quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

The Great Dictator (1940) de Charles Chaplin



por Sergei M. Eisenstein

O DITADOR 
Um filme de Charlie Chaplin 


1. BORBOLETA NEGRA

Na sua ironia, o destino fez com que a borboleta negra de um bigode idêntico se fixasse no lábio superior de dois homens completamente diferentes. Um deles é uma invenção, uma máscara. O outro é mesmo de carne e osso. O primeiro é um dos homens mais populares no globo. O segundo é categoricamente o mais odiado. 

 "Ele roubou o meu bigode!" protestou Charlie alegremente em jornais, acusando Hitler de plágio. "Fui eu que o inventei!" 

Hitler não parecia mais que um comediante, um bobo, e a acusação de Chaplin de que ele lhe tinha roubado a maquilhagem fez Hitler parecer-se com um palhaço. 

Mas à medida que os anos passavam tornou-se claro que Hitler era algo mais do que um comediante, bobo e palhaço; provou ser um louco homicida. 

E Chaplin fez o seu Ditador


2. O FILME É SOBRE O QUÊ? 

Um ditador fascista tem um duplo: um pequeno barbeiro do gueto. Chaplin interpreta-os aos dois. 

... O sinal da Cruz-Dupla ensombra a Tomânia escravizada. O ruído de botas pesadas a marchar ressoa pelas suas ruas, noite e dia. À noite, os rostos brutais das patrulhas espreitam por cada esquina. 

As palavras ouvidas mais vezes são: "destacamentos de patrulhas,'' "campos de concentração," "ditador." 

Um palácio numa montanha distante é ocupado por Hynkel, o ditador da Tomânia, o homem mais odiado do mundo. Um louco que pensa que a sua missão é conquistar o mundo, que sonha em tornar-se senhor de um universo onde só haverá arianos. 

A única pessoa que não se apercebe das mudanças em seu redor é o pequeno barbeiro, que esteve muito tempo ausente do gueto. Passaram muitos anos desde que ele ficou em estado de choque na primeira Grande Guerra e passou-os num hospital distante. Um dia decidiu que já tinha passado tempo que chegasse, escapou-se e voltou a casa. 

Propõe-se alegremente a pôr a sua barbearia modesta em ordem: tira as teias de aranha, limpa o pó do livro de contabilidade e começa a remover cuidadosamente os traços de tinta branca que alguém tinha besuntado na sua loja, sem notar que formam a palavra Judeu

As acções imprudentes do pequeno barbeiro são observadas pelos cães de guarda da Cruz-Dupla, que assaltam o gueto há muito resignado como represália. Entre os que sofrem pelas mãos dos assaltantes está aquele velho simpático, o Sr. Jeckel. E a mulher dele. E a pequena lavandeira encantadora, Hanna (Paulette Goddard), que lava a roupa para o bairro inteiro.... 

... O gueto recupera do golpe. O pequeno barbeiro ganha coragem suficiente para convidar a pequena lavadeira para um passeio, num Domingo, e o gueto inteiro sai à rua para o ver andar ao lado dela, abanando a sua bengala com um ar orgulhoso e independente. Mal dão dois passos e são obrigados a parar pelos gritos desenfreados do Ditador que vêm do altifalante e que agouram a morte e a destruição. Novo motim. As patrulhas estão à procura do pequeno barbeiro que se atreveu a resistir ao Ditador. 

A pequena Hanna esconde-o no telhado de uma casa. Mas ele é descoberto. Uma pequena perseguição e ele está num campo de concentração. 

O barbeiro escapa com um amigo, Schultz, que antes era um membro da sede do Ditador mas que foi enviado para o campo por lhe dizer a verdade na cara. Schultz é o primeiro a reparar na semelhança impressionante entre o Ditador e o pequeno barbeiro. 

As alturas, as figuras, as caras, incluindo o bigode de borboleta negra, são idênticas. Mas nem o próprio Schultz estava à espera do que acontece quando chegam a Osterlich (Áustria) depois da fuga deles. Eles não sabem que o Ditador tinha acabado de anexar Osterlich e que é esperado lá. 

O pequeno barbeiro é confundido com o Ditador. É arrastado para uma infinidade de microfones e obrigado a falar. 


3. DOIS DISCURSOS 

Do ecrã, vem o segundo discurso, tão importante para este importante filme. O primeiro discurso que Chaplin profere como Hynkel. Era um desses discursos famosos de Chaplin, cujos primeiros contornos são dados no comunicado na inauguração do monumento em Luzes da Cidade e nos versos em Tempos Modernos. Sem palavras, sem significado, uma torrente de gritos inarticulados, bramidos e guinchos que exprimem perfeitamente a insensatez, a demagogia e a histeria dos discursos do maior demagogo e criminoso do mundo, cujo nome vai simbolizar sempre sede de sangue, crueldade, obscurantismo e violência. 

Em resposta a esta peça oratória de Hynkel vem o discurso do pequeno barbeiro, confundido com o Ditador. 

O pequeno barbeiro, com a timidez a desvanecer, diz o que tem para dizer diante da infinidade de microfones e as multidões de pessoas. 

Superou o seu receio e a sua indecisão, e os microfones levam a voz dele até muito longe. É a voz de todas as nações oprimidas, onde quer que estejam a sofrer sob o jugo bestial do fascismo. 

Longe, muito longe estão Hanna e os seus amigos do gueto, horrorizados com a escuridão e com o destino que os espera. As palavras do pequeno barbeiro para ela são uma chamada para todos os que se erguem para combater o fascismo em nome da humanidade. 

"... Coragem, Hanna! Coragem, porque a esperança não morreu.... Algures, o sol voltará a nascer para ti, para nós, para todos os que sofrem nesta terra.... A humanidade não será derrotada!" 


4. A COISA MAIS IMPORTANTE 

É digno de nota ser nesta linha e deste modo que os jornais e as revistas na América escrevem sobre este filme. 

É disto que os avisos de imprensa e os artigos falam. 

Algures em segundo plano estão os êxtases para com as caracterizações de Hynkel com a Cruz-Dupla e de Napaloni com dados no seu boné preto às rodelas. Algures bem fundo no segundo plano está a descrição dos gags cómicos. 

Eles notam de passagem que os episódios militares parecem ter vindo do filme antigo Shoulder Arms, riem-se com a cena que mostra os dois ditadores nas cadeiras de barbeiro, mencionam a técnica de queda com o pescoço de Chaplin pelo telhado de vidro e por vários andares. 

Mas repito que desta vez não são detalhes destes ou parecidos com estes que impressionam aqueles que escrevem sobre o filme. 

O que enche os corações dos que vêem o filme é o ódio pelos opressores fascistas. O episódio com a inscrição obliterada parece obliterar a natureza particular dos acontecimentos no gueto, substituindo-os pelo destino de pequenos países inteiros e de nações abatidas pelo fascismo, não importando se o país se chama Bélgica. Noruega, Grécia, Holanda, Jugoslávia, França ou Checoslováquia. 


5. FALAR EM VOZ ALTA 

O último "truque" neste filme é que Chaplin fala com a sua própria voz pela primeira vez: ele expressa a acusação pelas suas próprias palavras, pela sua própria pessoa. 

Os formalistas e os estetas atrevem-se a censurá-lo com isto: para eles a estrutura de um filme é mais importante do que um apelo humano real. 

Mas isso não atormenta Chaplin. Ele tem andado a encher os pulmões com o ar do protesto social, filme atrás de filme. 

Nas comédias curtas e em The Kid o protesto era contra a divisão do mundo em pessoas "boas" e "más". O pesadelo sangrento do fascismo fez Chaplin levantar a sua voz contra este produto abominável da reacção capitalista, contra o fascismo. E, neste momento, do ecrã silencioso e musical de Chaplin, vem a sua voz humana e humanista. 

A revista americana Friday está certa ao dizer que Adolf Hitler tem milhões de inimigos, mas que um dos mais formidáveis adversários do Führer é um pequeno homem nascido no mesmo ano que ele - Charlie Chaplin. 


6. ALGURES, O SOL VOLTARÁ A NASCER 

Estas palavras esperançosas do pequeno barbeiro tornaram-se realidade. O pequeno barbeiro pode ficar com a certeza: 

O fascismo vai ser destruído! 

(1941)
in « Notes of a Film Director », pp. 199-202 
Tradução: João Palhares

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