terça-feira, 24 de novembro de 2020

182ª sessão: dia 26 de Novembro (Quinta-Feira), às 19h00


No rescaldo do cancelamento da sessão de A Doce Vida, que lamentamos e tentaremos colmatar em breve, avançamos para a segunda metade da carreira de Federico Fellini, fase em que abandonou definitivamente a narrativa e mudou conscientemente os seus processos. Assim, esta Quinta-Feira veremos em double-bill Ensaio de Orquestra e A Voz da Lua, na nossa próxima sessão no auditório do Museu D. Diogo de Sousa.

Em entrevista a Toni Maraini, por alturas da estreia do filme de 1990, o realizador disse que "a minha lentidão em começar um filme é certamente inaceitável numa profissão que requer planeamento, mas confesso que preciso desse ambiente para começar um filme. Quando começo, tento encontrar uma disposição despreocupada, essa postura incomensurável da narrativa, esse prazer que experimentei ao filmar Entrevista

"Esse filme curto foi filmado dia a dia enquanto o inventava. Ando a almejar cada vez mais a este tipo de filmes. Portanto, para A Voz da Lua, o meu último filme, tentei fazer a mesma coisa, fazer como faz a gente do circo: criar uma cena e um espectáculo a partir do nada. Eu preciso de construir o argumento a partir da vida – com edifícios, luzes, situações, estações – como premissa para ver como as coisas andam. Para este filme, desenhei e criei tudo, dos edifícios à publicidade. Então de vez em quando visitava o plateau, via-o vazio, via a poeira a invadi-lo, algumas janelas destruídas pelo vento, e perguntei a mim próprio, “O que é que está a acontecer?” Correndo o risco de parecer romântico, confesso que houve algo em mim que disse, “Vão ver, a praça vai ganhar vida, o sacristão vai aparecer no pórtico da igreja, vem alguém a uma loja comprar qualquer coisa…” E assim foi. Como que por necessidade, o plateau ganhou vida. Deixei o filme acontecer; as coisas importantes foram descartadas como banalidades, e as coisas casuais pareciam importantes. Queria alcançar a naturalidade da Entrevista."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, Luís Miguel Oliveira escreveu que "A Voz da Lua ficou como o último filme realizado por Federico Fellini. A recepção crítica não foi das melhores, e mesmo os “fellinianos” mais convictos não evitam um certo tom de condescendência na sua apreciação deste filme. Mas como Fellini não teve hipótese de realizar mais nenhum filme A Voz da Lua viu-se encarregado da ingrata tarefa de “representar” o testamento cinematográfico do realizador. E se não é, nem de longe nem de perto, um dos melhores Fellinis, até consegue cumprir cabalmente esse papel de “testamento”. Ou seja, é possível ver nele uma espécie de resumo, ou de balanço, das ideias que enformaram o olhar de Fellini sobre o cinema e sobre o mundo. Deste ponto de vista, é um filme absolutamente genuíno de um cineasta que mesmo nos seus filmes menos conseguidos nunca soube o que era a “falsidade”. 

"Há vários paradoxos em Fellini, na sua obra e na sua relação com ela. Um deles é a sua trajectória, e a sua passagem quase sem ruptura do “caldo” neo-realista em que se formou para um onirismo extremamente pessoal e para uma concepção “deformada” da realidade, cheia de características recorrentes que contribuiram para que o adjectivo “felliniano” ganhasse um sentido preciso e fosse tudo menos uma palavra vazia. Ao mesmo tempo, esse adjectivo é também um instrumento de “defesa” inventado para combater o desconcerto provocado pelo universo de Fellini, para combater a dificuldade em encontrar “pontos de referência” sólidos e concretos num mundo derivado em linha recta da mente de uma pessoa e do qual só o próprio Fellini possuia certamente a “chave” absoluta. Com a progressiva acentuação desses traços característicos do cinema e da personalidade do cineasta, com todo o hermetismo que sempre lhe esteve subjacente - a mescla entre pormenores autobiográficos e outros oriundos do mais puro devaneio imaginativo foi sendo cada vez mais difícil encontrar sinais imediatamente “reconhecíveis” e relacionáveis com uma realidade concreta. Algures entre A Doce Vida e Otto e Mezzo essa “realidade concreta” deixou de contar para Fellini, apagando-se em função do domínio concedido a uma realidade de outra ordem, a uma realidade, se quisermos, puramente... “felliniana”. E aqui que há um certo paradoxo: a evolução da obra do cineasta não é comparável à de outros, que foram caminhando rumo a uma depuração que passava, nalguns casos, pelo isolamento de meia-dúzia de traços essenciais. Em Fellini sucedeu o contrário e a ideia de “depuração” não pode ser separada da ideia de “acumulação”: despojado foi Fellini nos seus primeiros filmes, não nos últimos. Pelo contrário, o seu percurso baliza-se em torno do progressivo “exagero” e da constante acentuação das suas características básicas. Como se houvesse uma profunda “malaise” na sua raiz que cada filme, em vez de apaziguar, contribuísse para alimentar."

Em relação ao Ensaio, e também numa folha da Cinemateca, escreveu Frederico Lourenço que "Ensaio de Orquestra é um filme que pode ser visto de duas maneiras: como alegoria política, onde o individualismo leva ao caos, que redunda em revolta, que, por sua vez, só se resolve no totalitarismo do tipo hitleriano; ou então como puro espectáculo cinemático (seja lá o que isso for), em que nos devemos abstrair de tudo o que não seja a pura fruição do filme como cinema. O primeiro modo de ver o filme é banal e redutor; o segundo, utópico. Dificil será determinar o que nos resta. Mas uma coisa é absolutamente certa: Ensaio de Orquestra não é um filme sobre um ensaio de orquestra, nem sobre a psicologia do músico, nem sobre música, apesar de, num ou noutro momento do filme, o espectador ser quase levado a acreditar que sim. Desengana-se, porém, muito rapidamente. E se o espectador tem alguns conhecimentos musicais, se alguma vez tocou algum dos instrumentos que figuram no filme, então não pode deixar de rir às gargalhadas durante 71 minutos, pois, como já se disse, Ensaio de Orquestra nada tem que ver - ou só superficialmente - com músicos e música. No entanto, é um filme fascinante. Porquê? 

"Em primeiro lugar, tratando-se de um filme de Federico Fellini, nunca poderia ser menos que fascinante: pois Fellini, mais do que qualquer outro grande cineasta da história do cinema, tem o condão de simultaneamente repelir e atrair o espectador: ver Fellini-Satyricon, Ensaio de Orquestra, E la Nave Va ou mesmo Otto e Mezzo pode ser uma experiência exasperante; mas o espectador, mesmo o menos felliniano, não pode deixar de sentir que o que um filme de Fellini lhe oferece em termos de "vivência do cinema" é algo de muito especial que mais nada, a não ser outro filme de Fellini, lhe poderia oferecer. Esta afirmação um pouco provocatória faz lembrar a célebre frase de Marilyn ao ser confrontada, num dos seus filmes, com um copo de whiskey: I hate the taste but I love the effect. E dos filmes citados, Ensaio de Orquestra é sem dúvida o mais exasperante, começando pela questão ultra irritante da dobragem feita a martelo, a que já nos habituámos em filmes italianos, mas que neste filme ultrapassa os limites do tolerável por largos quilómetros. Já nem se trata da questão de o actor estar claramente a recitar o alfabeto, sabe Deus em que língua, ao mesmo tempo que a banda sonora nos faz ouvir um prolongado e desenvolvido discurso sobre as vantagens e desvantagens de tocar este ou aquele instrumento: a coisa torna-se particularmente ridícula e excessiva quando, num filme pretensamente "musical", vemos no ecrã um grupo de instrumentistas a tocar energicamente frases musicais que, na banda sonora, são tocadas por outros instrumentos, totalmente diferentes dos que temos à nossa frente. Poderá muito bem tratar-se de um pormenor irrelevante para uma apreciação menos mesquinha do filme: mas um filme, para ser bem conseguido, tem de ser um pouco mais do que a soma das suas partes, e quando nem as partes resistirem à prova dos nove ... mas adiante. Poderiamos ainda focar a questão de alguns dos "músicos" terem tido o seu primeiro contacto com o seu respectivo instrumento durante a rodagem de Ensaio de Orquestra, mas julgo que já não vale a pena insistir mais nesse ponto. Não é um filme sobre música; não batamos mais nessa tecla."

Até Quinta-Feira!

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