológicas (identidade, ...) e filosóficas (os meios justificam os fins?, o bem e o mal, ...) e evoca uma fábula disneyesca, seja actualmente considerado uma obra- prima, tendo a sua reputação vindo a crescer ao longo do tempo.

[1] “In the eye of the beholder” é uma expressão inglesa que significa que a percepção ou avaliação de algo é subjectiva e varia de acordo com a pessoa que está a observar/avaliar.



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