quinta-feira, 4 de julho de 2019

La Pointe Courte (1955) de Agnès Varda



por André Bazin

Um filme puro e livre

La Pointe courte é um milagre. Pela sua existência e pelo seu estilo. Pela sua existência, porque tínhamos que remontar a O Sangue de um poeta para encontrar um filme com a mesma liberdade na sua assimilação de toda a contingência comercial. Ainda assim, Jean Cocteau beneficiou apenas da sumptuosidade de um mecenato. Esses tempos, infelizmente, fazem parte do passado. Um filme falado custa muito caro, até mesmo para uma fantasia de milionário! Agnès Varda é uma mulher jovem, cujo talento como fotógrafa do T.N.P (Théâtre National Populaire) todos nós conhecemos, e que vivia a necessidade de realizar esse filme. Em vez de procurar um produtor segundo o processo clássico, pensou justamente que a energia que seria empregada para apanhar esse raro pássaro na mão, poderia ser melhor usada na tentativa de se endireitar pelos seus próprios meios. Convenceu alguns amigos a trabalharem em cooperativa, e foi assim que, com pouco dinheiro, mas muita coragem, imaginação e talento, La Pointe courte viu a luz do dia. Esse primeiro milagre possibilita e condiciona o segundo. Refiro-me a esta total liberdade de estilo que nos impregna de um sentimento raro no cinema, de nos flagrarmos na presença de uma obra que obedece somente à vontade do seu autor, sem subserviências exteriores. 

Se La Pointe courte é um filme de “vanguarda”, não o é na acepção tradicional do termo, de maneira geral sempre confundido com as sequelas do surrealismo e, em menor escala, com a destruição da história e da narrativa. A história que nos conta Agnès Varda é a mais simples do mundo, trata-se de uma história de amor. Um homem e uma mulher estão a ponto de se separarem depois de quatro anos de vida em comum. O homem passa as suas férias na cidade natal, um vilarejo de pescadores, perto de Sète, chamado La Pointe-Courte. A mulher vem encontrá-lo pouco antes da provável e definitiva separação. Ambos vagueiam pela vila, sonham com o passado, confrontam os seus sentimentos, divagam incertos de si mesmos e das suas verdades. Contudo, ao lado deles, misteriosamente indiferente e solidária, a vila vive a sua vida. Essa dos pescadores de mariscos que discutem com fiscais de saúde a respeito de um tanque lodoso. Uma criança morre, casam-se namorados, atravessamos os dias de festa no canal de Sète. O casal tece o seu próprio destino nesta trama humana. E no fim deste devaneio, vêem-se reunidos mais uma vez. 

Naturalmente que não nos podemos esquecer de ponderar sobre Viagem em Itália de Rossellini (que não pode, aliás, por razões cronológicas evidentes, ter influenciado Agnès Varda), onde encontramos um contraponto comparável entre os sentimentos dos heróis e o espaço geográfico e humano. Essa aproximação honra tanto um como o outro filme. Entretanto, o de Agnès Varda é bem diferente no seu tom e na sua técnica. Em primeiro lugar, trata-se de um filme feminino, assim como existem romances femininos, o que é raro no cinema. Em segundo lugar, a autora adoptou um partido no que diz respeito à imagem. Neste sentido, Agnès Varda talvez não tenha esquecido o suficiente os seus talentos de fotógrafa. Mas, no entanto, proporciona-nos um diálogo admirável. Os seus heróis só dizem coisas inúteis e essenciais, como essas palavras que nos escapam quando sonhamos. 

in «Le parisien libéré», 7 de Janeiro de 1956.
tradução e transcrição de Julio Bezerra, com pequenos ajustes para o português europeu.

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