quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Monsieur Verdoux (1947) de Charles Chaplin



por João Palhares

Felizes os que alcançam um absoluto indiscutível, no mal ou no bem, no céu ou no inferno. O purgatório é que é terrível, como a esperança. 

Teixeira de Pascoaes, in O Penitente 

Monsieur Verdoux foi o filme de Chaplin que mais custou a engolir na América. Como se não bastassem as suas ideias políticas - pensaria o público da altura -, ou o que dele se dizia e escrevia (muito maldosa e superficialmente) na rua e em jornais e revistas, tinha agora que matar a personagem que durante 26 anos (de 1914 a The Great Dictator) tantas e tantas plateias encantara: Charlot. Só que, como se compreendeu mais tarde e já no outro lado do Atlântico, havia muito mais a aproximar a personagem deste filme a Charlot do que à primeira vista parecia. 

Jacques Lourcelles, no seu Dicionário do Cinema, diz que “Verdoux conserva pelo menos duas características de Charlot, uma exangue e inútil, a outra monstruosamente ampliada. Como Charlot, Verdoux é um ser sensível, dotado de compaixão, mostrando ocasionalmente um grande coração como o dele. Possui também o sentido de adaptação social e a ferocidade de Charlot, tão característicos das primeiras curtas-metragens.” O problema não era portanto a compreensão de Verdoux mas a incompreensão de Charlot, desse lado anárquico que sempre lá esteve, lutando e reagindo às opressões mais violentas, sempre contra a autoridade, confundido talvez por brincadeira inofensiva, sonhos infrutíferos e nunca realizáveis da classe operária e da populaça. “A brincar, a brincar...”, não é como se diz? Só que a brincadeira foi-se vendo cada vez menos em Chaplin, os gags foram gradualmente reduzidos ao essencial (decisão estética comum a todos os grandes cómicos, de Chaplin a Jerry Lewis, passando por Jacques Tati), como se pode ver neste filme, trabalhados para sugerirem o máximo com o menos possível (Chaplin teve que fintar imenso a censura, em Monsieur Verdoux), e quando o drama desponta vem com uma urgência feroz, jovem, enraivecida, e parece tomar conta de tudo, não podendo uma pessoa ignorá-lo ou esquecê-lo. Veja-se esse jantar com a rapariga infortunada e que Verdoux quer, ao princípio, envenenar. Quantos estados de alma se atravessam nessa cena? Ou o final caleidoscópico musicado a cordas e sopros trágicos da esplêndida partitura de Chaplin, compositor de filmes. A cela em sombras e uma pequena luz redentora, seguida de uma panorâmica para enquadrar a perdição do homem que ousou desafiar a sociedade ao levar os seus ensinamentos à letra. Essa luta de que nunca se pode sair vencedor quando se está vivo, tenha-se ou não se tenha razão, só muito depois em espírito e com razão. Mas a razão ditam-na os tempos. 

Charles Chaplin era, afinal de contas, um homem moderno. Talvez não valha a pena repeti-lo, uma vez que já se sabe que o cinema nunca foi clássico, como disse Tag Gallagher no início do ano passado à revista Cinética. Elaborou, dizendo que “a era moderna do cinema começou em 1895. Essa é a modernidade... arte moderna! A acepção mais comum de arte moderna é a da arte que surge antes da primeira guerra mundial... isso é o cinema. É o período moderno do cinema.” Pensando em Allan Dwan, Buster Keaton, Charles Chaplin e mesmo nesse comboio pioneiro que rasga a paisagem na diagonal e que tanta gente assustou em Paris (o acto moderno por excelência), torna-se difícil desmenti-lo. Em 1915, pouco depois de Chaplin ter começado a carreira no cinema (como actor, em Making a Living, estreado a 2 de Fevereiro de 1914), já Bartleby, Crime e Castigo e A Metamorfose, três dos grandes pilares da literatura moderna (como os seus autores, Melville, Dostoiévski e Franz Kafka, são grandes vultos daquilo que se escolheu apelidar de “modernidade”), já tinham sido editados. “Ich fühle luft von anderem planeten” (“Sinto o ar doutro planeta”), não é o que se cantava no quarto movimento do segundo quarteto de cordas de Arnold Schönberg, composto em 1908? Certo, pouco se ouvia Schönberg (ouve-se mais, agora?), pouco se lia Melville e Kafka, mas Chaplin foi um homem do seu tempo - século dos grandes avanços artísticos e científicos -, privava com as grandes mentes da altura (Einstein, Picasso...) e entre as séries a que se arrancaram as hierarquias tonais, as aventuras frustrantes que se fizeram pelo átomo, as muito sérias revoluções nas artes ou os “I would prefer not to” do escrivão de Melville, algum desse ar há-de ter sentido e respirado. Em Verdoux, mais do que no Grande Ditador, respira-se desse ar e trabalham-se os sentimentos num caldo em ebulição que no final dos anos 50 resultará em explosões e choques comparáveis ao moderno comboio dos Lumière. Podia-se agora lembrar o leit-motif das rodas dos comboios que levam Henri Verdoux de vítima a vítima e cujos ataques dos arcos às cordas dos violinos na banda-sonora fariam a Segunda Escola de Viena orgulhosa, de certeza absoluta. (Em The Countess from Hong-Kong Chaplin recorre também várias vezes a imagens ondulantes da grande embarcação onde se passa o filme a balouçar-se no mar.) Depois de Limelight, essa grande evolução confundida com grande regressão, já nada podia ser o mesmo e tudo se convergia e justificava, porque como escreveu Teixeira de Pascoaes no seu Napoleão, “o futuro está no passado e a esperança é mais velha que a lembrança”. E porque não regressar ao passado para através dele vislumbrar o futuro? 

Monsieur Verdoux também provou ser profético, porque muito como Verdoux, também Chaplin depois de Limelight sofreu grandes perseguições políticas, obrigando-o mesmo ao exílio. Mas se a condenação do Verdoux personagem é compreensível e inevitável (o público e os críticos, apesar de tudo, concentraram-se demais nos actos de Verdoux e menos no que esses actos revelavam da sua sociedade e do seu mundo), a de Chaplin já não é. Manoel de Oliveira, grande admirador de Chaplin, disse uma vez que “os portugueses não gostam de se ver ao espelho.” Porque é que os americanos haviam de gostar? Assim, quando expostos aos seus monstros e aos seus fantasmas, fingiram não perceber e reagiram com violência. Ninguém pode estar certo tanto tempo e Chaplin foi castigado. Não se sai incólume de mostrar as ambiguidades turbulentas do ser humano, como o souberam também Louis-Ferdinand Céline, Michael Cimino ou Camilo Castelo Branco, entre bastantes outros. Pouco antes da estreia de Verdoux, Chaplin disse que “se a guerra é o prolongamento lógico da diplomacia, então o homicídio é o prolongamento lógico dos negócios.” A crise de 29 varreu milhões de empregos e vidas à sua frente, trouxe a fome, o desespero e quem não sucumbiu logo ao turbilhão, fez o que pôde para lhe sobreviver e contar a história. E entrou no purgatório nebuloso que animava as suas acções monstruosas, sempre pensando na beleza dos anjos e do céu e dos filhos e das mulheres. É só por eles e pensando neles que se pode perdoar Henri Verdoux e, re-entrando no terreno das terríveis ambiguidades, perguntar, “quem sabe lá, em dadas circunstâncias, até que ponto o móbil dum crime é virtuoso e representante do mais tremendo sacrifício?” (O Penitente, de Teixeira de Pascoaes) Pois é, Charles Chaplin afinal não é só para crianças.

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