quarta-feira, 4 de maio de 2022

Accattone (1961) de Pier Paolo Pasolini



por António Cruz Mendes

“Neste mundo já não se pode viver. É preciso afiar as garras”, diz-nos a dada altura Accattone, a personagem central desta história. E, mais tarde, o mesmo será dito por Balila, o chefe de um bando de pequenos ladrões: “O mundo é de quem tem dentes”. 

Nos seus termos, em palavras cruas e duras, os dois marginais limitam-se a confirmar uma ideia dominante numa sociedade fundada no interesse individual e na concorrência feroz. O propósito de acumular capital submete a si todos os valores e a posse de dinheiro ou a sua falta divide o mundo em vencedores e vencidos. Mas, existem as formas legalmente autorizadas de o obter e aquelas que são proibidas. Aos deserdados da sorte, a esse subproletariado que sobrevive nas periferias degradadas de Roma, restam as segundas. Pela sua origem social é gente do povo, mas aquilo que a sua prática social espelha nada mais é que uma versão mais sórdida, crua e descomposta da ideologia da burguesia. 

É comum considerar-se que os primeiros filmes de Pasolini denotam ainda a influência do neo-realismo italiano e é verdade que essa influência é evidente em Accattone, que foi a sua primeira longa-metragem. Percebemo-la na opção por actores não profissionais e no protagonismo dado a pessoas comuns, marcadas pela pobreza. Contudo, os protagonistas de Accattone não são os trabalhadores e o seu tema não é o da sua luta contra as injustiças de que são alvo, mas sim esse refugo social de pequenos ladrões e vigaristas, de chulos e de prostitutas que a boa sociedade burguesa condena e que, na medida do possível, tenta esconder da nossa vista. Pasolini, pelo contrário, trá-los à luz e, embora os veja como um pobre subproduto da sociedade capitalista, nutre por eles, um sentimento de simpatia e piedade. De facto, eleva-os à categoria de personagens trágicas que encontram um paralelo nos exemplos bíblicos e literários que, ao longo do filme, vão sendo citados. 

Nesta sua visão do seu mundo, misturam-se, para alguns algo estranhamente (a sua obra motivou críticas indignadas, tanto da Igreja como do PCI), as suas convicções cristãs e a suas convicções marxistas. Aliás, isso podia-se já observar em Meninos da Vida (1955) e em Uma Vida Violenta (1959), romances que antecederam Accattone e dos quais ele é, de certa forma, uma continuação. 
 
Em Accattone cruzam-se o desprezo pelo trabalho, a bazófia despropositada, a cínica exploração da prostituição e o acolhimento de uma família desprotegida, o amor de Stella e um desejo de redenção. O que o filme de Pasolini nos diz é que, mesmo no meio da maior miséria material e moral, ainda pode haver lugar para o amor e a esperança. 

Porém, este novelo de contradições só se poderia resolver num final trágico. A morte de Accattone adivinha-se logo nas primeiras sequências, quando ele aceita o desafio de se atirar de uma ponte depois de uma lauta refeição. Logo ali, se discute como será o seu funeral e o que se há-de escrever na sua lápide funerária. A partir de então, as várias cenas, pontuadas pelos acordes da Paixão Segundo S. Mateus, são como que os passos da subida ao Calvário que Accattone vai encetar. 

Nas sequências finais, regressado a casa exausto e humilhado, depois de um dia de trabalho muito duro, Vittorio assiste em sonho ao funeral de Accattone. Um sonho que se revelará premonitório. Então, finalmente, poderá descansar. As suas últimas palavras serão: “agora estou bem”.

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