quinta-feira, 30 de julho de 2020

El Bruto (1953) de Luis Buñuel



por João Palhares

Cai uma árvore em chamas da janela de um segundo andar. Lá dentro estava uma vaca deitada numa cama sem que a dona da casa achasse no mínimo surpreendente ou fora de contexto. Um punhado de convivas vê-se impedido de sair fisicamente de uma casa quando o serão vai alto e a vontade e o auto-controlo parecem pregar partidas. Outros tentam marcar um jantar durante dias a fio sem que algo aconteça, condenados a andar sem rumo por uma estrada de betão, com os sapatos a tinir pelas cercanias rurais e desertas. Saem formigas e escorpiões das cavidades de um cadáver. Há morcegos a assombrar as tardes de um menino e de uma menina. Ratos, cobras, coelhos, papagaios, macacos, falcões. Rãs e sapos... As noites e os dias entrelaçam-se num ramalhete de realidade e fantasia que se pode oferecer aos sonhadores deste mundo como se de uma provocação se tratasse. Um presente envenenado ou um conselho precioso. Dependerá dos dias. 
 
A vida real, bem diferente da dos números e das estatísticas que nos são apresentados dia após dia, é povoada de fantasmas, urdidos por pesadelos ou traumas de infância, manifestáveis nas inúmeras noites possíveis da nossa existência: as da alma, as dos homens, as dos caçadores ou as dos demónios. Em Trás-os-Montes, nas cercanias de Lamego (outra das noites que existem, segundo o grande Camilo Castelo Branco), um pequeno desentendimento com estranhos que envolvesse uma mulher da terra podia acabar à bastonada e à mocada pela madrugada fora, com cavaleiros à mistura e com a polícia a fugir a sete pés, de rabo entre as pernas. E se se ler a auto-biografia do Luis Buñuel Portolés que nos tem ocupado o mês de Julho, se se vir El Bruto ou Susana, pode-se constatar que no México, como em qualquer terra em que as pulsões vençam à razão, o cenário não era muito diferente:
 
«Há uma relação peculiarmente íntima entre os mexicanos e as suas armas. Um dia vi o realizador Chano Urueta no plateau a realizar uma cena com uma Colt .45 ao cinto.

“Nunca se sabe o que é que pode acontecer,” respondeu ele casualmente quando lhe perguntei porque é que precisava de uma arma no estúdio.

Noutra ocasião, quando o sindicato exigiu que a música para Ensayo de un crimen fosse gravada, chegaram trinta músicos ao estúdio num dia muito quente, e quando tiraram os casacos, quase três quartos deles estavam com armas em coldres de ombro.”

O escritor Alfonso Reyes também me contou da altura, no início dos anos 20, em que foi ver Vasconcelos, então Secretário da Educação Pública, para um encontro sobre tradições mexicanas.

“Tirando eu e tu,” disse-lhe Reyes, “toda a gente aqui parece ter uma arma!”

“Fala por ti,” respondeu Vasconcelos calmamente, abrindo o casaco a revelar uma Colt .45.

Este “culto das armas” no México tem incontáveis adeptos, incluindo o grande Diego Rivera, que me lembro de um dia sacar da pistola e apontar indolentemente aos camiões que passavam. Também havia o realizador Emilio “Indio” Fernández, que fez María Candelaria e La perla, e que acabou na prisão por causa do seu vício pela Colt .45. Parece que quando regressou do Festival de Cannes, onde um dos seus filmes tinha vencido o Prémio para Melhor Fotografia, concordou em receber alguns repórteres na quinta dele na Cidade do México. Enquanto eles estavam sentados a falar sobre a cerimónia, Fernández começou de repente a insistir que, na verdade, e em vez do Prémio de Fotografia, tinha sido o Prémio para Melhor Realização. Quando os jornalistas protestaram, Fernández pôs-se de pé num salto e gritou que lhes ia mostrar os papéis para o provar. Assim que deixou a sala, um dos repórteres suspeitou que ele não tinha ido buscar os papéis, mas sim um revólver—e fugiram todos a sete pés assim que Fernández começou a disparar de uma janela do segundo andar. (Um até foi ferido no peito.)

No entanto, a melhor história foi-me contada pelo pintor Siqueiros. Aconteceu perto do final da Revolução Mexicana quando dois oficiais, velhos amigos que tinham estudado juntos na academia militar mas que combateram em lados opostos, descobriram que um deles era prisioneiro e ia ser baleado pelo outro. (Só os oficiais é que eram executados; os soldados normais eram perdoados se concordassem em gritar “Viva” seguido do nome do general vencedor.) À noite, o oficial deixou o prisioneiro sair da cela para poderem beber um copo juntos. Os dois homens abraçaram-se, brindaram, e desataram às lágrimas. Passaram a noite a recordar os velhos tempos e a chorar pelas circunstâncias impiedosas que tinham determinado que um fosse o carrasco do outro.

“Quem é que podia imaginar que um dia te ia ter de matar?” disse um.

“Tens de cumprir o teu dever,” respondeu o outro. “Não há nada que se possa fazer.”

Vencidos pela ironia hedionda da sua situação, ficaram bastante bêbados.

“Ouve, amigo,” disse finalmente o prisioneiro. “Talvez me possas conceder um último desejo? Quero que sejas tu, e apenas tu, o meu carrasco.”

Ainda sentado à mesa, e com os olhos cheios de lágrimas, o oficial vitorioso acenou com a cabeça, sacou da arma, e matou-o no local.» 
 
Com bichos, armas e pulsões ficamos, então. Receita mais que certa para o desastre, uma dor de cabeça e o cabo dos trabalhos se se é apanhado no meio do fogo cruzado: material fascinante para a ficção. Um homem impulsivo e ainda muito inocente, preso à influência de uma figura paternal que não consegue recusar ou combater, serve de peão numa contenda entre patrões e arrendatários, torna-se alvo da paixão obsessiva e violentíssima da mulher do homem que o contratou, e apaixona-se pela filha de um velho que mata inadvertidamente. Quanto a teias complexas de relações, ou “abismos de paixão” (repescando o título de outro filme do realizador, que vamos ver em Setembro), não estamos nada mal servidos. Apontando logo tudo para a tragédia, perceptível em germe e motivado pelas atracções descontroladas da Paloma de Katy Jurado pelo “bruto” de Pedro Armendáriz, no final do filme temos tudo embrulhado num clímax de “amor, ódio, acção, violência e morte”, o campo de batalha de Samuel Fuller ou os labirintos do desejo de Luis Buñuel, que equiparam o sexo à morte e as armas à carne. O pelotão de fuzilamento climático seria então a consumação possível de uma noite há muito prometida de amor selvagem, censurado por uma galinha enquadrada de forma imponente em primeiro plano e que nos reenvia misteriosamente para o início disto tudo: para os bichos, para os pesadelos e para a infância... 
 
Pois é, o cinema não nos ensina mesmo nada. 
 
Ainda bem.

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