quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

3 Godfathers (1948) de John Ford



por Estela Cosme

Dezembro é sinónimo de abundância de narrativas tradicionais, inseparáveis da época natalícia, com elementos cristãos bem familiares: o nascimento de um menino, três homens guiados por uma estrela no céu, e claro, John Wayne. À primeira vista, "Um Natal com John Ford", o título deste ciclo de dezembro, poderá soar estranho, um paradoxo à espera de explicação. Afinal, como é que o derradeiro realizador do western pode conter na sua obra um filme que se encaixa na época natalícia, e que recria uma das passagens bíblicas mais emblemáticas? Na verdade, John Ford fê-lo de forma fascinante, e fê-lo mais que uma vez. 

"Os 3 Padrinhos" foi um romance de Peter B. Kyne, publicado em 1913, sobre um trio de ladrões de bancos que se tornam padrinhos de um recém-nascido após encontrar a sua mãe moribunda na sua fuga pelo deserto. A estória foi inicialmente publicada na revista The Saturday Evening Post no ano anterior, e foi adaptada para o grande ecrã já em 1916, num filme mudo com o título em inglês The Three Godfathers. John Ford realizou a sua primeira versão em 1919, sob o título Marked Men, um filme de 50 minutos que atualmente se considera perdido. No entanto, o romance ficou com Ford ao longo da sua vida, e veio a adaptá-lo novamente em 1948, com o título 3 Godfathers (o "the" desaparece do título, possivelmente para se distinguir das adaptações prévias). 

Há um indivíduo que liga todas estas adaptações, Harry Carey, ator que foi uma das grandes estrelas de westerns na época do cinema mudo, e posteriormente apareceu em dramas como Mr. Smith Goes to Washington (para o qual esteve nomeado ao Óscar). Carey participou no filme de 1916 e também na primeira adaptação de Ford, com quem colaborou frequentemente, e por isso Ford dedicou o épico de 1948 à sua memória, com a dedicação "Bright Star of the early western sky..." ("Estrela Brilhante do céu matinal do oeste [=western]"). O filme começa então sob a sombra de um gigante (o cavalo na cena da dedicação era o seu favorito), o que se torna mais evidente quando sabemos que o filho de Carey, Harry Carey Jr., interpreta um dos papéis principais, sucedendo ao pai no mundo dos westerns (tornando-se então na estrela brilhante do céu do oeste seguinte). 

John Ford acredita em milagres, e frequentemente é pelas mãos de John Wayne que os faz acontecer. Em Os 3 Padrinhos, encontramos um conto de redenção e sacrifício, retratando os personagens dos Três Reis Magos numa dimensão aprofundada e raramente vista. Seria de esperar que o trio de Wayne, Carey Jr. e Pedro Armendáriz fossem três ladrões de bancos perfeitamente competentes, mas as nossas expectativas caem em falso quando tudo corre mal e os ladrões são forçados a fugir para o deserto castigador, feridos e sem o dinheiro roubado. Ainda pior, perdem os seus cavalos enquanto continuam a ser perseguidos pelo xerife. Tag Gallagher, no seu livro sobre Ford escreve que neste filme “os homens maus são ingénuos e respeitosos, e inaptos. Um leva um tiro, eles bebem a água toda, perdem os cavalos, têm de consultar livros para orientação, e vacilam no suicídio. E a civilização fornece um comboio através do qual a milícia os flanqueia.” 

Contudo, quando achamos que a lei está bem perto de apanhar Robert, William e Pedro, surge um teste de moralidade, de intervenção praticamente divina. Encontram uma mãe numa carroça que nos momentos antes da morte os nomeia padrinhos do seu filho recém-nascido, e pelo qual eles têm agora que atravessar o deserto para tentar salvá-lo. Batizado com os nomes dos seus padrinhos, Robert William Pedro Hightower irá testar o caráter dos ladrões, que já não temem pelas suas vidas, mas sim pela do afilhado. 

Equipados com pouco mais que leite, um manto e versos da bíblia, o trio zela pelo bem-estar da criança apesar das condições adversas. Quando se torna impossível resistir a elas, o espírito de sacrifício prevalece, e com a ajuda certa no momento certo (o deserto castiga mas também salva), o menino chega são e salvo a New Jerusalem e o milagre natalício concretiza-se. A lei apanha John Wayne exausto e de rastos, mas virtuoso e vitorioso. 

Torna-se difícil distinguir qual é o verdadeiro fio condutor do filme, se é o mito cristão ou o mito americano. Afinal, John Wayne transforma-se em herói redimido porque é um cowboy com consciência ou porque Deus colocou no seu caminho uma oportunidade de altruísmo? Na verdade, são ambos os mitos que jogam um com o outro para criar um conto de bravura inesperada, onde uma criança é salva graças à intervenção divina, mas também graças ao heroísmo de figuras emblemáticas do Faroeste, forjadas a ferro e fogo pela terra do indomável espírito americano. Ford proporciona-nos então uma magnífica saga em que o western e o espírito natalício se unem, onde o salvamento milagroso de um menino não só salva as almas de três ladrões fugitivos, mas também restabelece a crença a uma povoação no meio do deserto com sede de justiça. E para os habitantes do Arizona, só falta mesmo que o pequeno Robert William Pedro transforme em vinho a pouca água do deserto.



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