sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Sanma no aji (1962) de Yasujiro Ozu



por Yoshishige Yoshida

«Ozu é o tempo da vida real entre gerações, com sacrifícios familiares, em planos longos, estáticos ou dinâmicos, em movimento - "Viagem a Tóquio" mais importante que "Viagem em Itália" de Rossellini, com o peso familiar superior ao do milagre do casal.» 

Carlos Melo Ferreira, in «Some Like it Cool». 

DUAS MEMÓRIAS INESQUECÍVEIS 

Quando falo sobre o realizador de cinema Ozu Yasujiro, é natural para mim chamar-lhe de Ozu-san devido a duas memórias inesquecíveis que tenho dele. A primeira teve lugar há mais de trinta anos a Janeiro de 1963 num restaurante em Kamakura. O Clube de Realizadores dos Estúdios Shochiku Ofuna, a que eu e Ozu-san pertencíamos, realizou lá uma festa de Ano Novo. Lembro-me claramente dessa noite como se fosse ontem porque pensei nela com frequência. Ozu-san era o membro mais velho entre os quinze ou mais realizadores que estavam na festa e estava sentado no lugar "mais alto" do fundo da sala, mesmo no tokonoma (a alcova das salas de estilo japonês). Eu era o mais novo e estava sentado no lugar "mais baixo", mesmo à beira da saída. 

Quando a festa começou, Ozu-san apareceu e sentou-se ao meu lado, servindo saqué no meu copo sem dizer uma palavra. A partir daí e até à festa acabar, Ozu-san e eu bebemos saqué juntos sem trocar muitas palavras. Por causa disso, a festa de Ano Novo, que devia ter sido uma ocasião feliz, para mim foi mais como um funeral. 

No entanto, sei muito bem porque é que Ozu-san fez uma coisa tão estranha. No Outono anterior, eu tinha escrito uma crítica ao último filme de Ozu-san, Kohayagawake no aki (1961), para uma revista, afirmando que não parecia um filme de Ozu. Kohayagawake no aki tinha cenas destinadas a atender a um público mais jovem. Como eu próprio era jovem, fui sensível à intenção dele, e apontei isso. Em vez de discutir comigo, Ozu-san ofereceu-me saqué em silêncio. Era a sua resposta muito à Ozu. Ozu-san era esse tipo de pessoa. 

A certa altura da noite, quando Ozu-san estava a ficar um bocado bêbado, disse-me casualmente, "Afinal, os realizadores de cinema são como prostitutas debaixo da ponte, a esconder as caras e a chamar clientes." Isto era uma expressão típica de Ozu-san, plena de ludicidade e humor. Muito provavelmente, Ozu-san estava a dizer de forma metafórica que o cinema tem tudo que ver com comercialismo. Ao mesmo tempo, devia-me estar a perguntar se seria possível fazer filmes fora da influência do comércio. 

Claro que eu não sei qual foi a sua verdadeira intenção ao usar esta metáfora. Talvez não fosse suposto eu percebê-lo, porque Ozu-san falava sobre tudo sempre de forma brincalhona e não queria que as suas palavras fossem levadas a sério. 

A outra memória inesquecível que tenho de Ozu-san foi em Novembro do mesmo ano, quando o visitei num hospital universitário em Ochanomizu, Tóquio. A saúde de Ozu-san não estava muito bem, e desde essa Primavera que andava dentro e fora do hospital. Tinham-me dito que tinha cancro no final do Verão. 

Lembro-me de ser um dia frio e chuvoso de final de Outono. Quando visitei a ala de oncologia, o corpo outrora grandioso de Ozu-san parecia esquelético. No entanto a mente dele estava lúcida. Agradeceu-me pela visita e depois ficou em silêncio. Eu também estava sem palavras porque Ozu-san tinha mudado imenso. Mas quando eu estava prestes a sair, Ozu-san murmurou-me, "O cinema é drama e não acaso." Murmurou-mo duas vezes como se estivesse a falar sozinho. Essas foram as últimas palavras de Ozu-san, para mim. 

Ozu-san faleceu um mês depois a 12 de Dezembro, no seu sexagésimo aniversário. Passaram trinta anos, e eu tenho a mesma idade que Ozu-san quando morreu. Ozu-san nunca gostou de dizer aquilo que realmente pensava. Parecia acreditar que fazê-lo era imprudente. E provavelmente ficaria irritado se eu levasse as suas palavras demasiado à letra, mas o que ele me disse nesse hospital volta muitas vezes para me assombrar; "O cinema é drama e não acaso." Quando Ozu-san disse isto, eu fiquei atónito e confuso. Senti muita inveja dele porque ele sabia que estava a morrer mas ainda era brincalhão e gostava de expressões paradoxais. 

Ozu-san evitava elementos dramáticos nos seus filmes o máximo possível, apresentando os acontecimentos como se fossem acidentes simples, espontâneos. Os actores estavam estritamente proibidos de interpretações excessivamente dramáticas, e nunca eram autorizados a passar intencionalmente de conversas e comportamentos normais. Quando Ozu-san disse no seu leito de morte, "O cinema é drama e não acaso” – contradizendo a nossa acepção de que o seu mundo cinematográfico é tipicamente não dramático – qual era a sua verdadeira intenção? 

Suponho que Ozu-san quisesse dizer que os incidentes diários simplistas que ele representava podiam ser interpretados como os verdadeiros dramas, e, por contraste, as histórias retratadas em muitos outros filmes não eram nada senão acidentes fabricados e artificiais. No entanto, mesmo que percebamos isto, as últimas palavras de Ozu-san ainda não parecem naturais porque tinham dois conceitos vincadamente contrastantes como premissa. Ele fez claramente uma linha de demarcação a dividir uma afirmação e uma negação: "Cinema é drama" e "não acaso." Esta clareza e esta franqueza eram completamente diferentes da forma de falar normalmente suave, ambígua e extremamente brincalhona de Ozu-san. 

Na verdade, Ozu-san nunca se atreveria a defender a si próprio directamente ao lidar com críticas de que faltava drama ao seu cinema; em vez disso, teria simplesmente feito pouco do caso, ou ignorado. Será que, por uma vez na vida, Ozu-san exteriorizou os seus verdadeiros sentimentos diante da morte? 

Em todo o caso, as suas últimas palavras estão divididas de forma tão clara numa afirmação e numa negação que deve estar lá escondido outro sentido, e assim as suas palavras voltam até mim ocasionalmente e deixam-me confuso. 

Nos parágrafos acima, provavelmente usei expressões como "típico" ou "normal" demasiado livremente. Escrever continuamente "típico Ozu-san" ou "à Ozu" cria uma reiteração exagerada da mesma formação de palavras. No entanto, não consigo evitar usar expressões dessas porque as palavras de Ozu-san mudam constantemente de sentido dependendo de quem as ouve. A partir do momento em que ocorre um sentido particular a uma pessoa, alguém pensa imediatamente noutro. Sente-se tanta amplitude e profundidade nas suas palavras. Como resultado, sinto-me preso, incapaz de decidir o que é que significa. Portanto uso as palavras "típico de Ozu-san" com alguma relutância. É escusado dizer que não havia nada "à Ozu" nos filmes finais de Ozu-san. Eram um mundo onde o sentido flutua incessantemente, liberto de designações específicas. 

Dito isto, os leitores não vão achar estranho ver o cinema de Ozu-san descrito de maneira tão repetitiva e absurda. De facto, é por os descrevermos carinhosamente por "à Ozu" que apreciamos os jogos e a profundidade das suas imagens, que gostamos de ver os seus filmes. 

in «Ozu's Anti Cinema», Universidade do Michigan, 2003.

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