quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

The Merry Widow (1934) de Ernst Lubitsch



por João Palhares

Ernst Lubitsch nasceu em Berlim, em 1892. O pai, Simon Lubitsch, tinha uma bem sucedida alfaiataria e Ernst chegou mesmo a trabalhar no seu negócio, como contabilista, até o actor Victor Arnold o convencer a ingressar na companhia teatral de Max Reinhardt, em 1911 - benditas sejam as más-companhias. Em 1913, estreia-se como actor de cinema, interpretando muitas vezes, curiosamente, aprendizes de alfaiate. No início da primeira guerra mundial, já com nome firmado e uma imagem perfeitamente reconhecível, aventura-se na realização, servindo também como actor principal dos seus filmes até Meyer aus Berlin, comédia de enganos já com muito do que depois se havia de ver mais trabalhado e cristalino, no outro lado do Atlântico. Mas também em A Princesa das Ostras (e talvez mais do que em Meyer) se podem ver as portas, as correrias, as danças e o humor que fizeram (e ainda fazem) as delícias das plateias mundiais. Afinal, foi por ter provado que é um artista universal que Lubitsch deu o salto para a América, em 1922, quando foi contratado a pedido de Mary Pickford, depois de vários sucessos dos seus filmes na América e duma viagem feita um ano antes para promover o filme A Mulher do Faraó, interpretado por Emil Jannings. Daí em diante, Lubitsch cimentou a sua reputação na América como realizador das comédias mais sofisticadas de Hollywood (Hollywood essa que, no fim de contas, ajudou a inventar), sendo admirado por vários realizadores americanos, de John Ford a Howard Hawks, passando por Frank Capra, Orson Welles e o inevitável Billy Wilder. 

A Viúva Alegre, do mesmo ano de Cleópatra, que vimos a semana passada, estreia na altura em que aterra em força o Código Hays, como tão bem nos lembrou Sérgio Alpendre, também a semana passada. O Código que por mais de vinte anos disse a produtores e realizadores o que podiam ou não fazer e o que deviam ou não fazer, levou a que os filmes de Lubitsch imediatamente anteriores a Merry Widow, Trouble in Paradise e Design for Living (de 1932 e 1933, respectivamente), não recebessem a aprovação da administração Hays para serem re-lançados nos cinemas depois de 1934. A missão que anima estes anos, então, passa a ser usar a imaginação para escrever nas entrelinhas. E ninguém melhor que Lubitsch escreveu torto por linhas direitas e por isso Howard Hawks e Billy Wilder tanto gostavam dele. O seu lugar lendário na história do cinema foi conquistado, em parte, por fazer do seu muito falado e discutido 'Lubitsch touch' um sistema de defesa contra o decoro e a mediocridade. “Contra os brutos, mostrar a nossa elegância”, como disse Pedro Costa uma vez a propósito da dança de Charles Chaplin com o mundo, no Grande Ditador. Eis então como se fez dum mal, um bem. O que é que se passa atrás das portas fechadas dos filmes de Lubitsch? O que é que vê Popoff (grande Edward Everett Horton) quando dita o telegrama ao seu rei, no Viúva Alegre? O que é que acontece no quarto do Maxim's entre a saída da viúva de MacDonald e o ressacado despertar do capitão de Chevalier, que estava rodeado de beldades da última vez que o tínhamos visto? O que não se mostra pode ter o mesmo efeito (ou efeito maior) do que o que se mostra, como quando o mesmo Popoff diz ao rei que não se atreveria a dizer o que pensa dele e o rei lhe tira a medalha do casaco, percebendo tudo. “Para bom entendedor, meia palavra basta”, não é assim? O que é que se passa por baixo da mesa onde jantam Madame Sonia e o Capitão Danilo? Como é que o rei descobre que a rainha está a ter um caso com o capitão da guarda? Porque é que aquele diálogo entre rei e rainha, aparentemente tão banal e inofensivo, diz tudo sobre a relação do casal? Mas nem só disto se faz o cinema de Lubitsch, que a imaginação voa sempre livre, fugindo às prisões das nomenclaturas. Porque é que há perguntas que dizem mais que mil afirmações, como no interrogatório no tribunal do fim do filme ou como as perguntas nervosas que a rainha Dolores faz ao Rei Achmet? Que dizer das implicações novas que o realizador dá às palavras do par MacDonald-Chevalier só através das expressões de Everett Horton, que não sabe que os dois se conhecem, para grande efeito cómico? Que dizer da cena à varanda, em que um grupo de músicos canta e toca a expressão verdadeira dos sentimentos da Madame Sonia no momento? Ou da pausa de Popoff que, quando está a ouvir o telegrama do rei, sai, e pede a um dos criados que deite fora a garrafa de veneno, como precaução. As coisas que se dizem neste filme dizem muito mais do que parecem dizer. 

The Merry Widow é a terceira adaptação da opereta de Franz Léhar, depois da de Michael Curtiz e da de Von Stroheim. Foi produzida por aquele a quem F. Scott Fitzgerald chamou o Last Tycoon, figura autoritária, enigmática e talvez injusta para muitos, mas que nos deu vários filmes de Stroheim, King Vidor e Tod Browning, por exemplo: Irving Thalberg. Para Lubitsch, tinha antes produzido The Student Prince in Old Heidelberg, em '27. Também vários dos actores do filme tinham já trabalhado com o realizador (Maurice Chevalier, Jeanette MacDonald, Edward Everett Horton e George Barbier), bem como os argumentistas (Ernest Vajda e Samson Raphaelson), responsáveis pelos guiões de vários dos sucessos de Lubitsch. O par Chevalier-MacDonald também já tinha contracenado por três vezes antes deste filme, duas das quais com Lubitsch (The Love Parade e One Hour with You são os filmes de Lubitsch, Love Me Tonight foi realizado por Rouben Mamoulian). E é sempre em atmosferas de cooperação regular que nascem as grandes obras, repetindo e recuando, investindo e praticando. 

Ainda que nos possamos perguntar como teria sido a carreira de Ernst Lubitsch se não tivesse morrido em 1947, aos 55 anos, sem conseguir terminar That Lady in Ermine, o que fez nos anos 30 e 40 em Hollywood é magnífico e bem valioso: da energia dos musicais do início do sonoro às doridas e misteriosas comédias do fim da carreira, forças ambivalentes que Merry Widow talvez conjugue, se pensarmos nessa cena pesada em que é a câmara que nos mostra que a viúva descobriu tudo, enquadrando a janela divisória a ser fechada, com um silêncio ensurdecedor; ou na serenata dos músicos à viúva de Marsóvia, logo no início do filme, enquanto ela sonha melancolicamente na varanda, com os olhos postos nos céus; levando-nos à expressão óbvia dessas ambivalências, representada na união do despreocupado e aéreo Danilo com a enlutada e triste Sonia, no final do filme. Eles, que tanto aprendem um com o outro, aprendem acima de tudo a responder que 'sim' a “can two people who hate each other, love each other?”, como aprenderam também James Stewart e Margaret Sullavan no final de The Shop Around the Corner ou como a doce e inocente Cluny Brown (desse Cluny Brown maravilhoso) aprende que prefere “feed squirrels to the nuts” ou como Gary Cooper e Claudette Colbert, em Bluebeard's Eight Wife, aprendem que para se casarem têm que se divorciar, e como os heróis de Lubitsch aprendem a ser felizes, fazendo sempre frente a um mundo adverso e injusto (que apesar de, de vez em quando, levar nomes como 'Marsóvia' ou 'Silvánia', é também o nosso), com ou sem 'touch' e “Popoff or no Popoff”.

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