por António Cruz Mendes
Andrew Sarris, em The John Ford Movie Mistery, diz-nos que “há realizadores que descobrem
o mundo, há outros que o inventam. Ford, como a maior parte dos grandes cineastas de
Hollywood, pertence à segunda categoria. Àquela onde o cinema é o sonho e não o
documento”. Não duvidaremos da verdade desta sentença se recordamos os muitos westerns
realizados por Ford, pedras basilares da visão mítica da “conquista do oeste” construída pelo cinema
americano durante a primeira metade do século XX, mas a sua justeza torna-se particularmente
evidente quando vemos A Taberna do Irlandês.
Em 1963, quando o realizou, John Ford tinha já 70 anos e 140 filmes no seu currículo.
Entretanto, o estilo de vida e os gostos do público americano foram-se modificando e isso refletia-se
na produção cinematográfica. A era clássica dos westerns, das narrativas épicas protagonizadas por
heróis impolutos que encarnavam a vitória da civilização sobre a barbárie, estava a chegar ao fim. O
movimento pelos direitos civis, liderado por Martin Luther King e, mais tarde, a guerra do Vietname,
traduziram-se na realização de filmes que ofereciam uma visão diferente, talvez mais realista,
seguramente mais crítica, da história americana e diz-se que John Ford se enquadrava mal nesse
ambiente. A realização de A Taberna do Irlandês teria sido uma forma de fugir, física e
emocionalmente, de um lugar onde já não se sentia bem.
Apesar da recepção crítica não lhe ter sido favorável, o filme foi um êxito de bilheteira. Tratase,
de facto, de uma divertida comédia e nela, diz-nos João Bénard da Costa, “o velho mestre já não
se dá ao trabalho de enraizar o seu sonho, ou de o justificar. Limita-se a pintá-lo, e a pintar-se
através dele, com a amizade, com a felicidade”.
Na imaginária ilha da Polinésia onde decorre a história, todas as personagens são felizes e
têm bom coração. Por vezes, fala-se da pobreza dos seus habitantes, mas ela só se entrevê no estado
do telhado da igreja. Aliás, a participação dos nativos reduz-se às cenas coreografadas das suas
reuniões festivas e é essencialmente decorativa. As homéricas cenas de pancadaria com que
Donovan e Gilhooley comemoram os seus aniversários assemelham-se mais aos populares combates
de wrestling do que a verdadeiras agressões físicas. Delas, os lutadores saem praticamente ilesos e a
única coisa que sofre verdadeiros danos é o mobiliário da taverna. O próprio Marquês de Lage, que
representa na ilha o governo francês e que começa por se queixar por ter sido nela desterrado, com
o seu permanente sorriso e a sua ingénua e transparente “malvadez”, acaba por se tornar numa
personagem simpática. Amelia, quando aí aporta, ostenta uma figura esfíngica que contrasta com a
vida simples e despreocupada dos ilhéus, mas o seu mergulho no momento do desembarque
anuncia-nos desde esse primeiro instante que essa couraça não é sólida e que rapidamente se vai
desfazer.
As magníficas paisagens, a alegria das gentes, a simpatia das crianças, o altruísmo do pai, a
relação que, passados os primeiros desentendimentos, se vai estabelecendo entre ela e Donovan, são
os elos de uma história de aprendizagem donde Amelia sai transfigurada.
O Happy End é inevitável e a festa de Natal anuncia já a próxima reunião da família
Dehdam. O quadro da princesa Manulani, exibido em lugar de destaque na casa do pai, o seu nome
na lápide que homenageia os heróis da guerra contra o Japão, a homenagem prestada pelos nativos
a Sally, sua herdeira, e, por fim, uma confidência do Marquês, são as peças de um puzzle que,
reunidas, põem fim a todos os quid pro quo. E o próprio Donovan era, afinal, um par de Amelia, pois
também ele era dono de uma pequena companhia de navegação. No último momento, a previsível
união dos dois acaba por se cumprir.
Enfim, quem terá saído vencedor nessa “guerra de sexos” que, durante grande parte do filme,
se travou entre Donovan e Amelia? Será que, no fim, a “ilha” venceu “Boston” ou foi “Boston” quem
domesticou a “ilha”? Não é evidente o resultado dessa contenda. Amelia era uma executiva ciosa da
sua autoridade e independência e até tinha vencido Donovan numa corrida de natação. Mas, agora,
afirma Donovan, será ele quem, no casal, “vestirá as calças”. E a relação entre os dois começa com
uma amigável e paternal sova. Por outro lado, o ambiente da casa do Dr. Dehdam não deixa de ser
bastante “bostoniano” e Donovan decidiu passar a taverna ao seu amigo Gilhooley… Nessa disputa,
os dois pratos da balança terão acabado por ficar mais ou menos equilibrados.
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