sexta-feira, 19 de julho de 2019

Sans toit ni loi (1985) de Agnès Varda



por Serge Daney

Não é trivial morrer de frio – pelo menos, num filme. E isso porque o frio não é um tema trivial. Sobretudo se for considerado como um desligamento lento, uma fatalidade unida ao "frio em si". O frio é um tema válido porque modifica tudo sem nos apercebermos disso: a recitação gélida dos actores congelados, o uso mínimo das palavras, os corpos entorpecidos e os discursos inúteis. E o frio de Varda faz tão mais efeito por não ser o do extremo norte, mas o de sul da França, com os animais em letargia, as plantas desassossegadas, as serras cheias de lama e as terras desertas. Com o frio é preciso reinventar tudo, até o cinema. Graças ao frio, Varda reinventou Sandrine Bonnaire. 

Mesmo só esse frio todo, esse pão gelado e não comestível, os episódios penosos em busca de um abrigo afortunado, o sol que não aquece de todo e a bela fotografia de Patrick Blossier já fariam do filme de Varda, se não uma grande história, pelo menos um "motivo" verdadeiro. Antecipando um bocado a conclusão, pode-se dizer que uma vez que Varda renuncia a compreender Mona, que portanto permanece objecto de pura curiosidade, bastava-lhe apenas concentrar-se num motivo. É como se o famoso "olhar frio", cáustico e impiedoso, que tornou Varda célebre tivesse decidido pôr o frio auto-ironicamente diante da câmara e inserido a vagabunda de Mona, que ilumina a paisagem com a palidez de uma tocha que se vai apagando. 

Sem Eira nem Beira está dividido entre a vontade de compreender (tudo) e a vontade de fazer (apenas) ver. Ao contar as últimas semanas da vida de Mona, Varda examina diversos modos possíveis de tratar este tema e não se atreve a confessar o suficiente a si mesma que são todos inadequados, ou tragicamente datados e em todo o caso não à altura de um personagem forte como Mona. Foi tudo superado: o documento urgente, o retrato esboçado aos poucos, o sentido do tempo que foge, precisamente tudo o que Varda sabia tratar bastante bem. Desta vez não servia um documento-investigação e ficava tudo como antes. A marginalização juvenil do ano de oitenta e cinco, portanto, é tratada da mesma maneira como são tratadas as outras personagens no filme, com as quais nem sequer tem uma estreita relação, e portanto não é vista de tal modo que resulte envolvente. Nisto reside mesmo toda a ambiguidade de Sem Eira nem Beira: o facto de ser parcialmente composto precisamente por aquilo que recusa, de procedimentos velhos, como os iogurtes fora de prazo. 

Realmente, nos anos 60 a figura do “marginalizado” fez escola. Vítima da sociedade, portador da utopia ou desmascarador das contradições, o excluído tinha os traços positivos de um anti-herói simpático. Bastava seguir as suas experiências para ver as distorções da “sociedade”, iluminadas durante um momento pela sua derrota, como uma estrela cadente. Mas aqui trata-se de Mona, e estamos em 1985; ela fala pouco, não tem reivindicação alguma a fazer, tem necessidade de pouco e nada para dar, não acusa ninguém, e morre ao ar livre. 

Aquele que salta (não sem fracturas) é precisamente a justaposição de conveniência entre o indivíduo (livre, ainda que infeliz) e a sociedade (funcional, ainda que saciada). Na constelação de cinzas das personagens que Mona encontra, todas de alguma forma secundárias, na melhor das hipóteses, só existem excluídos. Para alguns Mona passa como uma ideia geral, um emblema fugaz, uma imagem mal esboçada. Mais nada. (…) 

Fala-se muito do abandono (das salas) pela parte do público, enquanto não se fala o suficiente da desertificação da paisagem cinematográfica. No entanto, trata-se de um fenómeno único e idêntico. Tanner orgulha-se de ter conseguido um bando tranquilo de vacas. Wenders lamenta-se que já não se possa olhar para um comboio japonês com o olhar de Ozu. Dir-se-á que são problemas de artistas das imagens, dos contemplativos. Também se podem descartá-los como superados, a partir do momento em que o cinema já começa a reflectir sobre si mesmo e fica satisfeito. Mas prefiro pensar que Varda, depois de décadas de “reivindicações sociais”, tenha visto em Mona a campista, o expoente de um movimento violento e instintivo, aquela que “vigia” a paisagem como se fosse um tesouro evanescente. No momento errado. 

in «Libération», 5 de Dezembro de 1985.

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