domingo, 9 de abril de 2017

55ª sessão: dia 11 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Charles Burnett não é só o cineasta do mítico Killer of Sheep. Já antes desse meteoro que parece chegado de outro planeta realizou curtas-metragens essenciais e ainda hoje continua, livremente, a inventar formas e a tornar poesia tudo o que capta. É um dos grandes artistas americanos, não só da cena independente ou racial mas tout court

To Sleep with Anger, a nossa próxima sessão, tem na personagem de Danny Glover todo o cinema americano, coisas antigas e o apocalipse. Mas tem também uma criança e o seu trompete, como num princípio do mundo. Mas pode-se dizer de tudo que este filme de 1990 continuará um mistério fundo, temerário e fascinante. 

Apresente-se Burnett com as palavras do cineasta inglês Alex Cox em Moviedrome, programa da BBC2 em que resgatava filmes de culto e falava um bocado sobre eles antes de os mostrar ao público inglês: "Hoje no Moviedrome, a estreia de um filme do melhor dos realizadores negros americanos, e um dos melhores realizadores do próprio cinema moderno americano. O filme é To Sleep with Anger e o realizador é Charles Burnett. É bem possível que não tenham ouvido falar deste filme e ainda mais provável, a não ser que sejam franceses ou devotos dos Cahiers du Cinéma, que não tenham ouvido falar muito sobre Burnett, embora ele tenha sido convidado do London Film Festival há vários anos.

"To Sleep with Anger é a terceira longa-metragem de Burnett, feita em 1989 e com um lançamento limitado nos Estados Unidos no ano seguinte. Como os seus outros filmes, My Brother's Wedding, The Killer of Sheep, passa-se numa casa de uma família negra em South Central Los Angeles. Pode surpreender os espectadores do Reino Unido com a sua representação de como é a vida em L.A. Certamente que não é a L.A. imaginária de Alan Rudolph e Robert Altman, isenta de negros, isenta de mexicanos e totalmente isenta de poluição. Mas está igualmente muito longe das batidas de gangues e dos hospícios fixados em mulheres de Colors ou Boyz n the Hood. O que é - e isto é típico de Burnett - é um filme sobre gente mais ou menos simples na sua vida normal. E o que ainda é mais incrível (e isto é a especialidade de Burnett) é que não é aborrecido - o que para um filme sobre gente comum normalmente é um sine qua non.

"Os pais são agricultores do Mississipi, imigrantes de primeira geração para L.A., os filhos lutam para serem buppies ("black upwardly mobile urban professionals") e trabalham para companhias de empréstimos e bancos. Os netos só correm à volta deles criando o caos. Para dentro deste ambiente tenso mas ainda funcional vem o mau hóspede, Harry, excelentemente interpretado por Danny Glover, citando Pushkin e pondo uma estranha influência a funcionar pela casa.

"To Sleep with Anger foi tratado como a primeira longa-metragem importante de Burnett. Embora o orçamento ainda fosse mínimo para os padrões de Hollywood (1.4 milhões de dólares), nada menos que sete produtores brancos conseguiram colar os seus nomes a ele, um facto que produz divertimento muitas vezes enquanto rolam os créditos de abertura. A sequência dos créditos é sensacional, já agora: uma ilustração visual muito inteligente da combinação central do filme entre a brandura e a raiva mal contida. A excelente fotografia a cores é de Walt Lloyd. Este é um dos melhores filmes que vamos mostrar no Moviedrome, esta temporada. Como em todos os filmes de Charles Burnett, L.A. é a capital mundial da inércia, as mulheres são escravizadas pela domesticidade e por crianças desenfreadas, os homens estão sempre a tentar, sem resultados, reparar coisas que inevitavelmente se tornam piores. Soa familiar? Estão a ver, não é só sobre L.A. Estejam atentos às belas interpretações de Glover, de Richard Brooks, Paul Butler e Mary Alice. E às aparições de Vonetta McGee, vista pela última vez no Moviedrome em The Big Silence, e Sy Richardson, o Lite de Repo Man e argumentista do western negro de Mario van Peebles, Posse."

Já Charles Burnett disse a Nelson Kim que "Hollywood tem esta psicologia—há toda esta mentalidade de plantação em que é tudo sobre o poder e alguém nos tentar impor os seus valores. É de doidos, eles dizem-nos como é que se contam histórias sobre pessoas com quem nunca entraram realmente em contacto. Executivos, revisores de argumento, executivos de produção só interagem com pessoas do tipo deles portanto como é que iam saber o que é aceitável para as pessoas de côr? Não é nem nunca foi para fornecer um olhar diferente para com a vida. É tudo vindo e pensado para um público branco. E devido a esse facto, este grupo de pessoas que determina o que o mundo vê não tem uma ideia, nem uma pista do que é a realidade. É produto da arrogância e do poder. A nossa opinião é vista como um ataque pessoal. Se se tenta ir além dos estereótipos e reflectir pessoas verdadeiras que partilham as mesmas preocupações com toda a gente, dizem-nos que as nossas personagens não são “pretas” que chegue, ou para usar mais palavrões porque a linguagem não é “real” que chegue. Tem que se ter drogas e gangsters. Uma pessoa que viu To Sleep With Anger disse, “Não sabia que os negros tinham máquinas de lavar!” Onde é que eles foram buscar essa noção? Bom, de certa maneira foi uma observação honesta porque Hollywood mostra-nos pobres e sujos sem quaisquer meios de subsistência excepto se formos rappers ou prostitutas ou vendermos drogas. Têm esta noção do que os filmes devem ser, e de quais são as realidades do nosso meio, e se chegarmos com o que é verdadeiro, isso para eles torna-se irreal, de certo modo. É importante contar a nossa própria história, e quando vemos outras pessoas a contar a nossa história, e [quando] alguém nos nega a nossa realidade, e nos diz como é a nossa família e a nossa avó—quão ultrajante se pode tornar? Temos que ser capazes de contar as nossas histórias e partilhá-las com o resto do mundo. De que outra forma é suposto as coisas mudarem?"

Até Terça!

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