quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Ulzana's Raid (1972) de Robert Aldrich



por João Palhares

Sabia-se pelo menos desde Fort Apache (1948), filme extraordinário do John Ford de Stagecoach (que vimos em Janeiro deste ano), entrevisto nessas brumas míticas que faziam os apaches de Cochise desaparecer do campo de batalha, que os Índios tinham muito mais que se dissesse do que o que se fazia passar na maior parte dos filmes, que alguns eram guerreiros orgulhosos, cruéis e estrategas geniais, que sabiam quais eram as fraquezas dos colonos que os expulsaram e enfiaram em reservas governamentais - não por serem mais fortes e corajosos mas sim por serem em muito maior número - e que eram um povo ligado pelo sangue à natureza e às suas tradições, capaz de as defender até à morte. No seguimento deste novo interesse pelos Índios (particularmente pelos Apaches) e até Ulzana's Raid, o que se via em Ford através das brumas foi-se dissipando em filmes como Apache Drums (1951) de Hugo Fregonese, Escape from Fort Bravo (1953) de John Sturges ou Garden of Evil (1954) de Henry Hathaway, obcecados com processos e estratégias militares Índias e em que o respeito e o medo dos colonos e dos soldados americanos para com eles se iam confundindo e entrelaçando numa rede complexa de relações que, com o passar dos anos, só se intensificou, tentando ir no caminho da compreensão. 

Em The Last Wagon (1956) de Delmer Daves, a personagem de Richard Widmark ('Comanche' Todd), que cresceu entre Índios, avisava os sobreviventes de um ataque dos Apaches que não podiam enterrar os seus mortos porque senão os nativos ficavam a saber que havia sobreviventes e atacavam. Também em Ulzana's Raid os valores cristãos e a boa consciência são aproveitados e explorados pelo pequeno exército de bravos de Ulzana num jogo de recuos e investidas fabuloso na extensão do Oeste. Dizem que o verdadeiro Ulzana percorreu 1.800 quilómetros quando escapou da reserva em que o puseram. Mas Alan Sharp, argumentista deste filme e também de Night Moves (1974) de Arthur Penn, falando de inspirações reais para o guião disse que “além de ser a minha homenagem sincera a Ford... uma tentativa de exprimir alegoricamente a malevolência do mundo e o terror que os mortais sentem diante dela. Todos temos as nossas próprias noções do que constitui o medo derradeiro, de fobias pessoais a períodos na história... As três paisagens históricas que me fazem estremecer mais ao pensar nelas são o Terceiro Reich, a Turquia durante a Primeira Grande Guerra e o Sudoeste Americano durante os anos 1860-86... Em Ulzana's Raid não pretendo apresentar uma análise fundamentada da relação entre os aborígenes e o colonizador. Os acontecimentos descritos no filme são exactos no sentido de terem equivalentes factuais, mas a consideração final foi apresentar uma alegoria em cujas características aumentadas pudéssemos distinguir os contornos do nosso próprio drama, caricaturado, mas não falseado... O Ulzana de Ulzana's Raid não é o Apache Chiricahua da história, cuja incursão foi mais demorada e impiedosa e ousada do que aquela sobre a qual eu escrevi. Ele é a expressão da minha ideia do Apache como o espírito da terra, a manifestação da sua hostilidade e aspereza.” 

Estranho nenhum a esta expressão do Apache como “espírito da terra”, Robert Aldrich tinha filmado Apache (1954) nos anos 50, também com Burt Lancaster, de que Ulzana's Raid será a transposição ou reinvenção mais próxima da verdade histórica. Nesse filme, era Lancaster o Índio revoltado que deixava a reserva igual a tantas reservas injustas e precárias espalhadas pela América fora, cada vez mais pequenas e atulhadas, e que empurravam o Índio para o pé de batalha. Questionado sobre as diferenças entre os dois filmes, Aldrich respondeu que “em Apache não havia nenhum homem branco para falar da força e da integridade do Índio. Havia apenas uma afirmação por Índios e sobre Índios que se auto-justificava. Em Ulzana, esperava que por ter Lancaster a falar pelos Índios se tivesse um ponto de vista experiente e educado sobre a cultura deles e o que isso significava. Funcionou, mas não para o público. Sentavam-se e sabiam do que é que ele estava a falar mas não se relacionaram emocionalmente com isso. Não sabem se ele é o herói ou o vilão. Têm pena de o ver morrer mas não percebem mesmo se ele representa o bem ou o mal.” 

Como os filmes citados de Fregonese, Sturges e Hathaway, Ulzana's Raid também se debruça sobre tácticas, movimentações e emboscadas, descrevendo-as com o vigor e a frieza necessárias. Apache Drums mostrava o cerco de Apaches Mescaleros a uma cidade, obrigando os habitantes a refugiarem-se numa igreja fria durante grande parte do filme, o que permitiu ao realizador argentino e a Val Lewton, o produtor (responsável, nos anos 40, por uma revolução dentro dos filmes de terror através das suas produções para a RKO, realizadas por Jacques Tourneur, Robert Wise e Mark Robson), levar a cabo belas experiências com a luz e com a tensão (os Índios são invisíveis, estamos sempre em interiores e do lado dos colonos mas sem nunca deixar de perceber o que se passa lá fora, num efeito e numa tensão que não são nada fáceis de produzir); Escape from Fort Bravo dá-nos a ver um trajecto bem parecido com o do filme de Aldrich, que envolve um grupo de soldados da União e da Confederação, em plena Guerra Civil, presos numa ravina e rodeados de invasores que os atacam de forma lenta e calculada, ilustrada pela realização segura de Sturges, que no ano seguinte faria um filme extraordinário, Bad Day at Black Rock, e depois não fez mais nada que se comparasse; Garden of Evil talvez se sirva dos Índios, que são muito secundários, para falar de outros medos e de outras forças, como muitos dos filmes atormentados dos anos 50, mas Hathaway não resiste a filmar os ataques e as investidas com a força e energia necessárias, como tantas vezes na sua carreira. 

Como The Last Wagon e outros filmes de Daves, ou o belo Run of the Arrow (1957) de Samuel Fuller, Ulzana's Raid subverte as regras do western clássico ao desfazer por duas vezes, por exemplo, o mito do milagre e da beleza do som do clarim da cavalaria em terras inóspitas como som da salvação de último minuto (como se vê, por exemplo, e com belos efeitos, em tantos filmes de Cecil B. DeMille), que acabam por levar à morte um fazendeiro e por deixar Ulzana escapar. Ou os actos cristãos que separam regimentos e facilitam os ataques de Ulzana (“divide et impera” já vem do Latim). É algures por aqui que Ulzana's Raid se insere, belo western de movimentos e desvios estratégicos onde se enfrenta uma força que é tão antiga como a Terra e a simboliza. Não se pode odiar o deserto por não ter água, diz-se a dada altura no filme. Bastavam estes pensamentos difíceis e justos para colocar Ulzana's Raid na grande tradição deste género maior, mas como Sam Peckinpah, que quando fez Pat Garrett & Billy the Kid confessou não conseguir descartar por completo o mito, quando tinha um argumento de Rudy Wirlitzer documentado e pesquisado o suficiente para destruir por inteiro a imagem de Billy, Aldrich também se perde em momentos líricos como aqueles em que Ulzana e McIntosh dão o último suspiro, perdendo-se também nas brumas de Ford e em certos mistérios que, por tudo o que se faça, hão-de continuar mistérios. 

Ainda bem.

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