quinta-feira, 23 de setembro de 2021

A Hora da Estrela (1985) de Suzana Amaral



por António Cruz Mendes

Há pessoas que passam pela vida como sombras. São quase imperceptíveis. Limitam-se a desempenhar, rotineiramente, melhor ou pior, as funções que lhe foram atribuídas, sem grandes alegrias ou tristezas porque “a vida é mesmo assim”. Mas, apesar de tudo, podem alimentar sonhos fabulosos e há mesmo um momento onde, finalmente, ocupam o centro do palco e todas as atenções se voltam sobre si. É a hora da sua morte, a hora da estrela. 

Antes deste filme, Suzana Amaral só tinha realizado documentários. Conta-nos ela que o professor de roteiro da Universidade de Nova Iorque onde estudou cinema, aconselhava os alunos que quisessem adaptar uma obra literária a não escolher um livro grande. Corriam o risco de realizar um filme que não fosse mais que um resumo truncado, empobrecido, da sua história. Uma narrativa curta teria que ser expandida e, mais facilmente, o filme adquiriria vida própria. Suzana Amaral lembrou-se disso quando pensou em adaptar uma obra de Clarice Lispector. Passou um dedo pela estante onde, na biblioteca da Universidade, se encontravam os seus livros e percorreu as lombadas até encontrar a mais fininha. Saiu-lhe A Hora da Estrela, uma extraordinária obra literária – que muitos consideravam ser inadaptável para cinema. 

Clarice Lispector conta-nos a história de Macabéa pela voz de um narrador, Ricardo S. M., que constantemente interrompe a narrativa para se referir a si mesmo e à sua íntima necessidade de contar a história da Macabéa e, ao mesmo tempo, da dificuldade que tinha em fazê-lo. Afinal, ele apenas entreviu a rapariga que a inspirou. A personagem “Macabéa” é, em grande medida, uma criação sua. Como traduzir isto em imagens? 
 
Suzana Amaral optou por se concentrar em Macabéa que viu como uma pessoa real e, ao mesmo tempo, como uma metáfora. Aqui, temos que abrir um parêntese para falar da extraordinária interpretação de Marcélia Cartaxo (“Urso de Prata” de interpretação no Festival de Cinema de Berlim). A sua dicção, a sua postura corporal, a sua aparência física compõem uma personagem dotada de um extraordinário verismo. Por outro lado, “todas nós”, as mulheres e, em particular, as nordestinas deslocadas e perdidas numa grande cidade, diz-nos Suzana Amaral, “temos algo de Macabéa”. Ela própria também se sentiu uma “Macabéa”, imigrada em Nova Iorque, quando, com mais de 50 anos e mãe de nove filhos, foi para aí estudar cinema. 

Macabéa tem 19 anos. O pai e a mãe viveram e morreram no sertão, em Alagoas. Foi criada por uma tia beata, fria e autoritária que a privava de um dos poucos prazeres que conhecia, o de comer queijo com goiabada. E, depois da morte dela, vê-se sozinha, longe da sua terra, partilhando um quarto miserável com três desconhecidas e ganhando a vida num trabalho mal pago, que não lhe dá prazer e que desempenha toscamente. Incompetente na dactilografia e incompetente na vida. Baixinha e magricela, não é bonita, nem vistosa – “nem pobreza enfeitada tem”, diz-nos Ricardo S. M. É tímida e ignorante – embora goste de ouvir os ensinamentos da Rádio Relógio, cuja linguagem, aliás, não entende e dos quais não retira proveito algum. Tem uns olhos grandes que perscrutam com curiosidade um mundo que percebe mal, mas que aceita como ele é. Procura ser amável e educada, mas não conhece o amor. É virgem e despe-se, pudicamente, sob os lençóis da sua cama. 

É, portanto, alguém que facilmente podemos ignorar, substituir, descartar. Afinal, haverá milhares de Macabéas. Porém, ela tem um sonho: gostava de ser uma estrela de cinema. 

Suzana Amaral já tinha realizado uns cinquenta documentários quando realizou A Hora da Estrela e é num registo quase documental que nos descreve o quotidiano de Macabéa, a sua amizade com Glória, a colega exuberante, de roupas justas e cabelo pintado, que procura o amor, mas de quem todos se aproveitam e com quem ninguém quer casar; e o seu patético namoro com Olímpico, outro nordestino, também ele sozinho e desterrado em São Paulo, mas que, com a sua fingida desenvoltura, o seu dente de ouro e o seu cabelo empastado de brilhantina, sonha ser “deputado”. 

Como se resolverá este balanço entre a crua realidade e os sonhos fantásticos de Macabéa e dos seus amigos? A Madame Carlota, que já foi prostituta e “patroa” e que, agora, lança as cartas e adivinha o futuro, tem uma palavra a dizer.

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