sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Fanny och Alexander (1982) de Ingmar Bergman



por António Cruz Mendes

Quando realizou Fanny e Alexandre, Bergman anunciou que esse filme seria a sua última longa-metragem. Tinha apenas 64 anos, mas dizia-se física e psicologicamente sem forças para continuar. De facto, depois dela, só encenou peças de teatro e filmou obras para a televisão. A longa duração do filme, o enorme elenco de atores, a sumptuosidade do décor, tudo isso nos permite dizer que, à sua escala, Bergman se quis despedir dos cinemas com uma superprodução. 
 
Fê-lo contando uma história com claras conotações autobiográficas. O seu pai, tal como o padrasto de Alexander, foi um severo pastor luterano, mas ele, como Alexander, na sua infância, conheceu na casa da sua avó um mundo maravilhoso, povoado por fantasmas, onde não era fácil distinguir a realidade da fantasia. Foi lá que Ingmar Bergman brincou pela primeira vez com uma lanterna mágica, observando o movimento das figuras com o mesmo olhar sonhador que divisamos em Alexander. Mas, se Bergman nunca desmentiu aqueles que viram no jovem Ekdahl o seu alter ego, teve, contudo, o cuidado de acrescentar que, nele, havia também muito do bispo Edvard. E é nesta ambivalência que se joga o enredo dramático deste filme. 
 
Alexander, que cresceu no seio de uma família da atores, proprietários de um teatro, é um menino sensível e imaginativo. Conhecemo-lo logo nas primeiras sequências do filme vagueando, sonhador, pela casa, semi-deserta, porque quase todos estão no Teatro. 
 
Estamos na véspera do Natal e ali representa-se o nascimento de Cristo. Caído o pano, os artistas e todos os que lá trabalham reúnem-se num alegre banquete. Oscar Ekdahl, ator e diretor, discursa com contida emoção, explicando quais são as duas grandes funções do teatro, “um pequeno mundo que, por vezes, consegue refletir o grande mundo que existe lá fora”: às vezes, permite-nos “compreendê-lo melhor”, outras vezes, permite-nos esquecer, por breves instantes, esse “áspero mundo exterior”. 
 
A ceia de Natal da família Ekdahl dá-nos a conhecer o mundo de Alexander. As salas luxuosamente mobiladas, as festivas decorações natalícias, a mesa abundante, o convívio descontraído, a liberalidade dos costumes. Ficamos a saber das dificuldades económicas do tio Carl, da libertinagem do tio Gustav Adolf, da melancolia que se apodera da avó Helena quando pensa na passagem inelutável dos anos. Mas, nada disso impedia que a liberdade e alegria reinassem na casa dos Ekdhal. Até que a morte os surpreendeu, vitimando o pai de Alexander. 
 
A morte de Oscar e o casamento de Emilie com o bispo Edvard fratura o filme a meio. As cores quentes e sensuais, onde predominam os vermelhos e os dourados, que coloriam a primeira parte do filme, vão dar lugar aos negros e cinzentos que dominam a segunda. Ao luxo, sucede a austeridade; à liberdade, a disciplina; ao divertimento, a obrigação. A naturalidade deu lugar à desconfiança e a alegria, ao medo. Na casa dos Ekdahl, Alexander, às vezes, vislumbra a figura fantasmagórica do pai, vestido de branco. O padrasto veste-se de negro. 
 
Na cerimónia de casamento, em campo-contracampo, vemos os Ekdahl e os Vérgerus alinhados, face a face. São dois mundos que se confrontam. Emilie e os seus filhos devem chegar, por vontade de Edvard, à casa onde mora com a sua sombria família, despojados de tudo o que lhes recordasse a antiga casa, a sua vida passada. À mudança deveria corresponder um renascimento. Apenas Alexander resiste a essa imposição trazendo consigo um pequeno animal de peluche. 
 
A oposição de Alexander àquele casamento é imediata. A sua mãe percebe-o e pede-lhe para “não fazer de Hamlet”, nem ela é a rainha Gertrud, nem Edvard o rei da Dinamarca e a casa onde eles agora moram, apesar de nua e fria, não é o castelo de Elsinor. Contudo, a comparação é inevitável e só não é inteiramente verdadeira porque, ao contrário de Hamlet, Alexander não vive dilacerado pela dúvida. Para ele, o padrasto é a personificação do mal e a sua nova casa, uma prisão. 
 
Na opinião do bispo, existe uma falha de carácter em Alexander, ele não sabe distinguir a verdade da mentira. Um dia, contou aos colegas da sua escola que a mãe planeava vendê-lo a um grupo de saltimbancos. (Sabe-se, pela sua autobiografia, que essa foi uma história que o próprio Bergman, quando criança, imaginou e que mereceu do seu pai uma reação semelhante à de Edvard.) Já em casa do padrasto, contou a Justine, uma empregada do bispo (Harrietr Andersson numa curta, mas impressiva interpretação) que os espectros da primeira mulher de Edvard e dos seus dois filhos lhe apareceram e contaram que morreram afogadas quando tentavam fugir da casa do bispo, que as tinha aprisionado num quarto, sem alimentos. O castigo que lhe foi infligido foi a gota de água que decidiu Emilie a querer fugir daquela casa com os seus filhos. 
 
A fuga de Fanny e Alexander e o propósito de divórcio de Emilie, que está grávida, revela-nos um outro Edward, um ser desesperado perante o desabar do mundo ideal que concebeu. Terá ele, também, perdido a sua fé? Na nossa vida, diz-nos a avó Helena, conversando com o se velho amigo Isaac, todos representamos vários papeis e usamos várias máscaras. Mas a de Edward, confessa-o ele próprio a Emillie, fixou-se-lhe de tal forma ao rosto, que não a pode arrancar sem se desfigurar. 
 
Isak é uma antiga paixão de Helena e o seu principal confidente. A sua presença na festa de Natal da família Ekdahl acentua, por contraste com a repulsa com que, mais tarde, é recebido na casa dos Vérgerus, duas formas diferentes de viver a religião, como celebração da vida ou como expiação de um pecado. A sua participação no estratagema concebido para retirar Fanny e Alexander da casa do bispo, vai introduzi-los na sua casa, um mundo mágico, sobrepovoado pelos mais variados e estranhos objetos. Entre eles, uma imagem de Deus deixa Alexander aterrorizado, mas, afinal, ela não é mais do que um fantoche de um teatro de marionetes. É na casa de Isak, que ele vai conhecer a mais enigmática personagem do filme, Ismael, um sobrinho de Isak que aí vive recluso porque tem poderes que o podem tornar perigoso. 
 
Ismael é um ser andrógino (trata-se, de facto, de uma personagem masculina interpretada por uma atriz, Stina Ekbad) que desperta em Alexander sentimentos contraditórios de temor e fascínio. Tenta convencê-lo que os dois podem ser, na verdade, a mesma pessoa, que é capaz de lhe ler os pensamentos, de reconhecer os seus ódios e revela-lhe as imagens do fim atroz do seu padrasto. Até que ponto as nossas fantasias podem comprometer a realidade? 
 
A família Ekdhal reúne-se, de novo feliz, para celebrar o batismo das filhas de Emilie e de Maj, que está sentada à mesa dos senhores que anteriormente servia, na companhia dos atores, das atrizes, dos amigos da família. Uma orquestra toca em segundo plano. Gustav Adolf levanta-se e, rodeando a mesa da refeição, discursa, retomando o tema da oposição entre o pequeno mundo do teatro e o grande mundo exterior que já tínhamos ouvido, pela voz de Oscar, no princípio do filme: “Nós, os Ekdahl, sabemos que, repentinamente, se pode abrir um abismo e a morte pode chegar, mas amamos as nossas ilusões. Retirem-nas a um homem e ele enlouquecerá”. E aproveita a ocasião festiva para nos expor a sua visão epicurista da vida: “O mundo é uma caverna de ladrões e a noite cai. O mal quebra as suas cadeias e corre o mundo como um cão raivoso. O veneno afeta-nos a todos, aos Ekdahl e a todos os outros. Ninguém escapa. Nem Helena Viktoria, nem a pequena Aurora. Assim são as coisas. O melhor é sermos felizes enquanto podemos. Sejamos amáveis, generosos, carinhosos e bons. Não é preciso ter vergonha em ter prazer neste pequeno mundo. Boa comida, sorrisos gentis, árvores em flor, valsas”. Debruça-se sobre um dos berços e ergue nos seus braços o bebé: “Sustento uma pequena imperatriz. Pode-se tocar, mas não tem medida. Um dia provará que tudo o que eu disse estava errado. Um dia, ela não só governará o pequeno mundo, mas todo o mundo”. 
 
Na sequência final, Emilie, por vontade de Oscar, diretora do Teatro, propõe a Helena representarem juntas O Sonho, de Strindberg. Depois de uma primeira recusa (“Esse porco misógino!”), Helena aceita e começa a lê-la a Alexandre que, depois de ter sido surpreendido pela presença fantasmática do padrasto (“Não me podes escapar.”), adormeceu no seu colo.

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