domingo, 5 de fevereiro de 2017

46ª sessão: dia 7 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Paul Newman é um dos destaques da programação de Fevereiro. Já tinha estado no nosso Cineclube em filmes de Robert Rossen ou de Otto Preminger, e a personagem que veremos em The Color of Money, Fast Eddie Felson, o Hustler envelhecido e mais esperto do filme de 1961 é uma das suas criações mais complexas. Mas importa sempre recordar a sua breve mas fascinante carreira de realizador. Em seis obras, um olhar ultra sensível, puro e delicado, atento e fascinado, sempre a tentar ver e construir como numa primeira vez. 

Portanto eis a nossa próxima sessão, Harry & Son, de 1984, um conto de pai e filho, ou de Pais e Filhos, pela América interior e dura, de uma emoção e candura indescritível. Um pudor... uma distância... e a violência e ternura indissociáveis. Vamos então todos descobrir ou redescobrir o Paul Newman, Cineasta, que alguém algum dia disse que num mundo justo seria tão importante como John Cassavetes.

Matheus Kerniski, colaborador da Foco - Revista de Cinema, da espanhola Revista Lumière, da revista Filmologia e da Hatari! Revista de Cinema, apresentar-nos-á o filme em vídeo.

Newman falou sobre o seu primeiro filme, Rachel, Rachel, à Playboy, dizendo que "destaca o heroísmo não espectacular do tipo de pessoa em quem nem se repara se se passa por ela na rua.… pessoas pequenas que não projectam sombra nem deixam pegadas. Talvez consiga encorajar as pessoas que o vêem a dar aqueles pequenos passos na vida que podem levar a algo maior.… A ideia do filme é que se tem que dar esses passos, independentemente das consequências." Talvez se possa dizer o mesmo de Harry & Son e de todos os seus outros filmes.

Miguel Marías falou sobre Newman em The Intimate Gaze. Disse ele: "Escreveu-se muito sobre os olhos azuis do falecido Paul Newman. Mas é estranho que o seu modo de olhar para as pessoas e para as coisas através da câmara tenha despertado tão pouco interesse durante a sua vida. Newman realizou seis longas oficialmente de 1968 a 1987 (suspeito que também tenha tido uma mão em Winning de James Goldstone e WUSA de Stuart Rosenberg), o que implica que permaneceu inactivo atrás da câmara nos últimos 21 anos da sua vida. Não tenho maneira de saber—alguém o entrevistou sobre esta vertente do seu trabalho?—se Newman se sentia frustrado, se alguma vez teve algum projecto que não conseguisse financiar ou se se sentia simplesmente desiludido com a falta de atenção absoluta (para não falar de reconhecimento) que o seu trabalho como realizador conheceu. Tenho a impressão que em vez disso os seus esforços foram tratados como caprichos de estrela, sendo todos os seus filmes demasiado modestos e calmos—quase como os de Jacques Tourneur—para se arriscarem a ser acusados de megalómanos ou mesmo ambiciosos.

"Discretos, austeros, episódicos, hesitantes, lentos: Estas foram algumas das descrições (bastante condenatórias) que os seus filmes tiveram de críticos. Na melhor das hipóteses, eram chamados de delicados, sensíveis, ou sensatos, virtudes antigas mas antiquadas para o final dos anos 60 e ainda mais depois. O estilo dele foi considerado "comedido" (abençoado seja), indistinto visualmente, liso, tentativo, hesitante, ou padrão—particularmente quando fez The Shadow Box para a televisão em 1980. Os filmes dele foram todos adaptações de romances ou peças, tirando o original (co-escrito e co-produzido com R.L. Buck) Harry & Son (1984), supostamente o seu filme mais “pessoal” (e certamente não o seu melhor, ainda que muito bom). Que tenha substituído Richard A. Colla, como estrela e como produtor de Sometimes a Great Notion (aka Never Give an Inch, 1971) não ajudou à reputação desse filme bem interessante, já em risco porque lidava com uma família provinciana, o que não eram nem politicamente correcto nem baril. Além de se parecer um pouco como uma actualização de Ken Kesey de Spencer’s Mountain de Delmer Daves (1963), que se insere, afinal, na grande mas não muito popular tradição de How Green Was My Valley de John Ford (1941), este foi o único dos filmes de Newman como realizador sem a sua mulher de longa data, Joanne Woodward, no elenco. Estes dois foram também os únicos filmes que Newman realizou e também interpretou.

"Evitando sentimentalismos, histrionismos, e tours de force dramáticos, os filmes de Newman foram sempre calmos e serenos, independentemente de quão terríveis ou tristes fossem os acontecimentos que retratavam ou insinuavam. A maior parte das suas personagens não eram nem felizes nem ricos, mas nunca choramingavam ou davam palestras ao público. Newman olhava para elas de forma aberta e com compreensão, às vezes com uma compaixão escondida; os actores eram dirigidos com a mais precisa das flexibilidades. Mesmo estreantes ou actores mais velhos normalmente difíceis ou exagerados foram magníficos sob a sua orientação (Christopher Plummer em The Shadow Box teve o seu melhor papel desde Wind Across the Everglades de Nicholas Ray e esqueceu os seus maneirismos todos—a não ser "dentro da personagem"). Pareciam não interpretar, mas simplesmente existir à frente da câmara, que era sempre colocada à distância certa, acompanhando os seus sentimentos mais íntimos enquanto eram transmitidos ou revelados involuntariamente pelos seus olhos, movimentos, silêncios, pausas, ou gestos, nunca acentuados ou sublinhados por um corte ou um movimento de câmara."

Bruno Andrade também escreveu sobre Newman e sobre Harry & Son, notando que "não devemos tomar o cinema de Newman por algum tipo de espécime tardio do velho profissionalismo fabril. Se Newman é de facto um profissional, isso apenas o distancia mais daquilo que a sua profissão exige por volta de 1983, ano em que realiza aquele que talvez seja o mais belo registo de uma performance sua, O Confronto. Que uma interpretação dessas venha a conhecer a luz do dia - como também é o caso com as de Christopher Plummer e todo o elenco de Shadow Box, Lee Remick e Richard Jaeckel em Os Indomáveis, Joanne Woodward em Raquel, Raquel e A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas - só mostra a que ponto Newman cineasta se tinha afastado das expectativas do público, portanto da indústria e do mercado, nos anos 80. 

"Falar de O Confronto é acabar enternecido por um sentimento de fragilidade, fragilidade eminentemente física por ser sensível à beleza do mundo, incapaz, portanto, de não se sensibilizar diante dos perigos e das catástrofes que rondam essa beleza. A tragédia de uma vida que sofre com a violência que num momento anterior foi a sua própria força é completamente encarnada pela interpretação de Newman, em todo o absurdo e obstinação desse personagem que é nada mais que uma força nos seus últimos momentos, uma força que morre, uma força em morte - como já vimos antes em The Shadow Box e Os Indomáveis, como mais tarde veremos em Algemas de Cristal. Na história de um pai que continua a adiar o momento da sua morte para poder ver o filho encaminhado, longe de um destino que se assemelhe ao que teve, vemos a expressão mais nítida de todas essas narrativas nas quais ao excesso de uma brutalidade perspicaz se opõe e uma fusão da ternura à inteligência (sentimentos que se combinam e se renovam prodigiosamente em todas as cenas do filme). A beleza discreta, sobriamente desconcertante do cinema de Newman nasce precisamente desse paradoxo: vemos um gesto de intensa brutalidade a completar-se num gesto de brutalidade afectuosa. E a riqueza, a variedade não acabam excluídas desse registo tão modesto centrado em diferentes polaridades de uma mesmo acção: da comicidade - a cena com a caixa de papelão em O Confronto, a irreverência generalizada que persevera mesmo diante das tragédias que acometem os personagens de Os Indomáveis e The Shadow Box - ao drama - a renúncia intermitente do momento que se vive e uma única forma sempre violenta, brusca e truncada de se voltar ao presente insatisfatório, do qual tanto Rachel como a pequena Matilda em A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas desejam escapar - chegando finalmente ao trágico - o momento em que dos olhos de Harry escapa uma lágrima, consciência aguda de que com o filho encaminhado pode agora deixar que a morte lhe venha."

Até Terça-Feira!

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