quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Cinema Todo-Mundo: colonialismo e a memória do futuro



por Jessica Sérgio Ferreiro

O Todo-Mundo, termo cunhado por Édouard Glissant, ensaísta e poeta da Martinica, representa o conjunto de comunidades idiossincráticas que na relação se constituem como um todo (Mundo relacional), são coletividades não-sistémicas, fluidas, dinâmicas e compósitas, como ilhas de um mesmo arquipélago, nunca subsidiárias ou submissas a um centro ou a uma referência-mestre, a um Universal. 

É assim que Glissant sonha o Mundo não-colonial, sem assimetrias, assim pode ser o cinema: um reflexo do Todo-Mundo, um vislumbre, um grito em manifesto ou um poema sobre mundos caóticos e produtivos. 

O cinema coloca-nos em relação com experiências múltiplas e polissémicas, imperfeitamente traduzíveis. Através de olhares não-convencionais, o objeto cinematográfico transporta-nos para realidades complexas e inefáveis, para passados inacessíveis, cujos modos e marcas habitam o presente, mas que, também, contém nele o poder de informar o futuro. 

Começa-se este ciclo com três filmes de Sarah Maldoror, cineasta pioneira, que nos traz as palavras sábias do poeta e escritor da Negritude Aimé Césaire, un homme une terre (1976), a par com as de Édouard Glissant, em Regards de mémoire (2003), introduzindo, desde modo, a problemática do colonialismo e das suas repercussões. Em Sambizanga (1973), através de uma poética da imagem, caminhamos com a personagem Maria na busca pela verdade, ao passo que desperta a consciência política de um povo que procurará libertar-se das amarras violentas da colonização. 

Depois de navegarmos pelo movimento emancipatório em Angola, atracamos no Acto dos Feitos da Guiné (1979), do realizador Fernando Matos Silva que, com seu olhar crítico sobre a História (ou das “narrativas” sobre esta), coloca os seus heróis a apresentar os feitos dos portugueses. Com partida nos Descobrimentos e chegada na antiga Guiné do século XX, confronta a palavra e o discurso ébrio com imagens reais que denunciam as consequências do jugo colonial na antiga Guiné portuguesa. Em contraponto, na sessão seguinte, o mestre Sana Na N'Hada, na sua mais recente longa de ficção, intitulada Nome (2023), oferece-nos uma visão, a partir de dentro, da Guiné-Bissau de outrora e da sua realidade contemporânea, misturando a alegoria com imagens de arquivo, captadas por ele, aquando das lutas de libertação colonial. 

Na mesma linha de pensamento, apresenta-se Kuxa Kanema (2003) de Margarida Cardoso que, através do documentário, retrata, também, o fim da utopia, do sonho revolucionário que se encontrava espelhado no projeto de cinema ambulante, implementado pelo então governo de Moçambique, após a independência, e que pretendia restituir, ao seu povo, imagens de si próprio. Por sua vez, a curta- metragem KARINGANA os mortos não contam estórias (2020), do realizador moçambicano Inadelso Cossa, representa o cinema como pós-memória e como documento histórico incompleto, meio pelo qual a personagem principal procura entender a história do seu país e forjar a sua identidade, fora da linha de tempo a que pertence e da qual não é possível retirar-se. 

Ainda por terras moçambicanas, a antropóloga Catarina Alves Costa traz-nos o sujeito colonial para a cena com Margot (2022). A realizadora viaja até Moçambique para devolver, décadas depois, as imagens que a musicóloga e etnógrafa Margot Dias registou do povo Maconde para a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, levando-nos a problematizar posicionamentos ético-políticos que definiram as crises da antropologia na época colonial e pós-colonial, a par com as ambivalências intrínsecas ao ser(-se) humano. 

Por sua vez, sob os preceitos de uma “antropologia partilhada” (anti-colonial), na docuficção Moi, un noir (1957) de Jean Rouch, é o protagonista do filme que narra as imagens captadas de si mesmo, contando a sua estória imaginada, mesclada com o seu quotidiano na Costa do Marfim. Na mesma sessão, Les Maîtres fous (1955), do mesmo realizador, expõe os rituais praticados pelos Haouka, oriundos da Nigéria e imigrados no Acra (Gana), e que, alcançando um estado de transe, encarnam e imitam, subversivamente, figuras de poder arquetípicas do colonialismo. Figuras, as quais, parecem habitar o imaginário coletivo dos Haouka que, através do escárnio grosseiro, expurgam e expulsam, através do corpo e da performance, a violência multissecular do mundo-caos[1] que lhes coube. 

O realizador Ousmane Sembène, considerado pai do cinema africano, nos seus vários filmes, esmiúça a sociedade moderna e estratificada do Senegal em relação ao neocolonialismo estrutural que molda caoticamente o dia a dia dos seus cidadãos, tal como em Mandabi (1968), revelando que o colonialismo tem muitas formas e não termina com as efemérides que dividem o tempo histórico entre o antes e o após

Por último, atravessamos o oceano e a Abrir Monte (2023), curta de Maria Rojas Arías, deparamo-nos com a história da primeira guerrilha colombiana que se tentou libertar da opressão do Estado conservador e da brutalidade policial, cuja violência espectral sombreia os planos de imagem narrados em voz-off. Seguimos rumo a uma cidade assombrada do Brasil, na floresta Amazónica, cuja montagem fílmica e edição sonora, de Susana Sousa Dias, nos faz experienciar Fordlandia Malaise (2019), cujo empreendimento massivo e devastador, epítome do capitaloceno, foi finalmente vencido pela própria Natureza. Por fim, ainda na selva Amazónica, entre o Peru e o Equador, cuja fronteira é desenhada pelas Águas do Pastaza (2022), Inês T. Alves revela-nos o dia a dia das crianças de uma aldeia que vive em simbiose com a natureza indomável, aparentemente inóspita, da selva. 

Assim, o cinema revela-se como meio por excelência do pensamento arquipelágico (Édouard Glissant), ou seja, do conhecimento partilhado, diverso e construído em conjunto, sempre que é visionado e debatido em contextos e tempos particulares. As experiências e perspectivas múltiplas, transplantadas na imagem em movimento, permitem compreender e refletir criticamente sobre passados coloniais e presentes ainda opressivos. Através da materialização de uma percepção sobre o real, é possível espelhar heterotopias várias (Foucault) que derivam de diferentes realidades e desenham outras possibilidades. Quiçá contribuirão, também, para quebrar, um dia ou gradualmente, os sistemas atávicos que persistem em estruturar a vida conjunta. O cinema, enquanto documento histórico, extravasa a tradução de eventos passados e suas circunstâncias, reflecte, também, para além do que sucedeu, o que (ainda) não adveio, o invisível. Como Marc Ferro já defendia, as intenções e investidas, as crenças e os sonhos, o imaginário, são igualmente férteis, fazem e são História. 

Filmar é um ato de memorar que produz efeito a posteriori, aquando da sua partilha. Na sua concepção é visualizado a priori, é imaginado, antecipando-se o seu todo, o seu resultado e a sua recepção ou “leitura” por terceiros. Em suma, o objecto cinematográfico é pensado para o devir, permite rememorar o passado, pensar sobre presente(s) e imaginar futuro(s). Como forma de expressão artística e ferramenta política, produz sentido e cumpre-se na comunhão, quando possibilita fazer corpo social (Stiegler). 

A arte é a partilha do sensível (Rancière), é um acto inerentemente político e poético, voltado para o colectivo, para o público. Como descrito por José Gil, em O Tempo Indomado (2020), o objeto artístico facilita a produção de um bom caos que, convocando os sentidos e a reflexão, “vai querer fazer mais do que exprimir, vai querer ser expressivo como um ente vivo, vai encarnar o mundo que exprime, existir como coisa-expressão interagindo com as coisas e seres reais da vida”, sendo, por fim, uma forma profícua de “domar” o próprio tempo. 

Assim se espera com este ciclo de cinema do Todo-Mundo para todos. 

Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita, é uma civilização decadente. 
Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais, é uma civilização enferma. 
Uma civilização que trapaceia com os seus princípios, é uma civilização moribunda. 
A verdade é que a civilização dita «europeia», a civilização «ocidental», tal como a modelaram dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois problemas maiores a que a sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial; que, essa Europa acusada no tribunal da «razão» como no tribunal da «consciência», se vê impotente para se justificar; e se refugia, cada vez mais, numa hipocrisia tanto mais odiosa quanto menos susceptível de ludibriar. 
Aimé Césaire 
Discurso sobre o colonialismo (1978 [1955]). 

[1] Conceito de Édouard Glissant para se referir ao encontro e choque entre culturas (aqui entende-se cultura no seu sentido lato, incluindo sistemas, economia, ciência, lazer, artes, etc.), bem como às interinfluências e impactos inelutáveis que daí advêm, corresponde ao real, ao contemporâneo e aos processos em que se dão essas transformações graduais e dinâmicas (os quais são afetados pelas assimetrias de poder e desigualdades). Difere do conceito de Tout-Monde (concepção utópica do Mundo em que, também, várias culturas estão em contacto ou em relação, pela qual se fazem trocas e aprendizagens em conjunto, corresponde a um conjunto de mundos “crioulos”, mas em que cada grupo detém o direito à sua opacidade (a não ser objeto de exploração e de análise com base em paradigmas científicos universalistas convencionais), não existem culturas hegemónicas, é anti-universal).

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