quinta-feira, 30 de junho de 2022

The Trouble with Harry (1955) de Alfred Hitchcock



por Alexandra Barros

"What seems to be the trouble, Captain?"[1] - pergunta com toda a naturalidade Miss Gravely quando encontra o Capitão Albert Wiles puxando um morto pelos pés, numa idílica floresta, de intensos amarelos, laranjas e castanhos outonais. 
 
Para Hitchcock, esta é a mais cómica frase do filme e aquela que resume o espírito da história. Se aqui estamos perante um cómico de situação, há muitos diálogos/monólogos divertidíssimos no filme, por via dos jogos de palavras e principalmente dos double entendre. Embora a presença do humor, geralmente negro, seja uma das características dos filmes de Hitchcock, neste filme ele é o tom principal, pelo que O Terceiro Tiro é considerado um caso peculiar na sua filmografia, sendo menos querido por uns por isso e muito elogiado por outros pelas mesmas razões. 
 
O filme situa-se numa pequena aldeia campestre, que tem na vizinhança a floresta bucólica onde o Capitão e Miss Gravely se encontram inicialmente. O morto arrastado pelo Capitão é Harry e vai ser enterrado e desenterrado várias vezes, ao sabor do puzzle que a tranquila comunidade constrói, para descobrir como morreu, ou melhor, para que nunca seja revelado como morreu. 
 
As peças iniciais do puzzle apontam para um homicídio involuntário, devido a um tiro perdido do Capitão, numa das suas habituais tentativas frustradas para caçar coelhos. O Capitão encontra indícios do seu primeiro tiro numa lata, do segundo numa placa de proibição de caça e do terceiro em Harry. 
 
Na verdade, desta vez atingiu mesmo um coelho, descoberto por um miúdo, Arnie, num dos seus frequentes passeios na floresta. O coelho é oferecido ao Capitão e Miss Gravely em troca de muffins e é nessa altura que o terceiro tiro é, de facto, encontrado. 
 
Afinal, quem matou Harry? 
 
O corpo de Harry é encontrado, pela primeira vez, por Arnie, numa cena com uma engenhosa e muito hitchcockiana imagem (o que parece, provavelmente não é): Arnie/Harry “sentado” na floresta, e empunhando a sua “arma”, projecta na nossa direcção umas gigantescas pernas e pés. Quando Arnie mostra à mãe, Jennifer, a sua descoberta, esta expressa grande satisfação ao reconhecer o seu indesejável marido, a quem tinha, nesse mesmo dia, atordoado com uma pancada na cabeça. Outra pancada lhe terá dado momentos depois Miss Gravely. 
 
À excepção do comandante da polícia, todos convivem de forma pacífica com o morto e sem qualquer sentimento de culpa quer relativamente ao envolvimento directo ou indirecto na sua morte quer ao auxílio prestado ao involuntário homicida para esconder o corpo. Sam, um pintor que recentemente se mudou para a aldeia, usa o morto como modelo com a mesma naturalidade com que ajuda o Capitão a enterrá-lo e desenterrá-lo, de acordo com o que mais convém aos planos do Capitão. 
 
Todos querem ajudar o presumível culpado/a a preservar a sua liberdade. Os esforços para fazer (des)aparecer o morto parecem quase um jogo divertido. Uma força oposta à da morte vibra na comunidade: cumplicidade, cooperação, amizade, sexualidade, paixão, … Até as folhas de cores fortes e luminosas da floresta de Outono parecem mais vivas que flores primaveris. 
 
A banda sonora, de Bernard Herrmann, acentua esta vibração. Foi a primeira de uma série de colaborações entre Hitchcock e o compositor. Numa entrevista dada ao New York Times, em 1971, Hitchcock elegeu esta banda sonora como a favorita entre todas as dos seus filmes. O filme marca um outro começo: Shirley MacLaine, que interpreta Jennifer e que, na altura, tinha 21 anos, estreia-se aqui no cinema. 
 
Truffaut, que era grande admirador de Hitchcock[2], disse acerca dele: “... filma coisas horríveis ou terríveis, que poderiam tornar-se sórdidas ou mórbidas, e fá-lo de maneira a que nunca seja feio. Geralmente, até muito belo.”. O Terceiro Tiro também é isto!

[1] “Há algum problema, Capitão?”
[2] Truffaut entrevistou longamente Hitchcock e, a partir dessa entrevista, escreveu “Hitchcock – Diálogo com Truffaut” (Dom Quixote,1987), uma referência no que diz respeito ao realizador e, mais do que isso, uma obra considerada fundamental numa bibliografia sobre cinema.



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