domingo, 3 de novembro de 2019

Le livre d'image (2018) de Jean-Luc Godard



por Bernard Eisenschitz

Caro Jean-Luc, 

Obrigado por me ter convidado a ver O Livro de Imagem (...) 

Com as diversas fontes e formatos, o senhor recria uma matéria pictórica. Deformada, re-colorida, ampliada com o grão, reenquadrada. 

Bloqueada toda a sedução das imagens e também do texto, balbuciante, trémulo, interrompido, encoberto. 

Nas interrupções constantes, ser partilhado entre o que é representado e a máquina do cinematógrafo com o seu desenrolamento, as suas perfurações, a sua decomposição. Reencontrar a descontinuidade com os meios do digital. 

A definição muito justa e bela do contraponto dá uma chave. 

Ondas, chamas, bombardeamentos, exércitos, a história e o mundo num espectáculo estrondoso à Dovjenko ou à Vidor. 

Um grande fluxo sinfónico. Mas não para contar uma história. «O cinema, de forma mais genuína». Como o primeiro leitor de Moby-Dick (segundo Giono): 

– Não é um livro. – Não, diz Melville. 

Isto não é algo que o torne popular, diante do digital onde se vê tudo e nada por trás (passei por essa experiência nos filmes de Vigo, espero ter evitado isso no final). 

Isto já supondo que ouvimos o que nos diz. É o que há de surpreendente no filme. 

«Torna-se necessário chamar a atenção», de facto. Mas isso não foi mostrado assim, como às vezes se diz, com os governos de animais selvagens de Hugo. 

Os remakes foram inventados por Marx no seu Louis-Napoléon. A história repete-se, mas aqui não como farsa. As falhas morais confundem-se com crimes de Estado. Há criminosos que só existem por causa da guerra. A humanidade está-se a destruir a si própria. Há anos que a guerra está por todo o lado, de forma cada vez mais literal, no sentido de Goya ou Joseph de Maistre (eis como se explica a presença deste). Segue-se a habituação. 

Dizer que O Livro de Imagem é de uma grande coragem e sem precedentes é uma banalidade. Mas é o sentimento que me vem à mente. 

É verdade, como dizem os jovens que lhe escrevem em “Lundi matin”, que o senhor é o único que, etc. (Eles não sabem quão certos estão, estou curioso para que vejam este.) 

O senhor sempre esteve na história, pensando para que é que o cinema devia servir. 

A partir das Histoire(s), era acima de tudo disso que se tratava, mais do que a cinefilia que conta as suas pequenas histórias (não mal). 

Desta vez, a história é a própria matéria. 

De facto não se afastou do cinema, só não é mais um amor dominante. 

Ele serve como a caixa de impressão em que o tipógrafo analfabeto de Fuller encontra os caracteres a toda a velocidade. 

E o senhor olha para o caracter, o hieróglifo com que Eisenstein sonhava. (Ele também, as suas três aparições são magníficas, a coruja, as mãos sobre a Bíblia e o cavaleiro teutónico. Ele quis fazer a sua catedral das artes, completamente sozinho. A sua resistência era já a da esperança, a sua solidão também.) 

Encontra todas as imagens nos filmes ou nos velhos jornais de actualidades. É mais que justo. Melhor ainda, se Ridley Scott serve para preencher uma caixa de impressão. 

E para não se desviar do cinema, bastam dois longos planos do Plaisir em que se vêm corpos em movimento e que dão essa mesma definição. 

O pensamento desenvolve-se nas imagens e nos sons («um pensamento / virá / em seguida», como numa colagem que uma amiga tinha feito pegando em textos no ecrã das Histoire(s)). 

É um bloco e é articulado como os cinco dedos... ainda uma dessas coisas que eu não compreendia no papel. 

Por fim, mesmo que as re-utilizações das Histoires sejam o que me deixa menos curioso – não se muda de caligrafia – adoro a ideia da imortalidade através dos filmes líquidos, de Vertigo a Ruby Gentry passando por The River

E os momentos de calma da Arábia alegre em que vejo qualquer coisa da felicidade de Barnet: o pôr-do-sol, um barco no mar que brilha, os cantos mundanos de Maghreb que representam a Arábia inteira, a que temos atrás dos olhos. 

Obrigado mais uma vez. 

Com amizade, 

B.E. 

in dossier de imprensa de Le Livre d'image

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