quarta-feira, 11 de maio de 2016

East of Eden (1955) de Elia Kazan



por José Oliveira

East Of Eden pela pena de John Stenbeick é uma saga cósmica que ecoa das profundezas do tempo e se desenrola na realidade em causa. Combina os escritos bíblicos com os pioneiros americanos e dá voz a todos os viventes e a toda a manifestação livre da natureza e das coisas. Expõe as lutas particulares e tacteia nos segredos universais. Plenitude coral que atinge o sagrado numa respiração total. East Of Eden por Elia Kazan é uma condensação que prova que o instante ou a reverberação podem conter toda a abrangência e toda a memória. É o ponto decisivo da obra de Kazan pois o lirismo e o realismo são uma e a mesma coisa em corpos indomáveis, percorrendo as flores dos campos e os rostos desejosos. Como Rembrandt, o documento nunca é mera captação indistinta mas vive com o dramatismo rodeante. Como nos grandes românticos, de Goethe a Emiliano Zapata, a loucura só é loucura pela clareza que cega, tal como o escuro suga. 

Kazan arranca quando o romance de Stenbeick já caminha para o final, mas tanto se pode dizer que o filme existe num ápice decisivo como se perceber que todas as gerações, dilúvios e apocalipses elididos aparecem inteiros nas marcas concretas dos protagonistas e na sua tormenta comum; tanto se percebe isso pelo que se diz e se confessa, como pela central personagem de Abra (Julie Harris) que anuncia o calvário e a aceitação de Cal (James Dean). Kazan começa com Cal a leste do Paraíso, consumindo-se este pela falta de amor do pai para consigo e com a prova do seu carácter e da sua falha através da Mãe, rodando a narrativa num vórtice entre os ciúmes ao irmão e o espelhamento nas mulheres, lados negros e radiantes que encaminham para o definhamento de um dos opostos em direcção a uma possibilidade de pacificação derradeira. Ecos a baterem em ecos, projecções a estilhaçarem-se derrapantes, continuações e negações desfasadas – falemos no grande escritor americano ou no grande cineasta, é o medo que orienta a deriva, ficando qualquer análise cerebral ridicularizada. 

«At a time when the prevailing American voice was bland and glib, this poetic realist, this angry romantic, always spoke fervently to our most basic conflicts between races and religions, classes and generations, men and women.» foi o discurso de Martin Scorsese na entrega do oscar honorario a Kazan, decorria o ano de 1999. E jamais tudo foi tão bem definido e ligado ao seu óbvio continuador: um poeta realista, um romântico zangado, aparentes paradoxos que só assim perfazem os trilhos presentes da eternidade. Scorsese tudo apreendeu e nada no seu grande cinema é fogo-de- vista, sim confrontação entre real e compreensão, abalando-se os travellings, as panorâmicas e a sutura, precisamente, na sua impossibilidade inaugural. 

Poeta realista e romântico zangado, cinema e o que o possibilita em constante ajuste. Assim, apenas quatro pontos sobre a justeza da posta em cena da imemorial batalha: 

a) O Cinemascope: na primeira vez que Dean aparece no mesmo plano com o seu Pai e com o negociador Will, entre outros olhares envergonhados, fica-se imediatamente a saber da tensão e da incontável distância uterina, tema do filme e tema da humanidade, a busca do amor e a tragédia subsequente. Kazan não usa o formato largo para humilhar a televisão nem para o grande espectáculo se fazer fim em si, mas para na união e na pressão revelar o lamento. 

b) O desequilíbrio: quando o Pai faz o filho ler a bíblia, momento supremo e terrorífico onde a palavra de Deus e a moral terrena chocam com a prática e a compreensão, ficando a superação numa via-sacra longínqua que será a luz a resgatar. 

c) Como Adão e Eva num Paraíso florido e proibido: quando Abra e Cal se decidem a olhar acatando o medo, descobrem a alma. Nesse palco, onde as crostas das peles vão para lá do nítido e o idealismo partilha esse primeiro plano, fogo telúrico traçado a alta esquadria, as correspondências e o encontro constantemente pressagiado explode revolucionariamente. Compressão e libertação num fôlego. 

d) Morte e ressurreição: tanto na cena da árvore onde cada um se mata e purifica, como no leito de morte que insufla vida. Nas raízes da terra ou no calor do sangue, só da morte surge a vida e só vendo a treva se encontra a luz; com a ordem inserida nesse segredo perpétuo. 

À imagem da feira popular e da roda onde a paixão se consuma, subidas e descidas, paragens e acelerações, brilhos e abismos. O mundo, o teatro, o actors studio e a ontologia, com o cinema fixando e resvalando, de tudo nos foi deixado, de nada kazan abriu mão. East of Eden é o mais barroco dos filmes, e o mais límpido, olhando com o medo.

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