O último filme que compõe o ciclo “Palestina Livre: O Cinema como Resistência” traz-nos um dos mais recentes registos da invasão, ocupação e anulação de um sem-número de vidas palestinianas. Estreado em 2024, realizado por um conjunto de ativistas pró-Palestina – entre eles, dois israelitas, Yuval Abraham e Rachel Szor –, No Other Land reclama o direito à imagem e à sua divulgação, no seio de um conflito armado.
De caráter brutalmente documental, inunda-nos, desde logo, de sinais de perigo: Basel Adra chega-nos com luzes e mensagens em pano de fundo, a tensão do acontecimento porvir está sempre presente e o jornalismo é, aqui, inseparável do ativismo, já que a tentativa de ocultação e humilhação impele a uma cada vez maior luta do jornalista pela verdade. Porque este é um jornalismo de mão, e o telemóvel, mediador por excelência, deixa de ser um objeto banal, onde o consumo de notícias é privilegiado, e passa a ter um papel fulcral na produção e documentação do real.
A problemática central de No Other Land é o registo imagético, a forma como a imagem não trabalhada, o retrato visceral, são ocultados, fortemente censurados, e como o combate dos filhos do ativismo contra a falsa autoridade faz uso da câmara para a denúncia e divulgação de práticas desumanas. Sendo este um conflito que atravessa anos e décadas, temos acesso a alguns dos registos feitos pelos pais de Basel – também eles ativistas –realçando o caráter geracional da luta travada através da tecnologia, da consciencialização, da atitude pública.
Uma luta de comunidade, que une pessoas – e vemos a centralidade do ato da manifestação conjunta – cuja dinâmica de entreajuda consegue (na maioria das vezes) ultrapassar as dissidências culturais e políticas: a certa altura, Yuval, israelita e co-realizador do filme, é confrontado com os atos cometidos por parte do seu país, sendo a conversa rapidamente interrompida pela necessidade de trabalhar na reconstrução de algumas casas – um momento que nos revela como o espaço para o diálogo, para o debate e formulação de problemas e soluções é posto em causa, e muitas vezes travado, por necessidades básicas, tal como o é um lugar onde viver.
A união dentro desta população é incontornável, fruto da brutalidade injusta que sofrem juntos, vendo nós na violência filmada, mais do que a homenagem ao próximo, ao amigo resistente, a insurreição contra o apagamento destes atos destrutivos. Tratando-se de um combate corpo a corpo, a câmara adquire uma materialidade confrontacional – como arma, denuncia e questiona práticas abusivas mas, à semelhança do que acontece com quem a segura, é também vítima da força impiedosa – palavra contra palavra, imagem contra imagem, o panorama abre-se e torna-se esta uma história de poder.
Assistimos ao desabar de Masafer Yatta sob a proteção de leis enviesadas, em nome da substituição fria e cruel da vida pelo armamento – em causa, o conjunto de declarações que afirmam que esta é uma terra israelita, exclusiva para treino militar, tendo como consequência a expropriação e expulsão de palestinianos aí residentes. Escolas e habitações destruídas, poços tapados, vários mortos e feridos às mãos do governo israelita personificado nos militares e, principalmente, em Ilan, essa figura cínica e impenetrável, conhecida da população que tantas vezes tentou o apelo à paz, à humanidade.
A contínua missão pela visibilidade mediática é dolorosa, incoerente e, por vezes, paralisadora, mas exige de quem é por ela responsável uma ação paciente e reivindicadora. Apesar de tudo, é o desespero que tende a vencer – observamo-lo na mãe de Harun Abu Aram (alvejado e deixado incapacitado pelos colonos, tendo posteriormente falecido), ao ver jornalistas entrar e sair da gruta feita sua casa, ambicionando partilhar a história do seu filho, no entanto sem que nada mude. Quando a família assiste ao que diz a televisão sobre a sua própria situação, temos o expoente da impotência, uma meta-reflexão que, dirigindo-se a nós, perpassa questões tal como a imunidade mediática, a insensibilidade a que somos sujeitos face às assoberbantes notícias que consumimos todos os dias, e de que maneira esta nossa condição paradoxalmente ausente e passiva tem repercussões irremediáveis para as pessoas que vivem em estado permanente de perigo e angústia.
A dimensão política externa aqui representada assenta na fé na comunidade internacional, na esperança de que os retratos íntimos do que se passa na Palestina cheguem até nós, estimulem uma reação naqueles que podem lutar por quem mais precisa. Revela-se, inclusive, a influência exercida por nomes poderosos e estruturais, com a menção à visita de Tony Blair, ex-primeiro ministro britânico (note-se o papel deste país no conflito), cuja presença impediu a demolição de uma escola, anos depois destruída – asseverando a simultânea fragilidade destas ações políticas às quais, na verdade, apenas subjazem interesses e manobras camuflados por valores humanos e democráticos.
Ainda que uma obra aclamada – galardoada com vários prémios internacionais de cinema, inclusive o Óscar de Melhor Documentário –, não se revelou um escudo contra as forças hostis; pelo contrário, não só foi Basel Adra alvo de várias rusgas a sua casa –atos repetidamente perpetrados durante os quatro anos de gravação do documentário, e após o lançamento do mesmo –, como também um dos elementos da equipa do filme, Awdah Hathaleen, foi morto, provando a perpetuidade deste ciclo de violência, desrespeito e perseguição, ao mesmo tempo que uma massiva incapacidade de travá-lo. No Other Land mostra-nos, acima de tudo, de que modo o cinema deixa de ser o espaço que nos envolve, e fabulando territórios nos quais acreditamos, transformando-se, ao invés, no intermediário do real – atentando-nos para ele – que, de tão afastado e manipulado, passa por imaginário.

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