sábado, 17 de novembro de 2018

119ª sessão: dia 20 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


A nossa próxima sessão, com a segunda longa-metragem a solo de Alberto Seixas Santos, Gestos e Fragmentos, prolonga a temática e as obsessões do realizador com a grande curva histórica provocada pela revolução de Abril em Portugal, desta feita com o chamado Processo Revolucionário em Curso, convocando as vozes de Otelo Saraiva de Carvalho, Eduardo Lourenço e Robert Kramer para o tentar compreender. Um documento preciosíssimo ou uma aventura de investigação com contornos noir, vejamos e decidamos.

Em Histórias do Cinema, livro essencial dedicado ao cinema português, João Bénard da Costa, versando sobre as obras devotadas ao 25 de Abril, escreveu que "os dois melhores filmes sobre as suas razões e o seu rescaldo devem-se a Seixas Santos. Já falei do primeiro – Brandos Costumes, estreado nos finais de 75. O segundo chamou-se Gestos e Fragmentos e ficou concluído em 1982 (nunca foi estreado comercialmente). Basicamente é constituído por três grandes entrevistas com Otelo Saraiva de Carvalho, o estratego do 25 de Abril*, o cineasta americano Robert Kramer e o ensaísta literário Eduardo Lourenço (n. 1923), um dos intelectuais portugueses de maior prestígio. Os pontos de vista do protagonista da Revolução, do esteta revolucionário e «visitante» e do intelectual distanciado sobrepõem-se e combinam-se, numa espécie de elevação da discussão à figura de substituição da imagem ausente. Ao contrário dos outros filmes, jamais vemos em Gestos e Fragmentos (ou só vemos na imobilidade da fotografia) as imagens emblemáticas da Revolução. E é da ausência destas (ou desta) que nasce a forma do discurso sobre ela, numa figuração de luto que tem os mais estranhos paralelos com Brandos Costumes. Mas se Brandos Costumes recorrera à ficção, aqui são os personagens reais que tomam o lugar dela, cobrindo com a própria ficção que entretém a ficção que não há ou não houve. E é também como ausente que o cineasta toma partido, implacavelmente registando as contradições dos discursos e do décor (a paisagem rural donde Eduardo Lourenço fala, o décor soissante-huitard do quarto alugado em Lisboa por Kramer, a casa burguesa de Otelo). Com esse filme – muito posterior – se fechou Abril, que directa ou indirectamente, esteve ainda presente em quase todos os filmes de ficção dos anos capitais de 76 a 82.

* Otelo Saraiva de Carvalho (n. 1935) é o mais conhecido dos «capitães de Abril». Pouco tempo depois da Revolução, foi promovido a brigadeiro e passou a comandar a Região Militar de Lisboa e o COPCON (Comando Operacional do Continente) com vastos poderes paramilitares. Evoluiu muito rapidamente de posições moderadas para posições de extrema-esquerda, que levaram a violentos conflitos com os seus ex-colegas.

Em 1974, Otelo representou a face mais radical – e também mais anárquica – da Revolução que quis inflectir para uma democracia basista. A seguir ao 25 de Novembro foi demitido de todas as suas funções e preso pouco depois, por alegadas implicações no golpe. Libertado em 1976, apresentou-se como candidato às eleições presidenciais, com apoio nos maoístas da U.D.P. Obteve cerca de 20 por cento dos votos, após uma campanha radical e populista.

Mais tarde, ligou-se às F.P. - 25 de Abril, grupo que preconizava a acção armada e que organizou vários actos de terrorismo. Preso e julgado, foi condenado a severa pena de prisão, muito contestada."

Na folha da Cinemateca sobre o filme, Manuel S. Fonseca escreve que "o conteúdo de Gestos & Fragmentos é aquilo que ele não mostra. É mesmo aquilo que ele esconde: o 25 de Abril, expressão que resume um Poder em aberto, e a movimentação das figuras, os Militares, que para ele convergem. Sete anos depois de 1974 (o filme é de 1981) a organização de um saber sobre Abril passa essencialmente pela disposição de diferentes pontos de vista que estabelecem o seu discurso sobre imagens das imagens (Kramer), ou sobre a ausência penosa dessas imagens (Otelo), ou sobre a transliteração delas (Eduardo Lourenço).

"O primeiro som do filme (e não é curioso que a primeira “imagem”, seja um som?), acompanhando o genérico, é o rumor da água. Metáfora da fluidez, dir-se-ia, mas também metáfora da horizontalidade, do movimento em frente, esse som que se cumpre no primeiro plano do filme (plano geral do mar, junto à costa) introduz dois discursos que também procedem na “horizontal”: o de Kramer e o de Otelo. O primeiro corte com essa horizontalidade surge na primeira intervenção de Eduardo Lourenço: o seu discurso não procura formular um alinhamento dos factos, o que o seu discurso visa é a fractura instantânea dos factos, como um ponteiro que fracturasse a pedra. Especulação, dir-se-á. E, contudo, lá está no filme o primeiro movimento de câmara dedicado a Kramer que evolui frente ao puzzle cronológico que desenhou num placard. Horizontalidade da câmara para a horizontalidade de Kramer. Ao contrário o primeiro ângulo muito marcado da câmara, um plongé acentuado, é para Eduardo Lourenço que lê em paisagem mineral: verticalidade."

Robert Kramer, realizador americano que interpreta o jornalista de Gestos, escreveu sobre o filme para o catálogo sobre Seixas Santos publicado pelo ABC - Cineclube de Lisboa, dizendo que "o Alberto propôs-me que fosse com ele a Lisboa e que trabalhássemos juntos nos textos para a minha personagem. Era um bom momento e um bom lugar. Neste personagem de ficção do «jornalista no seu quarto» há inevitavelmente alguma coisa do material de Guns e vestígios do desejo selvagem que se encontra na base das «cenas de luta de classes em Portugal». 

"Após a queda do regime fascista em Abril de 1974, havia optimismo, euforia, triunfalismo. Havia uma possibilidade real e uma generosidade, havia uma abertura e uma ingenuidade maravilhosas. Havia um movimento popular poderoso. Depois de Novembro de 1975, algumas facções das Forças Armadas instauraram a ordem tradicional da Europa Ocidental. Esta experiência é sustentada pelo «jornalista no seu quarto» e também pela sombra de alguns amigos encarcerados. Isabel do Carmo, Carlos Antunes e outros militantes dum pequeno partido de esquerda: foram julgados num processo polémico e condenados a penas de prisão, aparentemente perpétuas. (Encontram-se presos há cinco anos Este verão, após longas greves de fome, depois do protesto das autoridades oficiais de todo o Ocidente, começa a haver indícios de que vão ser liberados). E outro personagem do filme de Alberto, «o General na Sala», Otelo Saraiva de Carvalho, também era amigo deles."

Até Terça-Feira!

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